domingo, 31 de agosto de 2003



Literatura de fluxo

Acabei de comprar o Equador do Miguel Sousa Tavares. Fi-lo para oferecer a quem gosta muito. Cá em casa. Compreendo o prazer deste tipo de gostos, mas não os partilho. Não tanto pelo marketing, não tanto pela competência linguística e estética do seu autor, não tanto por se tratar de um romance histórico (e eu não crer no mito da história como ciência, ou não apreciar particularmente o género), não tanto pelo enredo e não tanto, também, pelo facto de ameaçar ser best seller. O que eu menos gosto é da literatura que funciona por fluxo.
Nas Órbitas defini fluxos como uma espécie de preenchimentos, mais automatizados do que autonomizados, no seio dos quais a liberdade é quase anulada por uma vontade prévia que é objectivada pelo instantanismo. Ou seja, pr miúdos: vê-se em fluxo (a vida rodeada de ecrãs), consome-se em fluxo (não interressa o que e por que se compra, mas compra-se; consome-se o próprio fluxo), fala-se em fluxo (regras rígidas ? Para quê ? basta só já uma sintaxe coordenada e alguns clichés em miniatura para contentar iniciais e siglas "qb"), viaja-se em fluxo (a rotina motorizada das férias, do quotidiano urbano, das pontes, dos feriados, dos natais e doutros que tais), imagina-se em fluxo (a ficcionalidade dos média, construída a partir de dados reais, põe toda a sociedade a imaginar de modo homogéneo).
O fluxo é, pois, a voragem que precede a decisão e que atira o sujeito actual em fuga para a frente. Vê, compra, viaja, imagina e fala em estado de fluxo.
E há obras, ou livros, por muito bem escritos que sejam, por muito bem investigados que tenham sido através do labor de eminências anunciadas e por muito bem fermentados que tenham sido no mercado que caem na arena do fluxo como ouro sobre azul. O livro de MST tem todas as características de um livro de fluxo.
Junta o imaginário televisivo do autor a uma coloquialidade que apela à história, à identidade e a um pretenso realismo histórico. Dá-se como objecto de um mundo de aventuras actual que recobre o mundo e roda sobre ele com eclectismo (daí o feliz título). Por fim, propõe aos leitores um deslize ligeiro e confortável, ao longo da linguagem, que permite a muitos o jogo das mais de 500 páginas (se fosse música, digamos que ficava bem no ouvido).
Para mim, a literatura deve corresponder a um salto diferente. Não se trata de um salto para além da ordem dos fluxos - isso seria quase impossível - , mas um salto diferente onde o factor estético deverá ser sempre o decisivo. É por isso que se chama literatura. Sem quais quer preciosismos o afirmo.
Mas vou ler o Equador. Aos saltos, do fim para o princípio, partilhando com muitos aquilo que são os fluxos.



sábado, 30 de agosto de 2003

O fim é sempre uma metamorfose ?

Heidegger e Borges responderam um ao outro, de algum modo, à pergunta. O primeiro por afirmar que a “finitude do tempo só se torna plenamente visível quando se explicita o ‘tempo sem fim’ para contrapô-lo à finitude”; o segundo por afirmar complementarmente que “ninguna de las eternidades que planearon los hombres”(...)”es una agregación mecánica del pasado, del presente y del porvenir. Es una cosa más sencilla y más mágica: es la simultaneidad de esos tiempos”. Conclusão: a eternidade - ou a infinitude - torna-se sobretudo numa espécie de negativo da finitude e vice-versa, razão pela qual, no seu dicotomismo, o fim não pode nunca ser encarado como uma ruptura, como uma falha, ou como um deslize para o abismo do irrepresentável, mas antes como um espaço onde se dissimula o próprio sentido do tempo. É por isso que as mil histórias do paraíso, que são representações dos fim do tempos, constituem metamorfoses que reflectem e dissimulam o tempo vivido.
RDP - I

Os ouvintes da RDP Internacional que me contactaram, após a entrevista de Sábado, poderão ver aqui a relação dos meus livros , ou, se preferirem um rol mais circunstancido apenas de ficção, poderão carregar aqui..
Obrigado a todos.

Estrada memorial

Há uma estrada em Portugal que, no ano de 2003, deve ser visitada por todos. Quem estiver determinado a fazê-lo e, se for capaz de atravessar a dita estrada do princípio ao fim, irá perguntar se estamos no Quénia, no Nepal, na Libéria ou no Alto Volta. Só não há feras, mas o resto, crateras inacessíveis e pássaros do início do mundo, lá isso, encontrará de certeza. Experimente, pois, a ligação directa entre Alcáçovas e Alcácer do Sal, num sentido ou noutro (não confundir a volta maior que é possível dar, passando pelo do mítico Torrão de Bernardim Ribeiro). Só visto.

Se no regresso, ou na ida, passar por Montemor-O-Novo, pare na livraria Fonte das Letras. Raramente como lá, em ambiente de livros e discos, se mistura tanta amizade, competência, qualidade, tertúlia, bom gosto e bem estar.
Passe a publicidade.

quinta-feira, 28 de agosto de 2003

O nome do dia

Nestes aforismos servidos à noite figura algo que sobra ao próprio dia. Trata-se de um plano pouco reconhecível, mas que entrou na montagem de muita actividade dispersa e acumulada. Estou a escrever um romance ainda sem nome. Não se esqueça o que João Magueijo disse acerca das cordas cósmicas ou dos buracos negros: nunca ninguém os viu, apenas o cálculo e a linguagem que o realiza permitem antever essas realidades que, por acaso, já têm nome. O nome de uma espessura. O nome de um romance sem nome é a espessura que ele dá a ver. Nem sempre é fácil a quem o escreve entrever o que a escrita enreda. Uma espessura, ou o brilho de um nome por vir.
Aforismos servidos noite



Escrever um romance é permanecer no seio de homologias resguardadas pela interpretação contingente e nunca definitiva. Sem abismo não há romance. Com programa, há livro, há história, há verosímil fabricado, mas não romance. Um romance implica um salto. Um romance implica sempre inventar e predizer a literatura, assim como metaforizar e retrodizer a vida.



Tocar com o polegar no céu. Andar lentamente pelo abismo, mergulhar aos antípodas imprevistos da água. Da água da vida, sobretudo. Voltar a pensar, no momento em que pensar já não é um acto que se pense. Caminhar, então, pelo bosque mais silvestre da imaginação. Encontrar aí a luz que pareceria insondável, esquecida, ou mesmo impenetrável. Tocar em todos as árvores já libertas de fruto e podadas por mão antiga. Andar lentamente ao longo da preguiça desejada. Esquecer o trabalho, a inércia, a vista aérea do planeta já desafogado de vida e de nós mesmos. Encher os pulmões, entrar na água da vida, baptizarmo-nos com o corpo todo. Voltar a pensar nesse dia em que nos desvendaremos. Hoje, talvez.

quarta-feira, 27 de agosto de 2003

Ainda as novidades blogosféricas

Da Cláudia Estanislau, recebi esta mensagem acerca do meu recente post, "Das novidades da blogosfera". Passo a transcrevê-lo:

Li o teu último post e acho que a dicotomia realidade/ficção no que toca á
internet sempre existirá. Eu escrevo o meu blog porque é uma forma de
desabafo, sem ter na mira ninguém especifico. Gosto de escrever, e agora
posso fazê-lo tendo um sentimento marcante que o faço com liberdade de
expressão plena. Que outros podem ler o que escrevo e criticar, quer seja
uma critica construtiva ou não. Escrever coisas pessoais poderá ser para
muitas pessoas menos ofensivo do que indagar sobre temas da política,
cultura ou da nossa sociedade onde muitas vezes impera o desentendimento. O
meu blog favorito é o NoParapeito, um blog puramente pessoal, mas que faz as
minhas delícias. No fundo os blogues dão-nos a oportunidade de navegar pelas
mentes de pessoas desconhecidas e saber o que pensam, como uma violação da
privacidade, com permissão.



Em resposta, devo dizer que creio que o mundo há uns trinta anos não suportaria
a actual democratização do privado, já que os diversíssimos alicerces do
controlo do poder se baseavam então em mundos fechados que pressupunham ditames
permanentes sobre a esfera privada (religiosa, política e sobretudo moral) e,
naturalmente, sobre a esfera pública, geralmente baseada numa máquina
muito mais estriada, violenta e rígida do que hoje (onde a opinião pública e a
cidadania são factores de liberdade e abertura). Daí que, para além de
entender um desabafo como um desabafo, ou a libertação de sentimentos
íntimos como uma simples libertação de sentimentos íntimos - o que é
intemporal -, o que eu acho é que um desabafo e a simples extroversão da intimidade
têm hoje um significado e uma escala novos face a tempos nitidamente
modernos, como os que eram vividos até há duas ou três décadas.
Basta lembrar o liceu que frequentei entre 1964 e 1971 para atestar tal facto.

terça-feira, 26 de agosto de 2003

Das novidades da blogosfera

Um dos aspectos que mais me fascinam nos blogues (não tenho a opinião do diabo sobre a dicotomia blog/ blogue) é o modo como neles se supera a divisão público - privado que, para o bem ou para o mal, é uma das traves mestras do espaço público actual. Do mesmo modo, as ficcionalidades que entram em cena no mundo dos blogues estabelecem relações interessantes e variadas com diversos níveis da realidade, o que faz com que a blogosfera reflicta igualmente uma outra característica da actualidade que se traduz pelo esvair do binarismo rígido e moderno entre real e ficção. Ousando superar a rigidez clássico-moderna que traçava as dicotomias público-privado e real-ficcional, os blogues inserem-se dentro dos mundos possíveis que estão a renovar profundamente o campo comunicacional contemporâneo em que vivemos. Juntemo-los ao cibermundo, às implicações da instantaneidade tecnológica, à aceleração das imagens e à transformação da cultura territorial na cultura global do ser-em-comum.
Curiosamente, alguns amigos e alguns não-amigos têm-me feito chegar mensagens onde se referem aos blogues como ostentação e exposição desnecessária, sem, no fundo, compreenderem o que é apenas o resultado objectivável das novas tendências nas relações público-privado. E mais: sempre que exponho, de modo espontâneo, algum aspecto mais privado neste blogue, tenho logo reacções menos aconselháveis. Há quem não entenda mas há, também, quem não tolere o que são, afinal, as normais consequências do tempo em que vivemos.
Compreensão à parte, quem anda à chuva...
Dreams



Inventar histórias, dizer qualquer coisa sem ter que o dizer. Fazer o que há a fazer sem ter que irremediavelmente fazê-lo. Redescobrir o espaço vital com que haveremos de preencher o inevitável que nos prolongará o justo delírio. Olhar em volta e vermo-nos nesse movimento sem movente. Dançar com quem se ama e esquecer a paisagem, a lua, o piano, a cortina a esvoaçar sobre os antigos tabus da idade do ouro. Tornarmo-nos no único brilho, com que nos despojamos de nós mesmos e nos entregamos, para sempre, ao querer. Aos outros. À miragem do que poderá ser a beleza. Sentirmo-nos na pele de quem sabe que a identidade é um repto, um despique, um desafio e jamais um rumor de totalidade; de completude. Discorrermos nesse filme sem montagem, ao longo do qual já nos esquecemos até do antigo medo do escuro. Descobri-lo a sorrir, se possível, e conformarmo-nos com o que está para além do que podemos ser. Todos os dias.
Ainda o romance

É difícil manter o ritmo de diálogo com o quotidiano, quando a escrita do romance absorve completamente. No entanto, entre as escritas do mundo, há um céu que hoje está muito azul. A terra cansada, à espera do grande recomeço. Um brilho sem nome a atear já o fim do Verão e a denotar a maré próxima do Outono.

domingo, 24 de agosto de 2003

Rotina

A trabalhar no romance há uma semana. Ontem e hoje foram os melhores dias. A juntar memórias do protagonista com as acções do presente. A correr razoavelmente, mas tudo dependerá, no futuro a breve trecho, das ligações e das imensas pontas que vão ficando intencionalmente por concatenar.

Amanhã, dia 25, faço anos. Rotina. Para o ano não será, até porque vai ser número certo.
Ferro falou

Ferro falou e o trabalho de imagem foi de facto um fracasso, já que a presença de rostos no cenário fez esvair e chegou a rarefazer, no directo, a própria mensagem do secretário-geral do PS. Era ver os sorrisos, os suspiros, as concordâncias algo forçadas, os bocejos, alguma altivez, os rebates emocionais, os segredos e os comentários. Mais do que denotar o que Ferro teria a dizer, a imagem criada conotou uma amálgama variada e ruidosa de factos.
Quanto ao que foi dito, vejamos os cinco Menos e os cinco Mais:

Mais:
1– Utilização da máxima de Carrilho - sociedade versus economia de mercado;
2- Ênfase ao necessário e paralisado investimento público;
3- Denúncia da política governamental conivente com a perda de fundos da EU;
4- Referência à falta de uma política específica para o ambiente;
5- Realce dado à competitividade que o alargamento da UE irá em breve exigir.

Menos:
1- Colocar Portas como adversário número um do discurso;
2 -Aproximação infeliz a Sérgio Vieira de Mello;
3- Espírito generalizadoi de cataclismo baseado na máxima “este país vai de mal a pior”;
4- Prematura associação dos incêndios à denúncia da política governamental;
5- Análise da administração pública em função do putativo “controlo pelo medo”, quando deveria ser considerada como um dos alvos de urgente e radical reforma.

sábado, 23 de agosto de 2003

Milénio miniscente
Reparo agora que foi ultrapassada a barreira de 1000 visitantes (desde 6/8, dia em que instalei o contador). É o chamado milénio miniscente.
A cinco posts do fim, ainda tivemos um interessante diálogo com o guerra e pas. Agora que, ocasionalmente, passei por lá, verifiquei que o interessante blogue tinha acabado. E não foi de quaquer maneira. Leiamos:

Nos filmes que via em criança sempre me fez confusão que no fim aparecessem duas palavras: "the end". Mas hoje percebo que qualquer coisa que acaba tem, pelo menos, o direito a mais que uma palavra.

Este blog termina aqui.

é o fim


Conclusão: nos blogues, tudo é efémero.
Em vão

Afinal, parece que não encontraram a verdadeira Nefertiti .
Caricatos e breves

A cena caricata que contei há alguns dias, num registo de gozo para com os fantasmas risíveis do nosso quotidiano, acerca de uma máquina de café que ganhei num hipermercado e do poemita que antes para tal escrevera... tem sido motivo de alguma chacota um tanto boçal. Quer em blogues - não os vou referir -, quer em duas cartinhas preciosas que não irei decerto transcrever (era essa, porventura, a intenção dos seus notáveis escribas cobardemente anónimos). E porquê ? Porque há quem goste de levar a sério o que é a brincar, porque há quem goste de levar intencionalmente a sério o que é a brincar e, ainda, porque há quem leve ingenuamente a sério o que antes foi dito com ironia.
Lembram-se do que disseram, quando o Eduardo Lourenço escreveu que o "fascismo nunca tinha existido" ?
Em terra de repolhos, cai a mancha no melhor espertalhão.


Aforismos servidos à noite

Diga-se o que se disser, existe sempre um momento em que agir é já o próprio esquecimento de temer fazer ou agir. E assim nos cumprimos e chegamos a ser, talvez para cuidar da matéria do próprio e talvez inevitável esquecimento. E esse caminho que leva, a dada altura, a ter que fazer, a ter que sobreviver, é, provavelmente, o que faz do homem um ser.

Escrever um romance é descobrir o porto de abrigo de ondem partem sobretudo fantasmas (para Isidoro de Sevilha, fantasma é toda a imagem que formamos a partir de uma imagem desconhecida, “apariencias de un cuerpo liberadas de la sensación corpórea”)

Suspender a estrada da dúvida e saber olhar em frente, durante alguns segundos. Quando o jogo e a fúria desenham a silhueta quase visível do mundo. Nesse local incerto e aberto pela imaginação, saltar, enfim, de plano a plano, até encarar a luz inocente que a grande árvore da vida fez esquecer. Que esse breve voo possa alimentar o dissabor do tempo contínuo e homogéneo. Que esse breve perpetuar possa levar a discorrer ao longo do desmedido desacerto com que se pensa o conhecimento e com que se abisma a ficção. Que essa breve miragem possa fazer esquecer, sob a forma de riso, o coração milenar do primeiro porto de abrigo.

sexta-feira, 22 de agosto de 2003

Em breve aparecerá em forma de livro uma surpresa nesta terra da blogalização: um livro chamado 50 POEMAS PARA A BLOGOSFERA. Diz o pequeno prefácio que acabo de ler:

A blogosfera é uma nova parte da realidade. Nela habitam seres à procura de um tempo que seja sobretudo presente. Não há memória na terra dos blogues, a não ser que seja forçada, estriada, procurada a ferros. Também não existe futuro na blogosfera, a não ser a espera pelo impacto, a expectativa do diálogo cruzado, ou a ligação (link) inesperada.

Uma poética da blogosfera procurará descer e subir pelos veios que se desenham nestas temporalidades do instantâneo. Não cederá ao mundanismo mais radical tão em moda, mas não deixará mundanamente de ironizar a banda larga com que a vida é comentada, a todo o vapor, em cada impulso, em cada ímpeto vivido e em cada instante do quotidiano.

Ficam, portanto, estes 50 poemas para a blogosfera, todos eles amalgamados ao longo de vários dias em que bloguei de manhã à noite. Talvez neles se entreveja alguma empatia simpática com a blogalização. Talvez sim, talvez não. Deixo-os ao sabor da imaterialidade com que todos os dias se joga no prazer sigiloso do cibermundo.


Mantenho o sigilo quanto ao autor. Parece que a coisa é para sair a público neste Outono.
Mantenho para debate a seguinte questão, relacionada com o texto sobre literatura e blogues, - poderá existir alguma relação entre as tendências da ficção literária contemporânea e a emergência dos blogues?
Aqui por baixo surgem três reacções e comentários. Esqueci-mne de colocar o itálico nos textos citados. Mas compreende-se, creio. As minhas desculpas. Verdura blogueadora.


Sobre a questão lançada aos blogues, antes de ir para a praia - ? – deixamos aqui registo de três comentários com os respectivos comentários:

Escreveu a Espuma dos dias:

Claro que sim. Se o tema for assunto no âmbito dos blogs portugueses terei
todo o gosto em participar.Julgo que em português, está quase tudo por dizer sobre a escrita autobiográfica.

Escreveu o Guerra e pas:

A Literatura, como bem sabemos, reconcilia-nos o mundo. Não com o mundo, mas o mundo. Atrevo-me a dizer que quando estamos a ler, estamos de facto à procura da nossa resiliência, da nossa capacidade de nos esticarmos e, como os elásticos, de acumularmos energia – vida – que possamos consumir. Até à próxima leitura.

Essa reconciliação não existe como coisa já dada. Há uma codificação da literatura que no-la permite entender de determinada forma. Essa forma é pós-iluminista e envolve a escrita e a crírica, a expectativa e a retórica, o amplitude que preenche a sua ficcionalidade e os filtros poéticos que a limitam dentro de certos parâmetros. É na mudança abismada de mundos que vivemos nas últimas duas décadas que creio que essa codificação da literatura irá entrar em estado de turbulência. Parte dessa turbulência é já parte do corpo textual que se está a agitar e a crescer nos blogues. Será ?

Na neurociência, e nas ciências psi, há um curiosíssima visão do nosso mundo: vivemos no passado. Um passado de pedaços segundo, o tempo que demoramos desde a captação do mundo até à sua digestão. E nas ciências mais exactas, mas amplamente especulativas, aquelas que querem compreender e explicar o universo, há uma teoria, incapaz de prova, que congela a nossa ideia de tempo como qualquer coisa que passa, para dizer que na realidade cada instante das nossas vidas corresponde em si mesmo a um universo. Assim, viveremos de fatia em fatia: cada correlação de nós com o mundo é um carpaccio. Haverá um universo em que nos apaixonamos; um universo no qual vamos abrimos o livro que mudará os próximos universos. Os nossos.

Penso que as neurociências estão a dar passos decisivos para a compreensão dessa coisa que se opera no agora aqui sempre diferido, é certo, entre o terreno do proto-si e as sucessivas representações que nos conduzem à montagem do filme na consciência alargada. O meu ensaio Músicas da Consciência sobre Damásio bate nessa tecla, precisamente.

O livro começa a subir dentro de nós, a ser menos um livro e mais um livro que ficará connosco, quanto mais sentirmos que quem escreve é capaz de escrever aquilo que lhe é intolerável. O problema é que até nós, o leitor mais exigente do mundo, o leitor que mais ambiciona ser leitor, estamos embriagados pelas contingências e imobilizados pela nossa própria armadura de prévios. E quem escreve sabe isso e portanto tende a escrever do que não lhe interessa (ou que lhe permite refúgio ou adiamento), como quem coloca placas de sinalização pelo livro todo. Os locais, os ambientes, as descrições, as piscadelas de olho culturais, as personagens acessórias, a cinematografia possível de uma história que recebemos por transfusão. Na maioria dos casos, são os sinais indicativos que ofuscam o resto e esse resto mirra irremediavelmente. Ora esse resto será, em princípio, da ordem do intolerável e, talento e humanidade existam, será um intolerável mais banal que terrível, porque a nossa vida é bem mais comum do que aquilo que gostamos de pensar.
O erro está, talvez, talvez, em ler um livro como um todo. Ou por outra, ler um livro é ter de esperar tudo isso. Num restaurante, por melhor que seja, não nos escapará a visão do prato sujo, da mousse a desfazer-se, da garrafa vazia e tombada. Cabe-nos desejar saborear apesar de tudo.
Num blog há mais provocação ao intolerável do outro que assunção do nosso próprio intolerável. Nesta medida, e até ver, os blogs têm pouco de literário. Isto com excepção de alguns posts, sem surpresa, os que mais entram em cada um de nós e se aninham dentro daquilo que somos.

Talvez o problema não esteja no objecto livro, mas na literatura. Era aí que a questão se iniciava. “A provocação ao intolerável” no confronto com o quotidiano mais dessacralizado e desideologizado é, na óptica do estudo de Miguel Real, um dos dados que aproximam a literatura actual de novas tendências ainda não codificadas a vir.

Enfim, acerca desta questão, damos ainda conta da apologia dos cruzes canhotos:

Sobre a questão lançada pelo Miniscente, os bem-parecidos cruzes canhotos, unanimistas por tradição, dizem que “toda a gente concorda”, para além de que lêem o “pipi” e afirmam solenemente que se assumem como “grunhos” na matéria.

quinta-feira, 21 de agosto de 2003

Cheguei de novo a terra firme, após alguns dias a ver o mar e a escrever durante as tardes. Imenso correio e memórias de factos dispersos que terão feito o mundo. O mais grave, o bárbaro assassinato de Sérgio Vieria de Mello por terroristas num momento em que os consensos diplomáticos estavam em boa marcha. Fica para a história, não apenas o grande diplomata, mas sobretudo o homem que tentou impor, nos momentos mais difíceis e em cenários complexos, o universo do diálogo contra a irracionalidade e a colegialidade contra a perversão intolerante e sem rosto. Como pode certa esquerda mais cristalizada falar do "monstro", confundindo, neste momento delicado, a árvore porventura incendiada com a floresta que ameaçava recompor-se, a pouco e pouco ? Eu também estou de acordo: Há quem tenha ensandecido. Também não me parece que seja (o governo democrático de) Israel que esteja, neste zénite do Verão, a prejudicar a paz. Pela primeira vez, é o próprio governo palestiano a ameaçar perseguir aqueles que há muito deviam ter sido seriamente perseguidos: os bandos terroristas, cuja cultura apenas tem a face da morte. E mais nada. Basta !

sexta-feira, 15 de agosto de 2003

Peço mais uma vez desculpa pelo facto de algumas imagens, devido a enigmáticas razões, terem decidido converter-se em cordatas cruzes vermelhas deitadas em quadrados de cor branca. A escolha da cor é simpática (em Roma, os deuses não as ouviram, é pena !), mas o resultado, no blogue, já não o é tanto.


Imagina-se o pior. No tempo dos textos apocalípticos, acreditava-se que Deus se podia via após uma viagem ao céu. Agora, acredita-se que o colapso da electricidade estética pode ser augúrio da pior das viagens. Chegou a pensar-se nos terroristas que andam aí de olho vivo à procura de um ponto do fio da meada para atacar. Acredito que andam. E não confundo o império com a democracia. A democracia em primeiro lugar, seja com quem for, seja contra quem for. Afinal, foi calma a noite em NY. É no cair do Verão que elas acontecem.


Os nadas da malta cruzada

A malta do cruzes canhoto está mais ou menos como eu estava, quando me pus a escrever um livrito de poesia em 1981, chamava-se o Fio de Prumo e era só sexo. Foi logo a seguir a Aljubarrota. Depois, percebi que o importante era cumprir o acto e não tanto devorar o assunto com a pena. Até porque há sempre uma mão amiga. Temos umas esquerdas freaks muito giras entre nós, de tal modo que não põem sequer em sentido, ou em estado erectus a nossa versátil e mais inteligente direita blogosférica. Eis a prosa assinada no simpático cruzes:

SÓ SEXO - Espantoso o que quatro letras podem fazer pelo contador de visitas de um gajo. É só gente a vir (sem "se") à procura das "tailandesas+nuas", "homens+musculosos", "falos+gigantescos" e "camila+coelho+nua". Aconselho todos os novos blogues, como o Miniscente ou a Quinta Coluna, a polvilharem generosamente os respectivos blogues com termos como "mamas", "tetas", "grandes mangalhos", "pornografia grátis", "meninos bem dotados" e, o grande decuplicador de visitas, "Marisa Cruz nua". Reconheça-se que aqui o blogue pirosexual não precisa de grandes acrescentos e ficamos contentes por o nosso intelectual favorito da blogosfera, o Abruto, mostrar grande interesse em expandir os seus conhecimentos na área das lulas taradas.
Adiciono que foram acrescentados novos blogues de interesse aqui na lista ao lado e duas novas categorias: a dos blogues religiosos e a dos ecoblogues, os blogues que se dedicam a reinterpretar de forma pessoal a blogosfera. Bem-vindos sejam todos.



Para além de não faltar nenhum "p" no texto, não se esqueçam, rapaziada, de colocar um linkezinho para o Miniscente, que isso de só ligar ao Abrupto e aos "fachos" é coisa de dar alguma inveja. Sobre a questão da literatura e dos blogues, também acho, estou de acordo convosco: mais vale gargarejar com sumo de limão do que ler acerca do riso em Kant (e que era, cito com a devida solenidade: "O riso é um afecto resultante da súbita transformação em nada de uma tensa expectativa" C.F.J.).

Estou longe. De longe, soube do relâmpago que caiu na cascata da M. Monroe. Fragilidades. Numa galáxia onde os terroristas andam à solta e de olho vivo, esta de ontem foi mesmo do tipo do cobertor completamente levantado. Rei nu, não como o de 1977, mas como o do imperador impoluto que deixa cair a espada sobre o dedo do pé. A democracia não se pode guardar assim, com lanças de cartolina. Deixo as queixas e leio jornais sem sumo, bebo sumo sem gelo; como gelados sem baunilha, olho o mar. E nada mais agora existe. Estou longe. Quando regressar a terra firme, responderei às mensagens e à questão acerca dos blogues e da literatura que ante-ontem propus. Já há respostas interessantes. Ciao !

quarta-feira, 13 de agosto de 2003

Ver. Estar em vez da montagem. Puxar a corda e fazer dela uma história. Um novelo de cenas. Um drama. Ver. Passar por dentro das coisas e domar a retina. Calar em vez de ver. Calar como tortura consentida. E depois esquecer a montagem e repetir o repetido. Puxar a corda, a história, o drama. Ver sem os olhos. Mais não ver do que o simples efeito criado pelas mãos. Paisagem sem vista, estrela subterrânea, escritura, dogma. Ver com a paisagem, significar o telos. Sorrir, afinal.

Irei sair uns dias, mas deixo para debate a seguinte questão, relacionada com o texto de hoje sobre literatura e blogues, - poderá existir alguma relação entre as tendências da ficção literária contemporânea e a emergência dos blogues?


Há menos de uma semana, o jornal Avante desatou a elogiar de forma frenética a figura de Estaline. De facto, o PCP não entende, nem nunca entenderá que a mais visceral intolerância, que o fascismo impiedoso, ao lado do de Hitler, fica irremediavelmente colado a Estaline, à antiga URSS e às suas memórias trágicas. Com o pretexto de criar um paraíso na terra - após as pretensões milenarmente repetidas dos que impositivamente diziam acreditar dum paraíso no céu - a antiga URSS pintava com cores fraternas o que era, hoje não há dúvidas, um ninho de barbárie. Leiamos um pouco desse texto do Avante de 7/8:

"O 50º aniversário da morte de Estaline (05.03.1953) foi comemorado sem indiferença e com respeito na antiga URSS, mas noutros países com o habitual «grande espectáculo» que os «media» ocidentais costumam dedicar a todos os acontecimentos em que Estaline se distingue. Uma vez mais, vieram à baila os muitos milhões que teria mandado executar e, enfim, toda uma série de horrores a que a História, a verdadeira, não consente aval. O nome do escritor Alexandr Solzhenitsyn oferece constante fonte de apoio a todos os especuladores na matéria. A sua afirmação de que os «excessos» de Estaline teriam conduzido milhões de pessoas à morte, serve-lhes às mil maravilhas. Mas parece que as coisas não foram bem assim..."(...)"A acção de Estaline fez tremer os imperialistas (e ainda faz ...)"(...)" Os «kulaks», obviamente, foram liquidados como classe social. Mais tarde, em 1935, Estaline tinha, ainda, esta famosa conclusão para nos dar: «Deve compreender-se que de todas as preciosas formas de capital que existem no mundo, a mais decisiva é formada pelos homens e, entre estes, a mais preciosa são os quadros partidários»."

Quem não entende - e não quer ver - o que está ali mesmo diante dos seus olhos é fóssil, fossiliza, fossilizou há muito. Os meus pêsames ao fóssil.
Uma vez, creio que foi em 1972, um boca de sapo (em pequeno chamava-lhe bico de pato) deu-me a maior boleia da vida. De Burgos até Calais. Boleia directa e, a larga maior parte, durante a noite. Das miniaturas que tenho aqui no escritório, sobressai a desse bicho (DS 19) que a citroen fabricou. Coisa inigualável a que acabei, agora mesmo, por dedicar um poema (poesia, portanto, para a blogosfera):

Colecciono miniaturas de automóveis,
janelas a crepitar como berlindes
pneus finos de aparo
faróis de alumínio baço, enfim
crisálidas repartidas por mil
sombras feitas pela memória
do deslumbramento.
Olho para os meus automóveis
de manhã à noite, vejo-os
pousados, imóveis sobre o computador
e o mais elegante é o bico de sapo,
espécie de peixe aziago e doce
que tem a capota vermelha
e a paciência já em sangue.
Peço desculpa pelo facto de algumas imagens, devido a razões inimagináveis, terem decidido converter-se em elegantes cruzes vermelhas deitadas em quadrados de cor branca. A escolha da cor é simpática (oxalá, hoje, em Roma, os deuses me ouçam), mas o resultado, no blogue, já não o é tanto. É verdade, caros blogueadores, cuidado com o Blaster, assim se chama o vírus que anda espalhado, desde o passado dia 10, na rede e que, não sendo perigoso (é de grau 3), se espalha com muita facilidade, condicionando o sistema do Windows a encerrar e a reabrir permanentemente. Não deixa trabalhar, por outras palavras.
Prémios e cupões

Estando eu em compras num hipermercado, já há mais de um mês, lembro-me de ter preenchido um cupão onde era pedido que se escrevesse qualquer coisa, desde que relacionasse uma conhecida marca de café, a Delta, com duas topografias, a saber, Manaus (cidade) e Timor (país). Hoje mesmo, imagine-se, recebo um telefonema a comunicar que me havia sido atribuído o primeiro prémio. Ganhei, desta forma, uma máquina de café de design cândido e recatado - era esse o primeiro prémio - e é evidente que não resisto a deixar aqui, aos olhos de toda blogalização, a lírica prosa que me deu este honroso e distinto galardão: “De Manaus a Timor/ É companhia esbelta/ Bebe-se com Amor/ E tem o nome de Delta”. Já sabe, caro blogueador: não hesite em preencher um cupãozinho destes. Até porque a sorte, a verve e o talento nem sempre andam de mãos dadas. É aproveitar, é aproveitar...




Blogues como instrumentos da libertação da literatura ?

Numa espécie de conclusão do seu livro, Geração de 90 - Romance e Sociedade no Portugal Contemporâneo, que acabo de ler, Miguel Real sistematiza as dez características do romance da geração de noventa. Eis, sintetizando, o que nos revela o autor:
Trata-se de uma literatura que cruza e atravessa tendências fechadas e demarcadas de tempos anteriores (realismo, descritivismo, subjectivismo e desconstrucionismo), que “alia o objectivismo mais chão ao subjectivismo mais delirante” e que insiste no perspectivismo narrativo, elidindo a fixação do eu. Semanticamente, faz do discurso (e do seus textos) um verdadeiro jogo que edifica autotelicamente a sua própria realidade. Para além disso, recolhe expressões espontâneas das origens linguísticas mais diversificadas e abre-se radicalmente, quer a domínios estilísticos exteriores à língua portuguesa, quer a “processos” de outras formas estéticas (publicidade CD-rom, guiões de filme e acrescentar-se-ia também, talvez em germe, alguma contaminação com o espaço do cibertexto). A finalizar, registe-se ainda uma “vivência integral da dimensão do presente” e um manifesto realismo de cariz urbano.
Esta descrição permite-nos acentuar a importância de quatro direcções muito pertinentes da ficcionalidade contemporânea. Estaríamos, assim, perante uma ficcção que supera as modas e adere ao pluralismo dos modos; que cria modelos de enunciação multifacetados, plurais e horizontais, tendendo a banir a verticalidade da narração a uma voz; e, por fim, que adere a uma abertura sem limites ao que sempre foi o de fora do alegadamente tradicional perímetro literário. Para além destes três factos importantíssimos, o mais fundamental joga-se na conversão da literatura ao território do presente, do imediato, do agora-aqui.
Nessa medida, toda esta literatura recentíssima, a perseguir inquietamente novas áreas de propagação e de invenção, concentra na actualidade o curso do seu olhar imaginário e acaba por subjugar, quer o que poderia ancorar-se em estratégias de recuperação do passado ao sabor do controlo (putativamente ideológico) do futuro, quer o que poderia ser uma antecipação utópica do tempo por vir. Estes pontos de diagnóstico estão, de facto, de acordo com pontos de vista que tenho advogado. Basicamente, porque o facto de vivermos hoje em dia em acentuado tempo real, ao sabor de fluxos instantâneos e, sobretudo, numa rede intervivencial que não conhece fronteiras, mas apenas nós e interfaces comunicacionais (amiúde inesperados), está já a reflectir-se decisivamente na própria literatura (e nas tensões que esta já está a criar junto da própria comunidade).
Esta é a principal conclusão que poderíamos retirar (e até verificar a partir do material fornecido por Miguel Real) relativamente às tendências literárias do presente e do seu querer desenhar novas espacialidades. No fundo, parece-nos extremamente ultrapassado a questão de ter que se saber o que é um romance ou o que é a literatura (e se ainda existe), num dado momento e sociedade. O mais importante, para além das essências e da ontologia cristalizada, é saber quando é que essa literatura funciona, ou quando é que essa literatura se transforma de facto numa ferramenta activa do tempo vivido e a inventar. Goodman já há muito havia enfatizado, noutro contexto, é certo, que não interessava tanto o que é a arte, mas antes e definitivamente quando há arte, isto é, quando é que, numa dada actualidade e comunidade, ela funciona simbólica, operatória e sintomaticamente enquanto tal.
Este regresso da literatura ao seu movimento próprio, implicando o corte do cordão umbilical a outras narrativas históricas de que secularmente era e foi dependente, permite-nos também compreender que a arte contemporânea já não é uma arte de vanguardas, ou seja, na contínua e obsessiva procura da antevisão de um tempo que não é, ou seria, endemicamente o seu. Como António Pinto Ribeiro escreveu no Público, há um ano (25/08/02), na linha de Virilio, “o aparecimento das vanguardas dá-se no período em que era credível terem uma velocidade maior do que a durabilidade do tempo e assim poderem antecipar a história. As alterações sofridas na relação com a comunicação - agora tudo se passa em tempo real - e a suspensão das utopias acabaram com as vanguardas. Os artistas contemporâneos não têm a obsessão pela antecipação da história a qualquer preço e, pelo contrário, privilegiam o espaço e a geografia. Em relação ao tempo, a nossa cultura artística contemporânea tende a actualizar os operativos com vocação universal”.
Esta reflexão aplica-se à inquietação presente da literatura. Por um lado, na sua radical ancoragem à actualidade (preocupação já viva, noutros contextos e domínios, no “presente” de Foucault, no “instante” de Nietzsche, no “transitório e efémero” de Baudelaire, ou no “agora” de Benjamin, entre outros). É a primeira vez que a literatura deixa de depender de horizontes teleológicos, ou outros que não sejam genuinamente os da sua ficcionalidade, afinal sempre adstrita e subserviente a outras ordens de metanarração. Por outro lado, na sua entrega ao plano da contemporaneidade, isto é, à pura rede universal de vasos comunicantes e coexistentes com um tempo actual no seu viver-se e não, portanto, à simples deriva comandada por desígnios de controlo do tempo - sobretudo do futuro - e naturalmente da esfera do próprio poder (escatológico, ideológico, ou outro).
Creio que a via dos blogues entronca, ainda que parcia e inconstantemente, neste processo de libertação da literatura (tal como a entendemos hoje, na sequência ainda das codificações iniciais do fins de setecentos e do próprio alvor romântico).





As sete caras do nada

1 Nada como interior.

Van Gogh escreveu a propósito de um estudo que estava a realizar no interior do seu quarto, dias antes de Gauguin se vir juntar a ele, em Arles, no Outono de 1888: "Diverte-me extraordinariamente o trabalho de tirar do nada esse interior, com uma simplicidade digna de Seurat" .
Quer dizer que Van Gogh recorta, re-tira ou molda, a partir de um conjunto avultado de possíveis (de conteúdo e de expressão), a forma precisa que torna palpável o seu escorço, o seu arquipélago de figuras, ou, se se quiser, o seu estudo.
É uma fuga involuntária à tentação de ficar colado ao branco irredutível do animal indomável. Daí a exaltação, a vitória, o êxtase do pintor holandês.

2 Nada e os pontos de partida.

Foi Dionísio, o Exíguo, treze séculos antes de Van Gogh, quem concluiu que Jesús deveria ter nascido a 753 A.U.B (ad urbe condita - data contada a partir da presumível fundação de Roma, confirmada ou legitimada, já há séculos, pelo designado ‘código juliano’).
Segundo os cálculos de Dionísio - feitos por encomenda do Papa João I -, o primeiro ano da Cristandade deveria passar a ser contado a partir do primeiro de Janeiro do ano seguinte, isto é, de 754 A.U.B (momento da circuncisão de Jesús, após a sua primeira semana de vida).
Contudo, por não dispor do número e sobretudo do conceito de zero - criação indiana e depois islâmica dos séculos VIII para IX (S. Gould,1998:22/3 ) -, Dionísio esqueceu-se de baptizar o ano de 754 como ano 0 - ícone, índice e símbolo do nada - acabando antes por designá-lo, para a posteridade, como se fosse o verdadeiro ano 1.
Dionísio criou tais problemas por não ter tido em conta um certo nada como ponto de partida, que muitas das conjecturas posteriores acabariam por entender o tempo, não tanto como uma régua bem separada por cortes exactos e precisos, mas entes como uma espuma confusa, difusa e turva.

3 Nada e os sentidos da falha.

Lê-se no início das Poésies de Mallarmé: "Rien, Cette écume. Vierge vers/ A ne désigner que la coupe" : (Nada, Esta espuma. Verso virgem/ que não designa senão o corte). Eis o nada, ele sim, mais espuma e fantasma, do que corte preciso, rigoroso e aritmeticamente existente.
Guio durante a noite e que observo, cansado ou não, a linha tortuosa e persistente das bermas, pintadas ou não no asfalto imaginário da viagem. É uma mancha turva entre faróis e o re-corte dessa fronteira entre estrada e não-estrada. Confesse-se que entendo, percebo e compreendo, porque represento (a estrada como faixa...), construo identidades (a estrada como tipo de caminho...) e arrumo conceitos (a estrada como um tipo de diagrama a ligar x e y).
É verdade que, para além do conceito delimitado e fechado em si mesmo, existe também o caos, a estrada sem bermas e sem dimensionalidade (à David Linch); é verdade que também existem as esferas da não-representação, abertas caleidoscopicamente para todos os lados (a sintaxe das cibervias); é verdade que também existem os conteúdos fechados no conceito que, subitamente, se dispersam como bons nómadas a errarem num espaço para fora do espaço (as bandas do hipertexto).
É verdade que do outro lado da representação, das simetrias forçadas, das harmonias adquiridas, das categorias imaginadas, existe o fulgor da grande deriva sem nome, da imensa balbúrdia indeterminada, da gigante entropia sem corpo, da desmedida figuração à margem da ordem dos ritmos, hábitos, memórias e delimitações. É verdade que, para além da sintaxe do paraíso apolíneo, também existe, na imaginação humana, esta outra implosão explosiva que nos arrasta, ou para o inferno, ou para a doença, ou ainda para a beleza das falésias nocturnas, onde aquilo que flui vive da metamorfose imponderável do próprio fluir. Um nada é sempre algo próximo do abismo.
Entre amálgamas de representações, por um lado, e o caos inomeável, existe, no entanto, qualquer outra coisa. Uma mancha, as asas de um fantasma. Chamemos-lhe a falha, a fenda, o fractal, ou, por outras palavras, essa espécie de não-ordem que se intromete entre a dispositio apolínea da nossa comunhão conceptual e a quase infernal e abismada melodia do caos. Nessa passagem, nesse estar-a-meio, nessa media res do corso da vida, ter-se-ão entendido alguns dos dispersos sentidos do nada que, num dado tempo, se arrumaram, ou em conceito, ou em chuva aleatória de estilhaços.
Seja como for, existe sempre um nada adiado ou desconhecido; o que quer dizer que o nada se inscreve em qualquer coisa, se substancia sempre em algum dado. Nem que seja, entre a espuma, o corte e uma certa forma de imaginar o que não tem fim: o possível eterno.

4 A eternidade como uma espécie de nada.

Martin Heidegger e Jorge Luis Borges responderam um ao outro, sem o saberem, a esta mesma questão: a das eternidades sonhadas pelo homem.
O primeiro, ao afirmar que a “finitude do tempo só se tornava plenamente visível, quando o 'tempo sem fim'" se explicitava, por contraposição "à finitude” ; o segundo, ao afirmar que “ninguna de las eternidades que planearon los hombres”(...)”es una agregación mecánica del pasado, del presente y del porvenir. Es una cosa más sencilla y más mágica: es la simultaneidad de esos tiempos” .
Conclusão: a eternidade - ou a infinitude - torna-se, deste modo, numa espécie de negativo da finitude (e vice-versa), razão pela qual, no seu dicotomismo, o fim não pode nunca ser uma ruptura, ou um deslize para o abismo irrepresentável, mas sim um espaço derradeiro onde o tempo acaba por ser contido.
É nessa contenção do existente (o tempo existente é apenas o tempo concebível) que o nada nos acena. De longe.
Como um fantasma.

5 Nada fáustico.

No seu Del sentimiento trágico de la vida , Miguel de Unamuno, pôs a descoberto o que, à data, já era um sentimento comum de desconfiança face ao ímpeto - ou fuga para a frente - que o sujeito moderno parecia querer manifestar. Diante do “hombre concreto, de carne y hueso” que, no início da obra, surge identificado com “el sujeto y el objeto” de toda a filosofia, depara-se, com efeito, a maior das interrogações. O professor de Salamanca exprimi-la-ia do seguinte modo: “Progresar, para qué ?”. Adiantando-se à questão, Unamuno haveria de comentar e sobretudo alertar: "la famosa maladie du siècle, que se anuncia en Rousseau"(...)" no era ni es outra cosa que la pérdida de la fe en la inmortalidad del alma, en la finalidad humana del Universo. Su símbolo, su verdadero símbolo, es un ente de ficción, el Doctor Fausto.”
De facto, por mais macro-sujeitos que o limiar do século XX tivesse conhecido (a ‘classe’ marxista, a ‘humanidade’ comtiana, o ‘espírito’ hegeliano) e por mais performances que o sujeito livre tivesse exibido na novíssima arena dos artefactos e da urbanidade modernos, a questão persistia. Não era tanto a questão da miséria pascaliana do homem a sós sem Deus, mas era sobretudo o desnorte, ou a falta de fé, face àquilo que, durante séculos - e de diversas maneiras -, havia sido traduzido através da palavra ‘salvação’. Ao fim e ao cabo, é esse o desígnio que sempre perseguiu a longa ontologia (ou utopia) da imortalidade. As palavras quase mágicas enunciadas por J. Goethe e imputadas, na hora da morte, ao seu Fausto, parecem aliás atestá-lo:

(...)”Fausto- Que só da liberdade e vida é digno
Quem cada dia conquistá-las deve!”
(...)”Pudesse eu ver o movimento infindo !”
(...)“Mefistófeles-Consumou-se !
Coro- E acabou-se tudo !
Mefistófeles- Acabou-se ! Palavra sem sentido !
Acabou-se porquê ? acabou e nada
É tudo a mesma cousa ! Então que vale
A eterna criação ? Cousas criadas
Ao nada reduzir ! ‘ Está acabado’!...
Que quer isto dizer ? É exactamente
Como se nunca fosse, e todavia
Circula, como tendo inda existência !
Preferira ao que acaba o vácuo eterno.”

Enquanto Fausto sucumbe, após a grande ilusão que se transforma, porventura, na metáfora da própria transcendência perdida, ainda chega a afirmar o que jamais Sócrates, no seu tempo, teria podido afirmar: “Pudesse eu ver o movimento infindo !”. O verbo utilizado não é ‘saber’, ou ‘conhecer’; é antes, com toda a intencionalidade, - ‘ver’. Isso significa que, tal como nos relatos apocalípticos do séc. II AC ao séc. II DC, a descrença, ou a própria dúvida, impelem o sujeito a querer ver com os seus olhos a máquina que rege o perpétuo universal. Nesta medida, o sujeito ficcional reflecte a frustração que Mefistófeles depois aclarará, ao reduzir a zero a “eterna criação” e sobretudo ao equipará-la a “nada”. Por fim, Mefistófeles acabará mesmo por preferir o “vácuo eterno” (o impreenchível; o lugar da não-liberdade, ou da liberdade absoluta) ao que, queira-se ou não, ainda “circula” - ou permanece.

6 Nada metafísico.

Miguel de Unamuno parece acertar em cheio neste símbolo de todo o spleen da modernidade. A comprová-lo, bastará rever a questão que domina, do princípio ao fim, a Introdução à metafísica de Heidegger - “Porquê é afinal ente e não antes Nada ?” . A pergunta, para o autor, “gera o fund(ament)o de todo o verdadeiro questionar” e é mesmo reconhecida “como a questão mais originária”.
No fundo - repondo a dita questão no berço da modernidade - é como se do ‘nada’, o homem agora surgisse repentinamente para um recomeço total e se transformasse nesse ‘ente’ nostálgico de um ser que já nem consegue recordar.
A amnésia colectiva de que nos fala Bernardo Bertolucci ?

7 Nada como terra firme e deus como ser finado.

De qualquer modo, o desencanto pela modernidade começa no seio da própria modernidade e ninguém possivelmente o terá ilustrado melhor do que Nietzsche. No &124 de A Gaia Ciência , o autor parece narrar alegoricamente o facto - que poderíamos denominar por 'pecado original da modernidade’:

“No horizonte do infinito. Deixámos a terra firme, embarcámos ! Não podemos voltar para trás, mais ainda, cortámos todas as ligações com a terra firme ! Agora, barquito, toma cuidado ! Tens na tua frente o oceano ! É verdade que ele nem sempre ruge, por vezes espraia-se calmo, como se fosse seda e oiro, como um sonho de bondade! Momentos virão, porém, em que reconhecerás que ele é infinito e que nada há de mais terrível do que a infinitude. Ai da pobre ave que se sentiu livre, e se debate agora contra as paredes desta gaiola ! Ai de ti, se as saudades da terra firme te assaltarem, como se lá tivesse havido mais liberdade... agora que já deixou de haver “terra”."

A partida da ave que ousou ser livre é o próprio sujeito moderno, amaldiçoado por Nietzsche. Dele 'nada' se espera e o devir anunciado jamais se consumará; nem mesmo a ciência, atingido o seu horizonte ou limiar ilusórios, poderá valer ao desencanto humano. E porquê ? A resposta, concludente e quase apaixonada, surge curiosamente no Fragmento seguinte de A Gaia Ciência:

"Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite ? Não teremos de acender lanternas em pleno dia ? Será que ainda não estamos a ouvir o ruído que fazem os coveiros a enterrar Deus ?”(...)”Deus está morto ! Deus permanece morto ! E quem o matou fomos nós ! "

Já Maria Zambrano afirmara que o nada terá sido a última aparição do sagrado. Um fantasma sem rosto.
Nessa medida, todas as outras aparições acabam por ser, ou ilusão, ou dissimulado controlo do agir. Político, mas não só.

8 Nada branco e nada negro.

Disse Gilles Deleuze: "A diferença tem dois aspectos: o abismo indiferenciado, o nada negro, o animal indeterminado em que tudo é dissolvido - mas também o nada branco, a superfície tornada calma em que flutuam determinações não ligadas, como membros esparsos, cabeças sem pescoço, braços sem ombro, olhos sem fronte."
Por outras palavras, diríamos que foi esta a dança dominante das vanguardas do século XX. Pelo menos foi este o modo como as ditas oscilaram entre o informalismo complexo de Jackson Pollock e a action painting de Franz Kline, por um lado, e as figurações desconectadas de René Magritte e Max Ernst, por outro.
Segredaria o fantasma que se trata de magia negra e de magia branca, ambas na secreta demanda do seu próprio nome: o nada.

9 O nada e o rosto do mito.

E porque não há mito sem Pessoa, retenhamos ainda a emblemática metáfora do "Rosto da Europa" . Diga-se que, no poema, a "Europa" surge como jazendo sobre "os cotovelos", o mais recuado a Itália e o mais avançado a Inglaterra, de onde a mão sustenta o grande rosto. Este fita com olhar esfíngico e fatal o oceano, o mundo, o infinito; e "Este rosto que fita", é, afinal, para o poeta, "Portugal".
Na Mensagem, livro onde Pessoa introduz a ideia do rosto europeu, o poeta identifica o mito com esse "nada que é tudo", como se fosse "o corpo morto de Deus/ vivo e desnudo" que "aportou" em Portugal; e conclui nos versos seguintes: "As Nações todas são mistério/ Cada uma é todo o mundo a sós".
A última aparição do sagrado - esse "nada que é tudo", esse "corpo morto", mas "vivo e desnudo" - torna-se assim numa espécie de memória invisível, no mito, ele- mesmo; ou seja, na última das redenções criadas pelo do homem moderno.

segunda-feira, 11 de agosto de 2003

Publicou Caetano da Contacorrente o seguinte texto, na tentativa, presumo eu, de desculpar Pedro Santana Lopes do fait-divers Machado de Assis, como se o caso se pudesse incluir num qualquer ringue direita-esquerda, ou como se o caso merecesse grandes comentários. Mas o argumento é, de facto, digno de ser lido:

"Eu também o faria. Primeiro porque nada impede que escrevamos a mortos para lhes agradecer o que fizeram em vivos. É aliás uma prática que se podia e devia enraízar na cultura portuguesa...por outro lado, não consta que pelo facto de os destinatários das nossas missivas estarem mortos isso implique necessariamente uma menor taxa de efectiva leitura das mesmas! Mas ainda há mais... quem conheça a obra de Machado de Assis (sobretudo as Memórias póstumas do Brás Cubas), sabe muito bem que a C.M.L. estava a corresponder-se com o Brás Cubas... Não percebo tanta borbulha infectada por causa de tão nobre agradecimento... Mas enfim...deve ser esta nossa maneira de se Ser que justifica a coisificação da obra dos mortos. Mas olhe..eu vou já rapar de papel e caneta para escrever ao Machado de Assis...creio que ele apreciará.
Abraço amigo!
Caetano"

Sem comentários.


A rebentação do mar é distante desta escrita. Neste mpomemnto, é-o. Mas, ao longe, no horizonte da planície, há sempre um mastro que se move. E o que esse mastro imaginário parece querer dizer não pertence a este mundo. A trovoada aproxima-se, essa sim, de rosto bem terráqueo. E traz consigo este hábito novo, quase tropical, de, à hora certa, marcar presença, definir silhuetas, impor cores, disparos, luzes e rumorejar sem fim. E contudo, ao longe, o horizonte parece parado, inquieto, voraz. Na quietude do Verão, andam pequenos génios à solta, diatribes que não lembram à harmonia do Leviatã. O suor adensa-se e o fogo, na mata, redime-se de outros males. Sobrará o horizonte, à minha frente, dando mão a uma espécie de pureza adiada, muda e inexplicável. O mar não passa por aqui, mas, ao longe, há, de facto, um ou outro mastro que se move.
leia-se anda em vez de andam, no post de baixo (até amanhã !):
O esquerda-mente correcto tende a ser negativa-mente conservador. A demagogia padrecas de Paulo Portas e de Louçâ andam muitas vezes a par. Se eles soubessem ! Todo o corpo é um poço de desilusionismos. Não deixarei de pensar e de reflectir em nome da cristalização cómoda a que a idade (ou a estupidez ?) parece convidar a larga maioria dos pós-68 e pós-74. No ensaio, na literatura, na linha de fuga mais solta, assim será. Mesmo se a coisa se tornar pouco popular. Pouco confortável. Ver sempre o mesmo com outros olhos, ou entender que o que se passa em cada agora é, de facto, único ? Ambos são pertinentes. Estar atento, não repetir dogmas, abrir os factos - abre los ojos !
No labirinto, a passagem dá pelo nome de centro. Ser a parte menor do labirinto é participar na periferia, exprimir imagens soltas, esquivas, inarticuladas. Ser parte maior do labirinto é passar, passar, passar e não ver nada, por andar sempre à volta de si próprio. Um poema tem muitos centros e muitos andam fora do território do poema. Fundem-se esses centros, perversamente, noutros labirintos. Um poema é, pois, infiel. Por natureza. Passa por si próprio e esquece-se de si, ao mesmo tempo que convida ao rapto o melhor das suas luzes e trevas. Um poema cresce enquanto deixa de ser lido e diminui enquanto não pára de ser escrito. Verdades inquietantes. Lá por cima, a lua quase cheia a murmurar o sigilo de quem a disputa. São nuvens minúsculas que destilam a noite, no seu labirinto antigo.

domingo, 10 de agosto de 2003

Estou a preparar um livrito de poesia. Para o bem e para o mal. Diz o JPP que, no mundo das pequenas coisas, há mais diabinhos do que deuses. Pois, é nesses horizontes, aparentemente quase inabitados, onde os diabinhos andam à solta na sua escala menor, que a poesia aparece como uma voz sempre repartida entre luzes e trevas, nesse bate bate que se abre tanto às flores maléficas como aos arrepios das corujinhas sabedoras.
O calor abafado, crisálida repartida pelo rasto do nosso descanso. Verão, o território das areias imaginárias. Périplo doce. Existe no ar uma inteligência adormecida que prolonga este encantamento. Pena não a conhecermos. Mas ela vela por nós, em vigília. E terá um sabor a frutos vermelhos, líquidos, sem veste, sem pele, sem corpo, sem nada. Vermelho puro. Sem veias. Pousado nas nuvens, vagando pelo crepúsculo como a cobra minúscula que adormeceu no quintal, há três dias. Calor abafado. Terra de ninguém, ponto morto do tempo. A felicidade a crepitar por trás das palavras, na falha das palavras.
Morfologia sem voz. Saudades, ao rever o corpo despojado do gesto que não encontra. Os olhos do cão. A pedra no ar. E depois ?

Atiro pequenas pedras para longe
e vejo o cão a correr atrás delas
o dia todo
traz os dentes de fora quando se abeira do meu gesto
e depois desaparece como a branca de neve
esvaída noutra pedra e noutro anão
até que a certa altura
o revejo no início do horizonte
quando a sombra do meu braço volta a descer
a descer
até pousar devagar
outra vez
na cabeça do cão.

Foi António Damásio quem o disse no Sentimento de Si: toda a tradição, baseada na filosofia da consciência e que sublinha o importante papel da intencionalidade (Husserl, Sartre, Merleau-Ponty, Lévinas, etc), não é senão o resultado da capacidade do cérebro em contar histórias. Diz o autor: esse "dizer respeito a", exterior ao cérebro, tem exactamente "como base a tendência natural do cérebro para contar histórias", o que ocorre sempre da "forma mais espontânea possível". Aliás, na discussão que as Luzes empreenderam, no século XVIII, em torno do problema da representação (De David Hume a Kant), já a figura da imaginação surgia como uma entidade decisiva, autónoma e transformadora das interacções entre o representado e o representante. Eis-nos, nos blogues, a continuar a tradição. Retina de retina até à não apoteose final.
Agora, em Outubro, irá sair um livro meu destinado aos alunos de semiótica. Há muitos anos que sentia essa necessidade. Embora o livro se destine sobretudo a alunos que irão defrontar-se com uma cadeira anual introdutória de semiótica geral (em Comunicação, Artes, Arquitectura, etc. e muito menos em Letras, por exemplo), há, na segunda parte, uma atenção especial a alguns aspectos contemporâneos que podem ser entrevistos na sua relação com a longa e secular historiografia semiótica. Deixo aqui, para a possibildade de algum diálogo avant la lettre, a brevíssima introdução do ensaio, tendo em vista responder, desde o início, à mundana questão : o que é a semiótica ? Muitas vezes, o dito mundanismo é mais do que pertinente, até porque está muito divulgada a ideia excessivamente galicista de que a semiótica, de algum modo, se confunde com mecanos estruturais e quadrados sempre muito apelativos em certos espíritos dos chamados estudos literários. Sem ser um especialista, rejeito sempre esse adjectivão, até porque, nos meus ensaios, eu insisto sempre em ser um caminhante-questionador entre matérias, na senda da compreensão da actualidade, parece-me bem que a tradição semiótica merece mais do que o logocentrismo saussureano. Fica, portanto, o texto.

O que é a semiótica?

Enquanto actividade interpretativa do entendimento e da significação ligada ao signo e aos seus instrumentos, como escreveu, no seu tempo, João de S. Tomás, a semiótica é uma área do saber muito antiga e, por isso mesmo, conviveu, em épocas e circunstâncias diversas, com outros saberes, nomeadamente com a lógica, a filosofia, as gramáticas, a hermenêutica, a teologia ou a própria tradução (não terá sido a Escola de Toledo, durante o Califado Omáiada ibérico, sobretudo uma escola de intersemiose?).
A pesquisa da tradição semiótica tem sido realizada por duas vias dominantes, nomeadamente, através da prospecção do próprio conceito de signo (metodologia mais corrente em U. Eco) e através do modelo que visa uma teoria do entendimento e da significação, tal como diversamente se terá manifestado na casa desses outros saberes (metodologia proposta por J. Deely) . Numa e noutra das vias apercebemo-nos de que a autonomização do saber semiótico, enquanto tal, é uma tarefa que se desenvolve lentamente entre a Renascença e John Locke, projectando-se depois no Iluminismo e acabando por ser recebida, a partir de meados do século XIX, por autores fundadores que o postulam de modo já individualizado e bastante diferenciado (C. Peirce, E. Husserl, F. Saussure, L. Hjelmslev, R. Jakobson, etc.).
Contudo, a postulação contemporânea da semiótica já não é, à partida, baseada em percursos tão bem conhecidos e definidos. Por isso mesmo, foi nosso propósito, ao longo deste livro e em mais do que um capítulo, dar conta da tradição semiótica, mas apontar, ao mesmo tempo, as tendências fundamentais e actuais que atravessam a disciplina. Fizemo-lo, na medida do possível, com a presença de fontes primárias traduzidas para Português com o objectivo de suscitar aos leitores, num possível discurso directo (coisa que G. Deleuze diz não existir), a discussão íntima da teia semiótica.

Semiótica geral e semióticas particulares.

Felizmente não há dois manuais, nem dois autores que assumam uma definição fechada, idêntica e fixa de semiótica. Este é porventura o melhor sintoma que irradia da criatividade do próprio saber semiótico, o que, por si só, pressupõe a depuração quase natural das tentações esquemáticas de tipo estrutural. Se o semiótico é, pela via etimológica, o intérprete dos signos, a semiótica deverá ser considerada, neste momento de descolagem, como a área do saber que analisa os signos e que estuda o funcionamento de múltiplos sistemas de signos. Seja no plano geral, no quadro de uma semiótica filosófica, seja no plano particular, no quadro de semióticas aplicadas a áreas específicas.
A questão da semiótica geral e particular foi levantada diversas vezes e terá talvez a sua origem mais profunda no desígnio moderno das taxinomias científicas. Curiosamente, J. Locke, um dos primeiros a ser atraído por uma tal categorização, integrou a semiótica no seu esquema como um novo saber geral, entendido na acepção de uma mediação que se propunha descrever e elucidar os meios através dos quais o conhecimento, tanto especulativo como prático, era adquirido, elaborado e partilhado.
Sabe-se que a utopia lockiana não se perdeu totalmente. U. Eco, na parte final da sua obra, Sobre os Espelhos… , relevou o facto interpretativo como matriz do saber geral semiótico, considerando-o transversal, quer às ciências naturais por constituírem interpretações de dados (do “primeiro grau”), quer às ciências da cultura por constituírem interpretações de interpretações (do “segundo grau”), e, até mesmo, à malha informe do campo não propriamente científico (práticas perceptivas, artísticas, mitos, mânticas, etc.). O que significa que, na acepção de “actividade interpretativa do entendimento” (a expressão, insistamos, é de João de S. Tomás), a semiótica pode ser encarada como um saber geral e, portanto, meta-interpretativo, face a campos tão diversificados que incluem tanto o domínio científico como o não científico.
Para além deste carácter geral que permite isolar e estabelecer a própria esfera conceptual da semiótica, é também apanágio da disciplina uma focalização analítica dos mecanismos singulares de interpretação. Ou seja, se a semiótica geral discute filosoficamente o conceito de signo e outros que lhe são necessário correlato, já as semióticas particulares dão conta de sistemas de signos específicos bem como das latitudes de interpretação que lhe são próprias (sendo signo, como mero ponto de partida, tudo aquilo a que recorremos para compreendermos o mundo, o outro, e para nos fazermos compreender a nós próprios).

Pan-semiótica e limites comunicacionais.

Outra questão, quase sempre abordada como inicial, prende-se com os limites da semiótica. Ou seja: poderá a disciplina assumir o destino de um saber que visa a significação de tudo o que ocorre no globo e fora dele (pan-semiótica), ou apenas de um seu segmento limitado (por exemplo, apenas o nível das linguagens humanas de natureza verbal e decorrentes)?
A questão da pan-semiose atravessa eras e intencionalidades muito variadas. Liga a sensibilidade atomística dos Epicuristas à generosa trans-semiose de Santo Agostinho, desagua nos Iluministas franceses que se viram contra um certo excesso de razão (os sensualistas), como está também presente na natureza divina que B. Espinosa partilha com o homem; ressurge depois em C. Peirce e, mais tarde, aparece, ou é pressentida, em momentos tão diferentes quanto o são a Escola de Paris, através das semióticas do mundo natural, a complexidade dos agenciamentos de G. Deleuze e a própria teoria das catástrofes de R. Thom, ou a morfodinâmica e a morfogénese de J. Petitot e de P. Brandt.
Pelo contrário, a tradição logocêntrica, mais directamente ligada a uma atitude metafísica, sempre insistiu numa racionalidade onde se jogavam os limites de um certo tipo de significação em relação a outros. O dilema entre o presente e o ausente, entre real e não real, entre signo e não-signo assume toda a ênfase neste campo. As estratégias de exclusão que se opõem à pan-semiose têm grande interesse categorial e conceptual. É o caso de F. de Saussure, mas também e sobretudo o de L. Hjelmslev, como, noutra perspectiva, é o caso das análises a circuitos fechados (sinaléticas) e, por exemplo, da teoria da informação de N. Wiener (limitada à relação entre a comunidade humana e cérebros electrónicos).
Mais do que empreender juízos sobre estas tendências, ou sobre o carácter geral versus particular da semiótica, foi nosso método, ao longo deste livro, explicitar o debate, evidenciar argumentos e sobretudo expor raciocínios.

Semiótica e diálogo científico.

Nas últimas décadas do século XX, uma célere desestruturação tem invadido, no plural, os novos modos de significar o mundo. As novas mediações tecnológicas, a nova ordem de proximidades globais, a degenerescência da ideia de grandes códigos totalizantes e, por fim, a própria criação espontânea de ciberestruturas descentradas contribuíram decisivamente para desmontar o carácter holístico da macro-significação social. Como escrevemos noutro ensaio , esta tendência semiótica contemporânea é única na história da humanidade.
Daí que o papel da semiótica, no estatuir de laços interdisciplinares com outras áreas do saber, tenha, hoje em dia, uma importância capital. É importante que a maioria do público-alvo deste livro (os alunos de semiótica) seja seriamente motivada para esta questão fulcral das mediações epistemológicas. É a própria actualidade da rede que convida a semiótica a dialogar insistentemente com a neurobiologia , com a zoologia, com a arquitectura, com o cibermundo e com a artefactualidade digital que está, hoje em dia, a reenquadrar a própria noção de realidade.
Creio que muito em breve, a semiótica irá iniciar uma fase completamente nova e inovadora da sua já longa vida.
Agradeço ao João L. Nogueira do socioblogue a gentileza e a generosidade. Sem a sua ajuda, o Miniscente não estaria hoje a brilhar com estas cores e odores a mar. Acaba assim o terramoto blogosférico em que me vi envolvido, desde ontem ao fim da tarde. A solidariedade na blogalização é uma palavra que não é vã. Agradecimentos, também, portanto, ao Ivan Terráqueo, ao Outro, eu e ao Nuno Perestrelo. A vida continua. Cortinas a dançar naquele modo fractal e incerto com que a adulam a quase rara brisa do início de tarde. Na cave, ou na garagem, um saxofone a repetir sempre os mesmos sons. Sirenes de fogo. A ventoinha a silenciar a respiração do dia. Um descanso infinito. Agosto, meu mês.

sábado, 9 de agosto de 2003



Afinal, do terramoto blogosfeérico, foi ainda possível recuperar os tais tags de abertura e fecho que haviam desaparecido. O único mal que persistiu é o que está à vista: as ligações, arquivos, contador e outros acessórios ficaram por baixo da mancha de texto e deixaram de figurar ao lado do dito. Se algum visitante conhecer a chave para um doce retorno à situação original, fico agradecido. Lá fora, o calor espesso, a imobilidade das árvores, um murmúrio isolado de cães longínquos.
E agora ? Os templates desapareceram e o bligue bloqueou. Paf !
De repente, houve uma ciberventania e os templates desapareceram por completo. É o outro nome do nada. Já não é a primeira vez que isso acontece, mas, desta vez, a fuga dos sinais foi completa, radical, rotunda. Deserto sem dunas. Há outras coisas que nunca foram vistas - tal como este fundo branco onde antes se lia o fio visual dos templates - assim o rebelde Magueijo do Speed of Light nos ensinou: cordas cósmicas, buracos negros, por exemplo. E, no entanto, pronunciamo-los e escrevemo-los. Se, caros visitantes, a des-aparição dos templates gerar a minha própria, a do blogue, peço desde já, antecipadamente, as desculpas por tal morte súbita. Acontece aos melhores.

sexta-feira, 8 de agosto de 2003

Por cima, neste preciso momento, a lua já a encher, a encher, a crescer, a reflectir sobre nós os seus círculos, aqueles nódulos, círculos e hastes que parecem estar em movimento para pôr à prova a capacidade do seu silêncio ainda sem nome. O meu personagem olha para a lua e não se apercebe. Mas nele, garanto, tudo está nos limites. É descer as escadas do blogue para perceber. Para o entender (é verdade, conservadores da língua: o tal Dicionário da Academia das Ciências faz de personagem um s. m. e f., hermafrodita, portanto, como D. Sebastião, o que me faz subitamente lembrar o meu velhinho Cortejo do Litoral Esquecido).
Estou concentrado na minha personagem. Todo o dia ao sabor desta descoberta. Janela aberta para um monte cheio de sobreiros e breves luzes amarelas. E há vozes que não deixam de se intrometer neste jogo de invenções: quem aniquila, conquista; quem devasta, quer decerto aparecer, impor-se, marcar o seu desígnio para sempre. Nero, por cima de todos, a ver a sua cidade em chamas. O maior dos incendiários. O efeito criado pela destruição torna-se, assim, no grande selo, na magna carta da aparição aniquiladora. Ei-lo, também, na lenda do Exterminador (I, II ou III) a povoar o universo de outros cruzados que atearam os cedros do Líbano, ou dos mongóis que se precipitaram para dentro da Bagdad Abássida. Nesta Dança com Lobos, soçobram os grandes destruidores, os grandes ateadorres da alma. Mas ninguém se lembra dos que transportam o mito consigo, no dia a dia, para o canto dos cafés, para os solitários bancos dos jardins, para os centros comerciais mais inodoros, e sempre, sempre ante o silêncio mais inexpugnável. Tão ensurdecedor é esse silêncio que nem o próprio personagem o ouve. Posto de escuta, rosto de escuta (ver texto mais abaixo, por baixo do sol, já na terra). Quem pega fogo à mata não escuta o apelo terrível, antes o devora e é assim tomado pelo gesto, pelo móbil, pela voragem. Antes dos fogos do presente, já este personagem existia. Desde Fevereiro deste ano. Mas agora entendo-o muito melhor. Confesso. Entendo agora melhor como é que ele terá sido capaz de fazer aquilo que todos desculpamos, quando chegamos ao fim de um dos textos dramáticos do Shakespeare. Dir-se-ia: Que mortandade, que veneno ! Hamlet, já no fim do seu périplo, a cambalear, afirma que o alento pode retardar o efeito da poção letal. Pode, é verdade, mas o alento não mais redimirá o que, depois, já não consegue viver-se. O meu personagem anda sonambulamente nesta terra de ninguém: entre o alento que é uma energia estranha que desgasta, excita e dispara para todos os lados e, por outro lado, um estado geral de presságio, de pressentimento ou de vulnerabilidade in extremis que o leva a pensar e a sentir no que ele caracteriza como sendo the big thing. A grande coisa. A obra. A pedra filosofal feita de um único lance, breve e terrível, mas reparador do grande lance onde se articula e enforma tudo o que é o mundo criado pelos homens. Ao longe, a mata. A fragrância do anoitecer. Tudo calmo. O sol já foi. Ei-o a pairar. Na memória tão incerta, quanto destroçada, do meu personagem. Ainda à procura. Sempre em desesperada demanda. Não de si. Mas do rosto que, do outro lado do vidro, não mais aparecerá em sua frente. Imagens.
Corre em direcção ao sol. Tacteia o fundo do quintal, as laranjas, as sombras do grande livro. Era circular, aberto e tinha a cor que agora já não existe. Um polígrafo em movimento. À solta. O instante da veste. Palavras cobertas. E depois, lá no alto, o sol. Outra vez. A respirar durante a corrida. A transpirar como hoje. Sem relógios. Quem dera ao vidro não ver do outro lado o seu próprio rosto. Um rosto de escuta. Ou um corpo em direcção ao sol.
O fogo é notícia. É natural. É imprevisível, pelo menos no modo como este ele reapareceu. Por outro lado, escapa ao domínio da mão humana e interrompe a cadência habitual do tempo corrente. No século XVI, ainda o considerariam como Segno, isto é, como fenómeno que não se inseria na ordem normal das coisas. Devido a tais rugosidades, os incêndios transformam-se, hoje em dia, logicamente em notícia. Na notícia, por excelência. Contudo, deveria pensar-se por que motivo, na cidade A ou B, ou na região C ou D, não existe qualquer fogo.
Há fogo, noticia-se e critica-se. Não há fogo, não se noticia e não se critica.
Neste último caso, cabem muitas cidades e regiões que estiveram um ano inteiro a investir silenciosamente em trabalho de prevenção e profilaxia. Ninguém fala deste não-dito ? Não terá este último caso, de que não se fala, um mérito que deveria ser, no mínimo, sublinhado ?
Só os apocalipticamente correctos é que não quererão apreciar este outro lado da questão.
Ontem admirava-me com o número de visitantes do primeiro dia de contador, quando, hoje, doze horas após esse dia D, o número já triplica, de modo desvairado ! Começo a entender tanta visita, dada natural generosidade dos cibercaminhantes. Mas não só, associo o facto, também, à época e, portanto, a todo esse leque de praias impossíveis de frequentar e de olhar, onde cada milímetro quadrado de areia é (ou será) disputado feericamente, do mesmo modo que, nas narrativas apocalípticas judaicas, se disputava o ar dos ceús que era, afinal, a via da habitual viagem que conduzia o herdeiro da figura de profeta a deus. Por todas essas razões, vou deixar de lado o número de visitantes como tema.

Hoje é dia para reiniciar a escrita do novo romance. Já aqui falei disso ante-ontem. Geralmente, neste tipo de dias, vejo-me involuntariamente a adiar o momento das hostilidades. Faço tudo, mas tudo, antes de me sentar... to do it. É como se quisesse encomendar todos os espíritos possíveis até à última hora. Inventam-se tarefas que não lembram a ninguém: ir depositar um cheque (magrinho) que está pousado na mesa há seis dias, ir comprar uma caixa de iogurtes ao super mais próximo, passar pela oficina e perguntar pelo estado dos pneus, arrumar jornais, levar o lixo ao contentor, empilhar papelada do ano lectivo já acabado, enfim, seja o que for, pequenos gestos, breves notícias criadas por actos menores, impulsivos, sucessivos, irrespondíveis. Até que. Até sempre. Até porque nunca se verifica aquela decisão A que leva o sujeito Y a iniciar o acto B na hora W. Existe sempre de permeio uma indecibilidade que subsume a corrente vital, uma simultaneidade que invade a vontade e a torna numa potencialidade dividida, ao mesmo tempo, entre vários agoras e um depois que funciona com hímen (do Himeneu), como leitmotiv e como presságio de que algo importante poderá estar para a vir a ser.

Gostei de dialogar com o RAE (a sigla confirma o anonimato que faz lembrar o flaneur baudelaireano, embora inserido em tramas campeadoras tipo medieval, para as quais a crónica era geralmente anónima) e com o Prazer Inculto. Há também densidade e muita criatividade neste meio blogalizado. Vai havendo de tudo, à imagem das imagens com que desdobramos cada imagem que exprimimos.

quinta-feira, 7 de agosto de 2003

Nunca imaginei que iria ter 28 visitantes, no primeiro dia após a instalação do contador ! Que bons caminhos vos recebam !
Quarenta e dois graus, nuvens densas, algumas escuras, trovões muito ao longe. De repente, ouço chuva e vou à janela. Chove de facto e as pingas são desmedidas, enormes; de início mornas, depois mais frias. Uma graça. Corro pela rua e deixo que o corpo se molhe. Não me lembro de nada assim. Agora o céu já clareou e o calor regressou ao seu leme, enquanto a aragem continua a atravessar a casa de persianas abertas. O Verão tem esta escrita, este murmúrio inesperado, este sortilégio que se antecipa ao hábito.
Agradeço a todos os que me ajudaram a reconfigurar o lado direito do blogue, sobretudo o Joel do Não Esperem Nada De Mim.
O Verão traz até nós uma felicidade estranha. O ar torna-se leve, a aragem parece adormecida e, nos demorados fim de tarde, os tons do céu adensam-se na vermelhidão dos horizontes. Ao longe ou ao pé, na realidade ou na imaginação, os corpos recriam a sua nudez mais antiga, enquanto as palavras se deixam trocar pela perdição do olhar e, sobretudo, pela sedução da mais bela matriz das inércias: a preguiça. No Verão, as cortinas deambulam pelo imenso espaço de uma brisa ausente, os vestidos arrastam delicadas transparências e as estrelas, lentas, navegam pelos olhares deslumbrados, mas silenciosos. No Verão, há cigarras desmedidas, pátios encantados, cisternas em comunhão com as ervas mais sigilosas.

No campo da velha astrologia sígnica, também se torna curioso verificar a topografia do Verão. Por aí passam os noltágicos da pureza, ou seja, os nativos de Virgem; por aí passam os sagazes que estancam diante do fogo da vida, ou seja, os nativos de Leão; e, por fim, por aí passaram também, nos alvores da voragem do Estio, os nativos de Caranguejo que, há muito, hibernaram nas águas cálidas de Noé. O Verão é, pois, um território de passagem, de descanso, de irremediável pausa entre a invenção criadora do solstício natalíceo e o cansaço da terra, de que o Outono é inseparável referência.

Uma das férteis imaginações do século, face à própria natureza do Verão, foi e é o fenómeno da praia. Socializado nos anos trinta, massificado dos anos sessenta para cá, a prática da rotina balnear só nos últimos anos passou a contar com um alter-ego razoável, devido à emergência de novos dados relativos à perigosa poluição atmosférica. Mas nem esse facto recente contribuiu ainda para a diminuição das vagas de gente que, no início das quinzenas, leva milhões por essas estradas fora, como se fossem para o limiar de um paraíso. Saindo das urbes e da cadeia de hábitos diários, o indígena acelera destemidamente pelas estradas e, sem peias de qualquer ordem, disputa suicidariamente a sua morte e a do próximo, numa gingana difícil de imaginar nas imagens de "Actualidades" que a Pathé e a Gaumond transmitiam no início da segunda década deste século (e que, no formato dos anos sessenta, ainda eram populares em terra lusa).

Se o Verão é genuinamente uma dádiva de felicidade, enraizada ritualmente nos nossos mais pequenos gestos e sonhos, é extraordinário verificar como, no início deste século, no seio da nossa vida social, o encontramos tranvestido em manifestações tão rudemente violentas e próprias de uma rotina sem qualquer criatividade. De facto, às vezes, em certos itinerários, o Verão parece que se tornou num verdadeiro susto, num abismo incontrolado, num ritual dionisíaco e medonho.

Não perderemos, de qualquer modo, a vermelhidão dos ceús, a nudez dos corpos, os olhares deslumbrados, a liquidez das miragens, a delonga dos animais e, em primeiro lugar, a irremediável pausa que o Verão, na sua respiração mais profunda, nos doa. Não perdemos nada disso, é claro; mas triste seria esquecer estas essências do Verão em nome das massificadas cruzadas do século XX. Umas cruzadas em que a Jerusalém celeste se reduziu à suja e povoadíssima rebentação das ondas; umas cruzadas em que a salvação se tornou no bronze dos pateta-alegres e pobres de espírito; umas cruzadas em que as indulgências se passaram a chamar "décimo terceiro mês" acrescidas da devida taxa de ostentação (que todo o bom "portuguesinho", por exemplo, paga por alto preço e com o maior prazer). Uma beleza.

Saber sorrir por cima.
Estava reclinada sobre a noite
a entrever as giestas e um desses volumes
de alvenaria que vão dar à alma

era a impressão nítida de não haver mais nada
dizia

Vermeer
o pintor
teria gostado de ver

voaria através da luz inclinada
e dessa penumbra inventaria a noite
que o rio antigo absorveu.
Na maior parte dos blogues que vou lendo, existe um desfasamento entre a ciberlógica que é, naturalmente, caracterizada pelo instantanismo e pelo efémero, e, por outro lado, um certo sentido nem sempre disfarçado de projecção na posteridade. Como se cada palavra escrita aqui, neste jogo-limite de aquários, tivesse o secreto condão de, amanhã, poder ser finalmente escutada e reconhecida. Então, este cibermomento em que o génio único ditava a suprema alegoria, entraria no reino da eternidade. Esta projecção angélica é claramente subliminar na linguagem da moda que, como se sabe, é instintiva, revivalista, propositadamente banal, silly mas bem, sucinta mas bué feculenta q.b., afirmativa e toscamente escultural. Como se fossem directores de jornalecos de província, no início do século XX, grande parte da rapaziada que dirige e alimenta os seus blogues ainda pensa em tornar-se no Hermes imortal. É evidente que existem mares e mares de excepções. Mas fora delas, tudo é igualmente honroso. Fecundo como as cornáceas.
Milenarmente, Deus e o homem fecharam-se no ciclo ético da teodiceia, conspirando punições e inventando a natureza (boa e má) dos actos praticados. Secularmente, as ideologias e o homem fecharam-se no ciclo ético dos julgamentos finais no planeta terra (e já não no além), através de mil paraísos e miragens quasi científicos. Desse mesmo modo, também a literatura se fechou, desde as suas muitas origens, num pacto quase irrevogável entre esses variados ciclos éticos, profundos e marcantes, e a respiração à superfície do que deveria ser e é o essencial: o labor ficcional e o exercício da retórica (passe a metáfora maniqueísta da alma e corpo literários). Poder-se-ia afirmar que toda a relação fundamentalmente ética acabará por se esvair na medida em que o dogma (o Livro) também se esvair. Para a literatura, esse facto constituirá porventura uma libertação como terá sido, noutras circunstâncias pragmáticas, a romântica, a simbolista, a da pós-Primeira Grande Guerra (Proust, James, Pessoa, Joyce, etc.), ou mesmo a que gerou e viu gerar o nouveau roman. Quando cederem os pactos que ligam ainda muita da nossa literatura e da sua pesada hermenêutica - de modo vertical e rígido - ao hermetismo dos ciclos éticos, então a própria literatura deixará de se confundir com a anamorfose e a deformação da sua imagem mais comum e verosímil. Os blogues fazem parte desta desconstrução em lento movimento.
estranho: o que acabo de escrever e publicar, apenas se torna visível nos arquivos e não nos chamados Current Posts. Por que será ?
a corrente de ar dentro de casa parece uma instalação: os papéis voam, as cortinas dançam, os livros deambulam e eu sinto o ar quente no peito. Noite de júbilo.
Haja uma alma caridosa desta ciberterra blogalizada que me ajude a compor este lado direito do meu blogue. Prostrado na minha infinita pequenez blogotécnica o imploro ! Até porque, nas últimas seis horas, tive cinco sigilosos visitantes !
Haja uma alma caridosa desta ciberterra blogalizada que me ajude a compor este lado direito do meu blogue. Prostrado na minha infinita pequenez blogotécnica o imploro ! Até porque nas últimas seis horas tive cinco sigilosos visitantes !
Haja uma alma caridosa desta ciberterra blogalizada que me ajude a compor este lado direito do meu blogue. Prostrado na minha infinita pequenez blogotécnica o imploro ! Até porque nas últimas seis horas tive cinco sigilosos visitantes !

quarta-feira, 6 de agosto de 2003

Tenho dois romances a meio e um deles terá que dar entrada na editora no próiximo ano. O primeiro é mais ambicioso (narrativamente) e, neste momento, mais chato de perseguir. O segundo - que se baseia numa história de quatro casamentos por anúncio - teve hoje desenvolvimentos. Foi de repente, como sempre. Desta vez, numa esplanada. Em Évora. Imaginei, subitamente, que todo o texto já escrito, umas 80 páginas no passado Fevereiro, se tornarão em media res de uma outra história de contornos shakespeareanos. Nesta, a outra história passa a ser simples memória e pano de fundo. Temos assim um assassino e incendiário, fugido de tudo e todos nos dias de maior calor do ano, misturando o presente e algo de terrível que o persegue como se fosse um cenário a arder para o qual não pode haver sequer compreensão. Entre a vida e a morte, no abismo. Veremos se amanhã o reinicio. Chamemos-lhe, para já, O Incendiário. Sem confundir este título provisório com o presente referencial que estamos a viver, pelo menos recebe dele a catarse e o ambiente meta-ocorrente. Fica, pois, a nota. E o entusiasmo. Razão tinha eu em dizer, esta tarde, que era tempo de oferecer flores à imaginação pura.
Sem compreender nada de tecnoblogologia, lá consegui inserir um contador, onde se regista um expressivo zero no número de visitantes, para além de ter inscrito o miniscente na Watchlist do Technorati. Falta agora entender um pouco melhor o mundo fantasioso e interessante das acções bolsistas do blogshare. Lá chegarei, enquanto os sociólogos se divertem na sua análise meta-meta-blogalizadora. Continua o calor e a pouca vontadxe de escrever. É tempo de oferecer flores à imaginação pura.
Não entendo por que razão tenho que receber, via mail, páginas de blogues. Há quem não entenda o que significa a rede e, por isso mesmo, a entenda como uma permanente acção de marketing ontológico, ou tão-só, como uma mera ansiedade ostentatória de dar a ver-se e a ler-se. Pois bem, deixem os blogueadores visitar aquilo que realmente lhes apetece visitar ! Enfim, deixemos de lado o desabafo.

Contra a corrente, prefiro retomar a felicidade da pausa e o equilíbrio leve e sem formas que advém do calor. Viva o Verão ! Climaticamente incorrecto, eu sei. Tenho assistido a brigas conjugais por razões térmicas. Onde chegam já as patologias ! Deixem o paraíso permancer na terra por uns dias, depois terão invernos e invernos para hibernar e para apenas protagonizar o lado prático da vida. Entretanto, permitam-me segradar quanto adoro a pausa do estio, esta doce sensação de não pertencer. De estar alhures. Caminhar em via sem nome, apenas atento à preguiça e às sonoridades; apenas atento ao devaneio e às estrelas da inspiração.

terça-feira, 5 de agosto de 2003

Obrigado ao palavrasmudas, à Isabel Soares e ao weblogue pelas apreciações. De férias e entre dias feéricos. De noite e entre faunos e notícias de fogos. Nada tenho lido na net, nem nos blogues. Há no Verão esta indizibilidade, este prazer do percurso feliz, imprevisto e, por isso mesmo, sem grande sentido. A lua cresce e o devaneio inscreve-se na natureza, à procura de um pathos, de uma compaixão, de uma música que, de modo sigiloso, a acompanhasse. No Verão, tudo está criado para que os extremos prodigalizem os seus fins: dos incêndios às paixões, das discussões acesas aos amores iluminados, do drama ao recato sem fim. Uma epopeia das coisas pequenas.