quinta-feira, 23 de junho de 2005

Evocações
i
A evocação é sempre uma forma de revivalismo. Ao evocar, a voz do poema procede a chamamentos, a diálogos fantasmáticos e traz sempre à memória o que lhe é inconsolável separação. Nunca se sabe, neste destino imprevisível, o que fica pelo caminho, quando se chama e quando se apela à memória pelos mais imaginários sortilégios.
Há um antigo livro de Fernando B. J. Martinho, Resposta a Rorschach (1970), baseado nesta figura do diálogo fantasiado, que é construído a partir de palavras revividas e de um sabor a intimidade desejada. Este é, também, o aroma de “Borges”, poema de Fernando Pinto do Amaral, embora a sua morfologia assente, não no diálogo-resposta, mas antes na alocução sem réplica, ainda que ficcional, por parte do alocutário.
O mesmo tom de ambicionada intimidade percorre os versos de Pinto do Amaral, através de uma proximidade que a segunda pessoa vai moldando (“Procuravas”, “foste gastando a tua vida”, “Essa era a tua/ maneira de atingires o mais divino”, etc.).
No final, a evocação parece recuperar aquilo que terá sido o seu destino mais imprevisível, ou, tão-só, o que lhe terá ficado pelo caminho. A toada torna-se subitamente em reconhecimento e em exempla: “poeta que sofreste algures o lento/ remorso de não teres sido feliz./ Uma vida é assim, Jorge Luís:/ Versos, poeira, sonho e esquecimento.”
No revivalismo há, pois, inevitavelmente um regresso, um reatar, um recolocar de máscaras. Apesar de o seu figurino não ser sempre de natureza mitológica, genérica, estilística, citacional ou até intertextual.
O regresso ao tempo dos heróis constituirá sempre uma metáfora preciosa para entender este tipo de diversidade. O poema de Fernando Pinto do Amaral condensa alguns destes aspectos, numa linguagem que se diz de si mesma ser chã e muito clara:


“BORGES”
(Fernando Pinto do Amaral)

Procuravas nos versos a entrada
de um labirinto sempre sem saída.
Nisso foste gastando a tua vida
como se nela não houvesse nada

mais precioso do que a melodia
ditada pelos sons do alfabeto.
Era o réu reino mágico e secreto,
o império de um cego que sabia

ver melhor que ninguém a luz da lua,
a sua claridade cor de prata
onde se projectava a imediata
transparência do mundo. Essa era a tua

maneira de atingires o mais divino
reflexo de um espelho imaginário,
o rosto do maior adversário
dentro e fora de ti, ó argentino

poeta que sofreste algures o lento
remorso de não teres sido feliz.
Uma vida é assim, Jorge Luís:
Versos, poeira, sonho e esquecimento.”


(De Poesia Reunida – 1990/2000 em Anos 90 E Agora - Uma Antologia da Nova Poesia Portuguesa, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2001)