sexta-feira, 31 de dezembro de 2004

Bom ano!

Cá estou entre sacadas solares, cornijas voadoras, brasões sem memória, ombreiras amareladas, clarabóias coloridas, acenos invisíveis, escadarias abismadas, cantarias imobilizadas, frestas simuladas, amarras manuelinas, águas-furtadas ao vento, ameados entre sebes, jardins oblíquos, janelas namoradeiras, logradouros de ervas aromáticas, frisos com fantasmas, balaústres fugitivos, mármores enleados e terraços presos à névoa crepuscular. E é deste local mágico que vos desejo a todos, sem excepção, um grande e feliz
2005!

quinta-feira, 30 de dezembro de 2004

Actualidades referendárias

Foi hoje publicado, no Diário da República, o Acórdão n.º 704/2004 (304, SÉRIE I-A) onde "o Tribunal Constitucional procede à fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade da proposta de referendo aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 74-A/2004, de 19 de Novembro (proposta de realização de referendo sobre a Constituição para a Europa)".
Algum português acredita ainda neste labirinto de séries, legalidades, propostas, truncagens e procedências ao serviço de um referendo claramente imaginário?
Actualidades culturais

"Resolução da Assembleia da República n.º 86/2004. DR 304 SÉRIE I-A de 30-12-2004: aprovada, para adesão, o Primeiro Protocolo à Convenção para a Protecção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, adoptado na Haia em 14 de Maio de 1954".
Já era tempo. Os portugueses sentiam tremendamente a falta desta grave e incontornável decisão.
Dois em um e um em dois

Há paradoxos portugueses que são interessantes. Vejamos as três facetas de um em particular que anda aí muito em voga:
a) Toda a gente cala e reduz a tabu a homossexualidade, pretensamente, por causa da separação entre a esfera privada e a esfera pública;
b) Toda a gente envia e recebe SMSs que dizem alto o que todos dizem saber (nomeadamente que os dirigentes políticos A, B e C são gays. É interessante como o uso da palavra inglesa suaviza a alegada tempestade);
c) Toda a gente que é gay prefere viver na clandestinidade, sem tentar sequer fazer da vida um curso normal e assumido de direito próprio (a excepção é sempre coisa de malucos e excêntricos, tipo opus gay, artistas, meninos de coro, almirantes, actores, bailarinos, etc., etc., etc.).
Nos países protestantes sempre há menos hipocrisia; mas nós, portugueses, amantes de altares barrocos e de malinhas pretas de mão, adoramos ser dois em um.
Hoje lá tive que apagar mais um SMS que fingia ser
- já se sabe - mais uma mensagem de "santo natal"...

quarta-feira, 29 de dezembro de 2004

Balanço - 2

Há quarenta anos, os programas de TV que faziam o balanço do ano apareciam carregados de fascínio. Arrastavam o imponderável caudal das imagens a preto e branco, durante uma hora, e desse modo passavam em revista o que se sentia como distante, inocente, fotogénico e único no sentido da pouca compulsão criada.
Hoje, esses mesmos programas aparecem carregados de uma redundância enjoativa. Mobilizam o que já havia sido desenterrado reiteradamente, cortando ou alargando partes do fluxo global de imagens durante uma hora, como se quisessem anestesiar a nossa memória através de uma banalização galopante e desinteressante.
Acabei de comprovar este verdadeiro contraste, ao esforçar-me por seguir, do princípio ao fim, o programa da RTP que acabou há pouco.
Ou será isto tudo uma desfocagem com origem nos acenos da infância?
Vá-se lá saber.
Sem resposta

Todos os dias, há mais dez mil mortos que se noticiam na sequência da imensa catástrofe do Índico. Amanhã serão cem mil e poderemos então imaginar uma cidade como Coimbra a afundar-se na impiedade do oceano, entre Sumatra e a Somália. Que dizer, para além de explicar, enumerar, ajudar, agir, mostrar, comparar, difundir e repetir até à exaustão? Que dizer para além da enxurrada retórica? Que dizer aquém da necessidade? Que dizer?
Há perguntas que é impossível colocar.
Sontag

De Susan Sontag ficam-ne duas recordações: um grande livro sobre fotografia que li nos anos oitenta e um outro onde a autora avançou com a interessante noção de "interpretose" (não me apetece levantar e ir ver às estantes os nomes e tudo o resto; mas, já agora, por que me esqueço eu de todos os nomes dos livros, mesmo daqueles que ando a ler?).
De resto, Susan Sontag pertencia a outra galáxia.
Seja como for, a morte traz sempre a terreiro essa incompreensão de voltar de novo a não ser.
Balanço - 1

Nunca tive grande jeito para círculos de afinidades persistentes. Nas ideias, nos livros, nos filmes, nos blogues e noutras coisas que a vida enfrenta. Na maior parte das vezes, vejo-me a regressar a sós. No limiar da partilha. Ainda que infusa, espontânea ou admirada. Mas nunca tive a tentação das tutelas e das referências fixas, a montante ou a juzante. O que não quer dizer que a amizade não ilumine este meu regressar, algo solitário, entre tectos do mundo; embora ela - a amizade - também não seja contínua, linear e indivisa.
Permanecerão os afectos e milhões e milhões de eventos que denegam a ilusão da montagem. Permanece o amor. Permanece o desejo da lucidez e da independência radical. E é assim que vejo mais um ano quase a acabar e um outro prestes a começar: sorrindo. A ternura a desfilar na confissão e a compaixão a esquecer-se do principal que haveria afinal a dizer.

terça-feira, 28 de dezembro de 2004

Declaração do tempo

Regresso após uma semana de ausência. Talvez a maior desde que esta escrita se fez blogue. Vive-se um tempo incomum, embora a ameixoeira se resuma ao ermo dos ramos e a macieira ainda resista. Enquanto pode. Sobram-lhe umas amolecidas trinta folhas. Um ronronar sem fim. O Natal foi cheio, pleno. Sigilos, doces, apologias domésticas, vilegiaturas, memoriais, lume fortíssimo, litanias, luzes na janela, meteoros (um enorme na estrada para Machede) e ainda uma desmedida incontinência da paixão. Reconciliei-me este ano. Não sei com o quê. Talvez com aquela parte de mim que havia partido e hoje regressou. Somos todos a épica que mais amamos sem sequer o sabermos. E da ausência fazemos castelos, pontes levadiças, estradas desenhadas em névoa. Volto a olhar para a ameixoeira e para a macieira. Imensa a gratidão que habita no ar. Sem lugar. Por isso se escreve aqui. Como se fosse sobre a neve. Regresso.

terça-feira, 21 de dezembro de 2004

Confissão em tempo de festas

Todos os anos é o mesmo.
Um exercício de renovação, uma prática de reencontro, um emaranhado de afectos em torno do tempo e do esquecimento.
Com mais ou menos consumo e luzinhas - só faz bem cumprir os rituais -, este período resiste às inércias, às agressividades menores, às vitimizações e - esperemos - ao mau humor.
Vale a pena agora pôr os pés em terra e saborear uma boa lareira.
Vale a pena agora olhar em frente e saborear a flor do solstício.
Vale a pena agora voltarmos a olhar os que amamos para entender o amor como ele é: misterioso, real, profundo, envolvente e ancestral na nossa condição própria de amar.
Permitam-me que hoje escreva com este tom, com esta legenda sentimental e com este abreviado e penetrante sentido de pertença.
Bom Natal para todos! (ver post fotográfico de boas festas mais abaixo)

domingo, 19 de dezembro de 2004

Conjugalmente ao vivo


José M. Rodrigues

Olá, o que é que julgam?
Como vêem, só nos deixamos fotografar por Prémios Pessoa.
A Isabel dirá o resto. Stop.


José M. Rodrigues

Olá, desejamos a todos um grande natal e um magnífico 2005!


José M. Rodrigues

Já agora dizemos o mesmo a duas vozes:

José M. Rodrigues

Boas Festas!

sábado, 18 de dezembro de 2004

Por cima

o sol a esquecer tudo o resto. Mas há ainda a buganvília amarelada e ao lado a ameixoeira que agora vive apenas da nudez dos troncos e dos ramos. É como a escrita no osso, tão depurada, sem letras, tão esquecida de si que quase se confunde com tudo o resto. Por cima.
Shifters

E eis como a volúpia se conformou decisivamente com o apetitoso reino digital.
Radical vs. Conservador

Caríssimo MacGuffin: foste claríssimo. Eu já desconfiava que eras, afinal, um devotadíssimo membro da Academie Française. E agora mais não fiz do que confirmar esse elementar facto estelítico. Só não citaste o medidativo Pascal, o cultural Mirabeau, o utópico Mercier e o nome do café. Daí a minha suave desilusão.
TOP TEN

Só agora reparei que a malta está a fazer TOPs. Eu sou o mais breve de todos: inscrevo e escrevo o meu próprio Miniscente nas dez linhas seguidas do TOP.
E pronto, sou assim o único a falar verdade. Ou não existe a verdade?
Publicidade convincente vs. memória



TIME IS MONEY: About 80% of learning Portuguese consists of memorization. Can you imagine how fast you could learn to speak Portuguese if MONTHS of tedious rote memorization were eliminated? Unforgettable Portuguese CD-ROM courses are an amazingly fast way to learn how to speak Portuguese.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2004

Máximas de 2004 - 3

"IN MEDIEVAL Europe rulers who wanted to make a statement built a cathedral. In modern Europe they build sports stadiums. This weekend the eyes of much of the continent will focus on the Stadium of Light in Lisbon, where the final of the Euro 2004 football championships will be held.… "
(The Economist, 01/07/04)
A palavra a Mário Cláudio


Luísa Ferreira

Como director de um jornal de artes e letras pouco conhecido, mas que, mesmo assim, teve três belos anos de vida (& O Mais, 1994-1997), propus a vários escritores que respondessem a um inquérito, no número 4 da publicação (Setembro/Outubro de 1994), cujo tema central era: "Literatura portuguesa dos últimos vinte anos: que balanço?". Mário Cláudio respondeu às três perguntas do inquérito. Deixo aqui, agora, como homenagem ao hoje justamente galardoado com o Prémio Pessoa, a sua quase inédita resposta à segunda pergunta e que era: "Que temas gerais e universais foram nos últimos vinte anos recuperados na nossa literatura?"
Eis o singularíssimo texto de Mário Cláudio:

"Entendo que, na literatura, em globo, e na portuguesa, também, se fez sentir o sopro de um vento renovador, contra o peso da vária inércia de sempre, capaz de dinamizar a presença do sonho, e de conferir estatuto à magia, ao confessar a convicção na salubridade possível, numa era de múltiplas e desenfreadas poluições. A queda dos sistemas estruturados de fora para dentro, os quais encaravam a liberdade, afinal, como aplicação de uma conjuntura livresca, e a alternativa criada, desde há pouco, o tal paradigma, por uma atitude que abre a porta ao milagre, permitindo encarar a existência, em conclusão, para além da dialéctica vida-morte, deixariam iniludível rasto, bem inesperado, não raro, na produção literária nacional. Será provável que não beneficiem, com tal mudança, os criadores que se esforçam por não perder o comboio, e se afadigam, ainda, na venda incessante da imagem que lhes coube, mas eis que do calado triunfo das minorias se trata, em regra, quando a multidão vociferante não logra perceber o alarido da própria voz."

Parabéns, Mário Cláudio!
Máximas de 2004 - 2

"The problem is this: In a highly polarized election year, the only part of the electorate still in play—those coveted swing voters—is the part that isn't paying attention. They will tend, more or less by definition, to be fairly moderate and to make their decision in a rough and impressionistic way. They'll pay attention less to policy differences, which are clear enough, than to who seems trustworthy, who seems like "one of us."
(Reason, 8/09/04, Julian Sanchez)
Máximas de 2004 - 1

“As of 1980, these three countries (Espanha, Portugal e Grécia) on average had per capita GDPs that were about 65 percent of those of the nine countries that belonged to the EU at that time. And in 2003, their per capita GDP still stood at slightly above 70 percent of the nine members, evidence that injection of EU Structural Funds, aimed at compensating for the structural problems in the poorer members of the union, has not improved the situation much over the past two decades.”
(The Japan Times, 22/11/04, Takashi Kitazume)
Agora mesmo

vejo a noite a transformar-se em oceano de sombras, lusco-fusco esquecido nas soleiras de alvenaria que dão para o pátio, glicínias sob o manto denso do maracujá ainda enleado à trave de metal que mais parece um remo a escapar-se entre brumas. Até amanhã.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2004

Poeticamente incorrecto

Ontem , o divertimento do governo chamou-se monovolumes (também houve o caso da Rádio Portalegre). Mas o que eu mais gostei foi a senhora que apareceu na conferência de imprensa governamental. Aqueles óculos, aquele lenço, aquela varicela estética, aquele cabelo encapelado, dourado e mergulhado pela poiesis da ventania de Ílhavo; enfim, aquela beleza vulcânica para dar o dito pelo não dito. É que o império cinzento dos homens tem, por vezes, hiper-equivalência em casos específicos como este!
Nona Pergunta

Faltou uma nona pergunta às oito meta-fisgas de ontem (obrigado Ana pela sagacidade das respotas!). Depois de ver uns espessíssimos quinze minutos da Judite de Sousa de ontem, eis-me a postulá-la: o que haverá ao mesmo tempo de falsete e de ditirâmbico em Paulo Portas que transforma sempre a sua expressão numa espécie de crispada arrelia ressentida que não parece ter fim?
Coisas da música

1 - Um dos famosos fados cantado por Amália e com marca vareliana teve como título "Sabe-se lá". O fado tinha - e tem - um refrão penetrante e fabuloso quando moldado pela voz de Amália: "Sabe-se lá para o que nasce, quando nasce uma pessoa". Uma gravação célebre deste fado foi registada ao vivo no Olimpia parisiense, em 1957, e ontem o Portugália da Antena 3 passou, não apenas esse registo, como também uma versão revisitada do fado pela voz de Marta Bernardes. De arrepiar, no bom sentido! Já agora, acrescente-se que a Antena 3 vai manter o jogo das revisitações de Amália até Sábado.

2 - Amanhã às 23 h., apresenta-se, na ZDB, integrado no Lumpen Trio, o meu amigo Miguel Sá (laptop)Dj, produtor e compositor autodidacta que integrou o colectivo de músicaelectrónica Zzzzzzzzzzzzzzzzzp! (1991-2002) e que criou com Fernando Fadigas osProducers em 2001. Excelente manipulador de fluxos sonoros em tempo-real que atravessam de forma acidentada - súbitas interjeições e padrões rítmicos abstractos - os territórios da dita Música Ambiental.
A não perder.
(outros concertos: M.Sá (Dj set), Sex. Fri. 17.12.2004, 23h, A CAPELA, Lisboa; Seg. Mon. 20.11.2004, 23h, ETILICO, Lisboa; Ter. Tue. 21.12.2004, 23h, A CAPELA,Lisboa; Qua. Wed. 29.12.2004, 23h, A CAPELA,Lisboa)
Gostos, posições, explicações

O tempo que perdes a explicar ao Antigo Egipto essa coisa das compatibilidades vs. incompatibilidades! ("Pode ser-se politicamente conservador (ou liberal) e esteticamente radical" - é verdade, sou o primeiro a concordar com tais saudáveis arbitariedades, em todos os sentidos, mas a verdade, no reverso, é que esses campos se tocam uns nos outros tal como as massas de ar se atravessam indolormente. Por exemplo, qual é a tua posição no campo polistético?... e no campo estelítico?)
Parabéns

ao Maschamba que é um dos blogues, entre cerca de oito a dez, que visito diariamente (sempre que posso). Nele não vejo apenas Moçambique; vejo, sim, em primeiro lugar - parafraseando João Cabral -, muita "faca sem lâmina" que galga "canavial" global, mas sem jamais se esquecer de cortar quando é preciso e a safra mordazmente o exige.Obrigado José Flávio!

quarta-feira, 15 de dezembro de 2004

Interrogação - 2

De onde virá a ideia de que há questões que o ser humano não pode ainda colocar?
Questão - 2

Existirá um valor que possa caracterizar a mudez de uma pessoa?
Pergunta - 2

O que faz uma pessoa ser obrigada a interrogar com a ajuda de um enigma?
Dúvida - 2

O que leva alguém a identificar-se com uma metáfora?
Interrogação

Qual é o enigma no que se diz, quando - é preciso supor que - nada mais há a dizer?
Questão

O que domina a emoção, quando ela mesma se livra do peso que a preenchia?
Pergunta

Que vantagem existe na palavra que deambula à procura de sentido?
Dúvida

O que faz um gesto demorar-se na impaciência com que avança?

terça-feira, 14 de dezembro de 2004

Já lá está quase

Muito antes de se aproximar das esferas do indizível e do imperscrutável, a metáfora penetra, como uma corrente de ar, nos mundos e nas divisões contíguas que ordenam a casa da nossa mente. E nesse ardor, nessa inquietação, nessa voragem, o pasmo, a admiração e o gáudio como que pactuam. Em vez de riso, advirá um sorriso, uma espécie de procura serena sobre o que estará para vir.
Textos e imagens em luta de meio campo

A partir das Cruzadas ocidentais (1017) e orientais (1096), a guerra escatológica islamo-cristã tornou-se, no essencial, numa guerra entre profecias. Ou seja, não apenas entre revelações proféticas distintas, mas sobretudo entre textos que se cruzavam, enxertavam ou manietavam, na senda de um triunfo rápido, simultaneamente terrestre e divino. De certa forma, noutra escala e noutra proporção, antecipando o actual papel dos média, na sua relação mundializada com o jogo político.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2004

A situação política actual


(Sem fulanizações.
Imagem meticulosamente roubada ao bicaense Hana Bi)

(Decreto do Presidente da República n.º 100-A/2004. DR 290 SÉRIE I-A 1ºSUPLEMENTO de 2004-12-13Presidência da República Demite o Governo, por efeito da aceitação do pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro, Dr. Pedro Miguel deSantana Lopes)
Rectangulozinho / Gil - Gis

Estou a ler um livro que comprei na passada Sexta-feira, na FNAC do Chiado: Portugal, Hoje: O medo de existir. É do José Gil, mais um (gostei menos das recentes abordagens sobre o Pessoa - que já vinham do fim dos anos oitenta - e gostei bem mais das abordagens da segunda metade da década de noventa sobre os "monstros" e a "imagem-nua", aqui perseguindo o conceito de aura de Benjamin). É a primeira incursão de José Gil nesta área das identidades lusas, tema sempre quente e desejado por quem viveu alguns anos fora do país. Tenho muitas linhas sobre este tema, mas nunca arrisquei a passar da intensidade do borrão a livro. Não é pela quantidade do material acumulado que ainda hesito em publicar; será antes, quem sabe, devido a algum mal estar na minha relação com o próprio tema (destestaria ser misturado com essa coisa a que se chamou - e que se chama ainda - filosofia portuguesa).
Já agora, a título de nota meramente exploratória, reparo já há alguns anos que existem permanentes confusões entre José Gil e Fernando Gil. Advirá a dita do apelido, mas, mesmo assim, a tentação confusionista é imensa. Confesso que já estive diante de alunos e também de fantasmas profundamente meus que são apanhados em flagrante e repetido lapso. Portanto não confundir José Gil com Fernando Gil, o autor do grande Mediações e do já antigo Mimesis e Negação, além de participante (com Paulo Tunhas e Danièle Cohn) num dos livros centrais do ano 2003, e que aqui sublinhei com a vénia mais do que devida: Impasses seguido de Coisas Vistas , Coisas Ouvidas.
Soberanias, abismos e convivência

As previsões demográficas provam à saciedade que a sobrevivência da democracia e da liberdade passa, nos tempos que correm, mais pela hábil gestão das mobilidades e dos recursos globais do que pela obsessão do fechamento forçado das fronteiras, hoje em dia meros entrepostos do viver global. Até porque um novo tipo de soberania está claramente, nos nossos dias, a extravasar a ordem dos antigos nacionalismos. Lutar pela soberania significa, agora já e nos tempos que se avizinham, salvaguardar a liberdade e a democracia, não apenas no território ocidental onde fez e faz história, mas também nas vastíssimas diásporas que se movem cada vez mais entre os vários blocos democráticos do Ocidente e as mais diversas origens e paragens do planeta (China, mundo árabe, etc.). É neste movimento de sucessivos reencontros que se situará a ideia de sinoecismo, defendida por Paul Virilio, e que se centra na grande cidade cosmopolítica para que o mundo contemporâneo tenderia.
Vivemos numa grande ponte entre dois universos. Entre um mundo moderno que todos revemos e codificamos claramente, e de que não nos livrámos de grande parte das tarefas, e um novíssimo mundo, cujos sinais globais, hipertecnológicos, ecológicos, macropolíticos e pós-humanos (no sentido das novas antropologias cyborg) nos acenam e nos mobilizam quotidianamente. Vivemos um período porventura homólogo ao Iluminismo de setecentos. Na altura visionava-se retrospectivamente o mundo antigo, enquanto os novos sinais - também tecnológicos, demográficos e económicos - prenunciavam já o mundo que balizaria as práticas de oitocentos e de novecentos. Nessa corrente de ar entre dois universos, Kant, Rousseau, Herder, Diderot, Vico, Hume, e muitos outros, filtraram os múltiplos devires e criticaram o complexo curso das tradições. Dessa sistematização nasceram valores fixos que evoluíram da individualização para a individuação cada vez mais fluida. Hoje revemo-los com a nostalgia dos marinheiros sem embarcação e, entre novos lances meteóricos, voltamos a ter na nossa frente a mesma corrente de ar entre duas voragens, entre dois vórtices.
É na antevisão do universo para que caminhamos - do outro lado da ponte - que os diagramas possíveis da democracia e da liberdade deverão hoje ser devidamente acautelados. Pode mesmo tornar-se normal, daqui a alguns anos, que os dois grandes blocos que se digladiavam nas narrações de muitas profecias quinhentistas, o Ocidente então artificialmente unificado por Carlos V e o vasto desígnio otomano, se venham a reestruturar no seio de uma mesma casa omnipolitana, integrando as tradições e a consciência de devir de uma mesma partilha (e esse poderá vir a ser um dos inícios do sinoecismo acima referido). Contudo, este desígnio - hoje ambicioso e bizarro para muitos - terá que pressupor uma ordem mínima, um entreposto novo, ou seja, um conjunto sucinto de regras de convivência global que deveriam postular-se, para além das crenças e das formas diferenciadas de interpretar e significar o mundo. Foi algo que a década de noventa estrategicamente descurou, devido, talvez, à vertigem de ser, ela mesma, um tempo abruptamente apaziguado.
Para caminhar nesse sentido, deve referir-se que a actual ONU, muito marcada ainda pelos anátemas do pós-Segunda Guerra Mundial, continua presa a um mundo que não entende a complexidade trans e pós-territorial (por outras razões, foi já clara a sua ineficácia em conflitos internacionais dos anos noventa e sobretudo no Iraque de 2003). Vão, portanto, ser necessários, nos próximos anos, novos mecanismos de integração e de interface que assumam, de modo descentrado, o cumprimento dessas regras. A regulação democrática das mobilidades, a segurança, assim como a normalidade das vizinhanças entre culturas e modos de vida constituem feitos estruturantes a que o início do novo milénio deverá inelutavelmente aspirar, para além das questões ambientais e da vital gestão de recursos.
Só assim, um novíssimo denominador comum poderá servir de novo ponto de partida para um novo tipo de entendimento entre blocos planetários: o Ocidente (Europa, Américas, Austrália, etc.), o imenso Mundo Árabe, a grande China (onde o crescimento da classe média tenderá a pôr em causa, a médio prazo, a comunhão entre totalitarismo comunista e capitalismo sem regras), a Índia, a Comunidade Russa, o Mundo Judaico, etc.
Kant teria teórica razão no seu tempo, mas, hoje em dia, essa razão terá que converter-se numa racionalidade que consiga agir para além dos efeitos da brusca civilização da imagem e das significações teo-centradas do mundo. Essa racionalidade ainda não existe e não pode ser sequer imaginada como uma espécie de compromisso à moda do Metropolis de Fritz Lang, ou de deslumbrada injunção diplomática que resolveria milagrosamente todos os males do mundo. Essa racionalidade deverá antes confundir-se com a democracia em projecto, não apenas formatada e fixada territorialmente em nome da liberdade e das convivências pacíficas entre diferentes, mas sobretudo no seu desdobrar para uma dimensão trans-política onde venha a ser possível, de modo inovador, salvaguardar a coexistência diferenciada entre as diversíssimas significações do mundo que, ao fim e ao cabo, definem o nosso mundo (conferindo assim sentido à cidade cosmopolítica do planeta).
A vida humana requer um sentido, uma modalidade pactuada, uma retaguarda face à barbárie. Os abismos dos dias de hoje advêm do tempo real e do império da comunicação, enquanto os de há quinhentos anos advinham do tempo divino e do império da salvação na terra. O que os liga e, por sua vez, o que nos liga ainda hoje, para além das miragens do futuro, é a medida do homem no seu caminhar no mundo, bem como a necessidade de disponibilizar recursos para todos no presente. É aí que a vida requer um sentido, um cuidar no sentido heideggeriano, e não o simples eclodir, ou a inadvertida implosão (ou desconstrução) como prática quotidiana.

sábado, 11 de dezembro de 2004

My dog and the TV

O Cabaré da Coxa já está em decadência, o governo também, irremediavelmente. Resta, para rir, o Inimigo Público, o Jerónimo de Sousa e o mapa de Portugal com os incêndios de Verão marcados a marcador. Há ainda, ao fundo da rua, uma locutora com óculos de massa esbranquiçada que dizia, há pouco e em directo na RTP, que o PP é um partido muito agarrado ao direito à vida. E há ainda Carlos Magno com o Douro por trás a praguejar em nome da presença de uns tantos barquinhos rebelos. Hoje nem Sócrates precisou de fazer a barba. Depois virá a publicidade e a meteorologia. E também a campanha eleitoral. Easy way.
On the road

Ver sábias palavras de Cesariny aqui. Obrigado Isabel!
Tentativa de aniquilação

A URSS ainda existe. Envenenamento de Iuschenko faz lembrar outros tempos que são ainda estes. Até quando?
Rir a ler, rir e escrever

O exagero embala sempre a expressão, confere-lhe um barroco repousante de onde acaba por extrair-se o minério retórico e as camadas associativas mais hilariantes que a linguagem, felizmente, não teme. Um acontecimento existe, entre outras coisas, para ser metamorfoseado pela experiência do leitor, mas, no caso de o acontecimento ser um acontecimento da linguagem - uma locução que choca em cadeia com os níveis da ilocução e da perlocução -, a verdade é que esse acto de metamorfose se torna, quase sempre, num desdobrar irreal que culmina no riso.
Até porque o riso não decorre apenas da surpresa, da quebra de suspense ou da revisitação de uma origem intocável. O riso é sobretudo um produto pouco amadurecido da conotação. É como um fruto que ainda não está pronto a ser mastigado, mas já alegra exuberantemente a minúscula árvore que jamais viu na sua frente a Primavera. Está a mais no contexto, está deslocado no seu palco. Está desconforme no seu papel. Mas não deixou, lá por isso, de ser conotado. Mas não deixou, lá por isso, de ser parte da metamorfose. Nas não deixou, lá por isso, de integrar o vultuoso mapa de figuras que o exagero fez nascer e crescer.
Tudo isto, porque não há melhor do que a hipérbole para exprimir o essencial. Precisamente, porque o essencial contrasta vivamente em cena com todos os outros pares que a metamorfose (ou a conotação) espalhou pelo palco. O exagero pode, pois, ser um espectáculo. Um insondável e mínimo momento em que a clareza e a silenciosa gargalhada se identificam. Um ínfimo aceno grotesco que, ao fim e ao cabo, assiste e é cúmplice do mais nítido entendimento.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2004

Aproveitando os feriados

Estou a encerrar um livro que vai sair na Europa-América em 2005 (trata-se de um ensaio sobre a multifacetada natureza do profético). Estou ainda indeciso quanto ao título, mas posso desde já confessar que vai abordar o terrorismo, o "prophetic turn" (conceito de que já retirei o véu no post de baixo), para além de apresentar uma tradução inédita em Português de um conjunto de profecias anónimas da região de Aragão do século XVI, escritas em alfabeto árabe embora veiculando um vernáculo híbrido de base dialectal aragonesa (que estudei e analisei aquando do meu doutoramento já há mais de uma década). No final do livro, haverá ainda espaço para um breve ajuste de contas com o mito do milénio.
Tudo isto tendo como base a ideia de que o fenómeno profético continua ainda hoje a subsumir-se à actualidade, na medida em que se inscreve nas modalidades de controlo do futuro (temos a ordem instantanista global em vez de Deus), na ordenação ficcional dos acontecimentos em redes mundializadas por fluxos (temos notícias enunciadas através de meta-ocorrências ficcionalizadas) e, ainda, na figura da dissimulação e ilusão com que se forjam e manipulam as mensagens (temos novos heróis e novas gestas que vivem nas e para as linguagens esteticizadas, através de um caudal ininterrupto de imagens que está ilusoriamente no mundo em todo o lado e ao mesmo tempo) .
Cada um tem as pontes que merece.

terça-feira, 7 de dezembro de 2004

O que é a viragem profética?
(extraído e resumido de um ensaio que sairá a público em 2005)

Nas várias culturas que se organizaram sob o pano de fundo da civilização do “Livro” (o mundo judaico, cristão e islâmico), a chamada civilização axial ou escatológica, foi sendo instituída uma espécie de ordem dicotómica que tendia claramente a separar a normalidade das coisas daquilo que, devido às mais variadas razões, se evadia dessa normalidade. Aliás, a palavra “segno” (não confundir com signo, nas suas várias acepções correntes), em finais do quattrocento e no século seguinte, traduzia precisamente a ideia do conjunto de alterações que se processava escapando-se ao “curso natural das coisas” (O.Niccoli, 1990, p.31).
Isto quer dizer que o diabo, as metamorfoses inexplicáveis, as excrescências evidenciadas pela natureza, os monstros que habitariam a periferia do planeta, os eventos imprevistos, os animais fabulosos que respiravam nos relatos de Preste João ou do imaginário trágico-marítimo integravam, cada um a seu modo, esse desmedido mundo do segno. No entanto, para que o segno pudesse existir e tornar-se reconhecível, independentemente da significação que lhe fosse atribuída, era necessária a existência de uma ordem muito bem ancorada que, por contraste, separasse o seu mundo do mundo definido como normal. Sem esse contraste, as bruxarias, os textos proféticos considerados anómalos, as apostasias, as arquitecturas desproporcionadas, as heresias e outros “horrores” jamais teriam sido perseguidos.
Curiosamente, o mundo utópico e o mundo ideológico, que desaguaram um e outro, com idades e naturezas diversas, no século XIX, acabaram por trazer consigo, no Ocidente cristão, a antiga marca das civilizações axiais e escatológicas. Só que, em vez de paraíso, convocaram a ideia de um igualitarismo terreno. Por outro lado, a natureza racional do dogma substituía o “Livro” divino, enquanto a luta “por um mundo melhor” passava a encarnar os exigentes preceitos da antiga fé.
Nesta novíssima geometria, o segno adquire novas formas, até porque a modernidade avança em cascata, mobilizando, a partir do fim do século XVIII, diversas autonomias, nomeadamente de natureza jurídica, científica, estética, mediática, ética, constitucional, social, clínica, etc. Mas em todas estas naturezas, em todos estes palcos subitamente libertos (ou deliberadamente ausentes) de uma tutela divina, a racionalidade moderna teve sempre tendência a instituir contrastes férreos entre a normalidade e a não-normalidade. Pode mesmo dizer-se que o segno acabou por persistir sendo o que sempre havia sido, mas agora luzindo de um modo lógico e tornando-se, por isso mesmo, peça de arremesso e móbil para a iniciativa.
Em cada uma das áreas de sociabilidade moderna, os contrários passam a digladiar-se ferozmente definindo mutuamente o campo do segno (nos sistemas políticos, nas modalidades jurídicas, na sucessão vertiginosa de vanguardas artísticas, no debate científico, etc.). Esta sistemática e violenta norma de oposições trouxe o segno para dentro da vida social e deixou, portanto, de o imaginar como um sinal divino vindo do alhures e cujas finalidades últimas escapariam à compreensão humana (era esta a explicação de Santo Agostinho para a existência de monstros e portenta).
Contudo, quer no mundo cristão pré-moderno, quer no mundo cristão moderno, verifica-se, ainda que com uma topografia claramente diversa, uma necessária separação entre segno e não-segno. Essa barreira une ambos os mundos, o pré-moderno e o moderno, o que acaba por ter como importantíssima consequência a não banalização do que vai escapando à ordem “natural” ou “normal” ou ainda “previsível” das coisas (o chamado segno).
Ora o que muda abruptamente no Ocidente no final do século XX e no início do século XXI é precisamente este aspecto. E essa mudança, por si, tem uma força histórica tremenda e, por isso mesmo, bastante silenciosa ainda hoje. A grande mudança dos últimos quinze anos ficou a dever-se a dois factos fundamentais: por um lado, à diluição e perda de eficácia das grandes referências pesadas e doutrinais de carácter ideológico e similares (o fenómeno atravessa diversificadas esferas e não se circunscreve ao esboroar da guerra-fria) e, por outro lado, à entrada em cena de uma globalização hipertecnológica associada a um novo tipo de espaço público aberto.
Os vários compostos de uma era que fora prenunciada como “pós-moderna” e policentrada criam rápida e progressivamente, em todo o Ocidente, o apagamento da antiquíssima barreira que sempre havia separado segno e não-segno. E, de um momento para o outro, em muito poucos anos, a verdade é que a relativação quase absoluta tende a incluir, na horizontalidade social pós-moderna, quer o que precede do segno quer o que precederia do não-segno. Mais: a separação entre um e o outro deixa mesmo de ser uma questão, um problema ou uma preocupação, da mesma maneira que a superação da divisão clássica entre real e ficcional aparece anunciada sob o desígnio da hiper-realidade.
A consequência mais importante desta grande mudança ainda em curso - o tempo de transição é quase nulo e a sua percepção é abismada - consiste na banalização daquilo que, secularmente, no Ocidente, sempre foi encarnado sob o manto do “mal”, ou, numa perspectiva menos simplista, do “segno”. A primeira vez que esta mudança efectiva nos entrou em casa - através do fluxo globalizado de imagens - foi no dia 11 de Setembro de 2001. O carácter extraordinário desse evento, para além das suas implicações políticas (que reputo de fundamentais), foi o facto de, ele mesmo, ter conduzido ao pasmo, à ambiguidade ou à tentação relativadora (houve mesmo, numa perspectiva neo-conceptual, quem lhe atribuísse conotações artísticas). Ainda hoje existe, em certos meios, a ideia de que o 11 de Setembro é aqui e ali “justificável”, ou é, “bem vistas as coisas”, uma deriva do “sistema”: ou é uma “vingança”, ou ainda uma “inevitável resposta” face aos factos A ou B produzidos no Ocidente (esta última é a explicação autofágica).
É este apagamento das barreiras que sempre separaram segno e não-segno que eu designo por viragem profética. É esta relativação imparável que eu designo por viragem profética. Ao exemplo nevrálgico do hiperterrorismo podíamos acrescentar o pressentido mundo das manipulações genéticas e ainda algumas das implicações do que hoje já se chama a “pós-humanidade” (assim como a diluição das próprias ideias-força que separam dever e não-dever, tolerância e não tolerância, democracia e não-democracia. etc.)
Jamais na história do Ocidente (e noutras culturas axiais - o caso do Islão é extraordinário, pois aí, salvo excepções pontuais e sempre superadas, nunca existiu um Iluminismo racionalizante), o segno deixou de ser um elemento individualizado, descodificado e bem reconhecível, independentemente da siginificação que lhe era imputada (essa é uma outra questão de natureza semiótica). Este facto novo está hoje em dia a traduzir-se na dissolução do segno no meio das mais variadas ordens que, de modo devorador, agenciam todos os dias factos e ocorrências que se processam à nossa volta através de imagens seriadas e mundializadas.
O terrorismo, hoje em dia, não é apenas uma ameaça. Ele é sobretudo um desenho quase invisível que atravessa os desenhos sobrepostos da nossa sociabilidade contemporânea. Ele é design a contracenar discretamente com o macro-design. O aspecto mais terrível do actual terrorismo é a ideia, no Ocidente, de que ele não existe, porque conviveria no mesmo horizonte aparente com outros factos cuja textura não seria afinal diversa. O terrorismo converter-se-ia, desta maneira, numa ocorrência entre as muitas outras ocorrências do quotidiano para o mais puro deleite e para a mais fatal das gargalhadas do cidadão ocidental, esse novíssimo guardador e curador global de imagens.
Daí, também, a propensão europeia para a imagem de uma grande Suíça neutral, pacífica no seio da qual o terror e o não-terror seriam uma espécie de irmãos gémeos federados, sem problemas, sem ambições e sem olhos para observar as perversas ausências de fronteiras que se criaram na sua própria casa.
É a esta indiferença indigente, é a esta cegueira involuntária - e, em última análise, auto-flageladora - que eu chamo a viragem profética.
The prophetic turn”, um dos sinais mais vitais dos nossos tempos.
Convite à viagem

O meu ex-aluno Bruno Ribeiro escreveu-me do sul das Américas:

Seguimos nesta viagem por terras que queimam a pele. A Península de Paracas juntava um largo deserto de areia e rochas avermelhadas ao frio do Pacífico. Depois de visitarmos as ilhas das "balestas", onde leões marinhos conviviam com pinguins e outras aves marítimas, negociámos um transporte para atravessarmos o árido e quente território da reserva natural. O taxista tinha uma camisa azul, era bem disposto e, ao endireitar o espelho, distraiu-se e bateu contra uma das grandes pedras lascadas que se aglomeravam ao longo do caminho. Depois das reparações visitámos praias desertas, uma delas que nos levou até à catedral, uma formaçao rochosa, altiva, com gruta em abóboda, estilo "renascentista". Vimos uma praia vermelha, que contrastava com a arriba amarela e com o verde do mar. Nao houve uma noite igual. Numa madrugada, acordámos com um pequeno terramoto, que fez estremecer as delgadas paredes de platex do quarto. Em Pisco, entre a Praça de Belém e a Praça de Armas, circulámos e fomos criando pequenos hábitos. Em Nasca, vimos os geóglifos num miradouro de metal na berma da Estrada Pan-Americana. Grandes figuras realizadas para agradecer aos deuses as colheitas e a água. Maria Reiche teorizou que as linhas (algumas chegam a atingir dezenas de quilómetros) serviriam para esta cultura marcar um calendário destinado à agricultura. Falámos com pessoas que trabalham actualmente nas escavações da cidade de Cahuachi, a cidade perdida - fundada 300 anos a.C. - que recebeu as culturas Inca, Nasca e Huari. Disseram-nos que as maiores figuras tinham sido erigidas por ordem de sacerdortes para rituais onde se dançava e oferendava, ao longo das linhas que as compunham. Entrámos numa parte interdita, naquela que foi a entrada principal de Cahuachi. Pensámos na "cidade dos imortais" de Borges, ou em algo mais grandioso. Fomos também ao cemitário de Chauchilla e ouvimos como o vento sopra nos ossos (sem metáforas); vimos como há tanto para descobrir, conservar e compreender. Passámos pela maior duna de areia das Américas e parámos nos aquedutos, em diagonal. Aqui outras histórias...a uma hora de Nasca, chegámos a Lomas, uma aldeia de pescadores, com uma das praias mais limpas da zona. À sombra estavam mais de trinta graus. As casas de madeira, o cheiro a algas, os pequenos-almoços de peixe fresco, os sumos de goiaba e ananás. Chegámos entretanto a Arequipa. Foi uma noite inteira de viagem, num autocarro cheio de gente, que passava bem rente às bermas das falésias andinas. À frente, só nevoeiro e, em baixo, um mar profundo negro. Fechámos os olhos. Mas chegámos.

Oxalá envies mais novas, Bruno!

segunda-feira, 6 de dezembro de 2004

Prognósticos na antevéspera dos 110 anos de Florbela Espanca

Paulo Portas está demoradamente a decidir se faz coligação ou não, até porque não precisa nada dela. Se concorrer sozinho, basta acenar e já está. O país está indefectivelmente com ele. Questão de doutrina.

Santana Lopes está bem mais aflito e por isso não deixa de pensar em coligações. Já tem carta verde, ou branca, ou outra. Mas tem. Objectivo máximo: assegurar pelo menos a confiança do PPM. Os manos Câmara Pereira são, de facto, uma mais-valia a não perder.

Sócrates, por seu lado, decidiu invocar o santo nome das fronteiras em tempo de diluição das ditas. Fica bem. Mas, por outro lado, Vitorino trouxe à alma lusa o sorriso interrompido pelo bate asas de Guterres e pela mania das cabalas do aziago Ferro. Se não fizerem muito barulho, arriscam-se a passar a meta à frente dos outros. Mas sem darem por isso.

Louçã é o missionário hipnótico nacional. O Daniel Axial sempre comeu mais espinafre em pequenino. Talvez o Bloco cresça entre o promissor público do Jorge Palma (já agora - e sem ter nada a ver com o caso - devo dizer que o vi a tocar na FNAC, na semana passada, e até gostei de algumas das suas modas).

O Jerónimo já disse o que tinha a dizer. E todos rezaram de lábios postos no Marxileninixmum. Oremos. Parece que vai acabar com a frente alargada que dá pelo nome de CDU. Foice e martelo é outra coisa! Três ou Quatro por cento, vão apostas?

A Nova Democracia de Manuel Monteiro, por fim, é o partido favorito para estas eleições. Em Abrantes, na delegação do Politécnico nabantino, o nosso minhoto parisiense tem carregado baterias como poucos. Descuidem-se, descuidem-se!
Talma



Acabei de publicar no Minitempo a adaptação do meu romance O Trevo de Abel (2001) a peça de teatro. Coisa também escrita pelo próprio, moi même.

domingo, 5 de dezembro de 2004

D66



Hoje - não sei porquê - lembro o partido em que sempre votava quando vivia na Holanda: o Democracia 66 (independente, liberal, dandy, mas não imune a preocupações sociais).
Não há nada do género em Portugal. E, nesta altura, até fazia falta.
Hão-de pagá-las!



Com que então... no Fialho, a escassos metros da minha nova casa, e ninguém me disse nada! Deixa, deixa...
Já se sabe

Proibidinhos de contactar uma SAD nortenha e casas de alterne e de prostituição. Tudo ao mesmo nível: coisas da metafísica futebolística.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2004

Subitamente

Uma pessoa é sempre uma individuação e não uma singularidade, porque se move entre intensidades: defesa, desejo, devir, afectos. O que conhecemos de uma pessoa, sem a conhecer pessoalmente, são simples traços de uma personagem muito fixada, já que aparentemente imobilizada nesse movente que ela na realidade percorre, que ela na realidade é.
Ontem conheci pessoalmente o MacGuffin. E senti de imediato essa distância (indizível) que liga a multiplicidade da pessoa à personagem que emerge da linguagem blogosférica.
O realismo é este aceno que diz em silêncio o que é a dissimulação e o que é a matéria. Embora o que nos individualize (e singularize) não seja da ordem da matéria, nem da ordem da dissimulação. Conhecer uma pessoa - e não uma personagem - é uma tarefa vasta, mas não necessariamente duradoura.
Vou gostar de conhecer o Carlos, pois tenho um grande respeito intelectual por ele (a Bota Rasa tem uma sala de espelhos que é lindíssima, retirada quase directamente de um oitocentismo puro e castiço).

quinta-feira, 2 de dezembro de 2004

A ferver

Nestas alturas o ruído adensa-se. As vozes fazem-se ouvir ao mesmo tempo. Há ressentimentos e euforias que se confundem. Todos reivindicam ter colocado o ovo em cima da mesa.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2004

Um homem é um homem

O post anterior foi eminentemente profético (escrito num cibercafé junto ao S. Carlos, às 18 h. de ontem, Terça-feira). De facto, a crise já estava ultrapassada àquela hora e só faltava Sampaio fazer a vontade de que Santana fazia feericamente eco, desde o início do passado Verão. Depois de tanto divertimento e de sucessivos e ininterruptos dislates de todo o tipo, só se esperava um Natal prolongado a culminar com uma grande campanha alegre em Fevereiro. Portugal gosta destes artifícios e destas soluções tonitruantes. Santana também. E Sampaio sai da presidência a dizer que é um homem. E Sócrates já pensa vitoriniamente no governo (estou, no entanto, de acordo com um detalhe: não ponham lá os Tó Zés Seguros - mas haverá algo mais além disso?). Bem, pessimismos de lado e falando agora a sério, devo dizer que o Miniscente acabou de fazer doze anos de idade. É fácil fazer contas: se o Pedro disse que ia governar até 2014, isso significa que dentro de dois meses terão passado dez anos; ora, se o Miniscente já tem um ano e meio... como dizia Guterres... "é fazer as contas".