quarta-feira, 13 de agosto de 2003

Prémios e cupões

Estando eu em compras num hipermercado, já há mais de um mês, lembro-me de ter preenchido um cupão onde era pedido que se escrevesse qualquer coisa, desde que relacionasse uma conhecida marca de café, a Delta, com duas topografias, a saber, Manaus (cidade) e Timor (país). Hoje mesmo, imagine-se, recebo um telefonema a comunicar que me havia sido atribuído o primeiro prémio. Ganhei, desta forma, uma máquina de café de design cândido e recatado - era esse o primeiro prémio - e é evidente que não resisto a deixar aqui, aos olhos de toda blogalização, a lírica prosa que me deu este honroso e distinto galardão: “De Manaus a Timor/ É companhia esbelta/ Bebe-se com Amor/ E tem o nome de Delta”. Já sabe, caro blogueador: não hesite em preencher um cupãozinho destes. Até porque a sorte, a verve e o talento nem sempre andam de mãos dadas. É aproveitar, é aproveitar...




Blogues como instrumentos da libertação da literatura ?

Numa espécie de conclusão do seu livro, Geração de 90 - Romance e Sociedade no Portugal Contemporâneo, que acabo de ler, Miguel Real sistematiza as dez características do romance da geração de noventa. Eis, sintetizando, o que nos revela o autor:
Trata-se de uma literatura que cruza e atravessa tendências fechadas e demarcadas de tempos anteriores (realismo, descritivismo, subjectivismo e desconstrucionismo), que “alia o objectivismo mais chão ao subjectivismo mais delirante” e que insiste no perspectivismo narrativo, elidindo a fixação do eu. Semanticamente, faz do discurso (e do seus textos) um verdadeiro jogo que edifica autotelicamente a sua própria realidade. Para além disso, recolhe expressões espontâneas das origens linguísticas mais diversificadas e abre-se radicalmente, quer a domínios estilísticos exteriores à língua portuguesa, quer a “processos” de outras formas estéticas (publicidade CD-rom, guiões de filme e acrescentar-se-ia também, talvez em germe, alguma contaminação com o espaço do cibertexto). A finalizar, registe-se ainda uma “vivência integral da dimensão do presente” e um manifesto realismo de cariz urbano.
Esta descrição permite-nos acentuar a importância de quatro direcções muito pertinentes da ficcionalidade contemporânea. Estaríamos, assim, perante uma ficcção que supera as modas e adere ao pluralismo dos modos; que cria modelos de enunciação multifacetados, plurais e horizontais, tendendo a banir a verticalidade da narração a uma voz; e, por fim, que adere a uma abertura sem limites ao que sempre foi o de fora do alegadamente tradicional perímetro literário. Para além destes três factos importantíssimos, o mais fundamental joga-se na conversão da literatura ao território do presente, do imediato, do agora-aqui.
Nessa medida, toda esta literatura recentíssima, a perseguir inquietamente novas áreas de propagação e de invenção, concentra na actualidade o curso do seu olhar imaginário e acaba por subjugar, quer o que poderia ancorar-se em estratégias de recuperação do passado ao sabor do controlo (putativamente ideológico) do futuro, quer o que poderia ser uma antecipação utópica do tempo por vir. Estes pontos de diagnóstico estão, de facto, de acordo com pontos de vista que tenho advogado. Basicamente, porque o facto de vivermos hoje em dia em acentuado tempo real, ao sabor de fluxos instantâneos e, sobretudo, numa rede intervivencial que não conhece fronteiras, mas apenas nós e interfaces comunicacionais (amiúde inesperados), está já a reflectir-se decisivamente na própria literatura (e nas tensões que esta já está a criar junto da própria comunidade).
Esta é a principal conclusão que poderíamos retirar (e até verificar a partir do material fornecido por Miguel Real) relativamente às tendências literárias do presente e do seu querer desenhar novas espacialidades. No fundo, parece-nos extremamente ultrapassado a questão de ter que se saber o que é um romance ou o que é a literatura (e se ainda existe), num dado momento e sociedade. O mais importante, para além das essências e da ontologia cristalizada, é saber quando é que essa literatura funciona, ou quando é que essa literatura se transforma de facto numa ferramenta activa do tempo vivido e a inventar. Goodman já há muito havia enfatizado, noutro contexto, é certo, que não interessava tanto o que é a arte, mas antes e definitivamente quando há arte, isto é, quando é que, numa dada actualidade e comunidade, ela funciona simbólica, operatória e sintomaticamente enquanto tal.
Este regresso da literatura ao seu movimento próprio, implicando o corte do cordão umbilical a outras narrativas históricas de que secularmente era e foi dependente, permite-nos também compreender que a arte contemporânea já não é uma arte de vanguardas, ou seja, na contínua e obsessiva procura da antevisão de um tempo que não é, ou seria, endemicamente o seu. Como António Pinto Ribeiro escreveu no Público, há um ano (25/08/02), na linha de Virilio, “o aparecimento das vanguardas dá-se no período em que era credível terem uma velocidade maior do que a durabilidade do tempo e assim poderem antecipar a história. As alterações sofridas na relação com a comunicação - agora tudo se passa em tempo real - e a suspensão das utopias acabaram com as vanguardas. Os artistas contemporâneos não têm a obsessão pela antecipação da história a qualquer preço e, pelo contrário, privilegiam o espaço e a geografia. Em relação ao tempo, a nossa cultura artística contemporânea tende a actualizar os operativos com vocação universal”.
Esta reflexão aplica-se à inquietação presente da literatura. Por um lado, na sua radical ancoragem à actualidade (preocupação já viva, noutros contextos e domínios, no “presente” de Foucault, no “instante” de Nietzsche, no “transitório e efémero” de Baudelaire, ou no “agora” de Benjamin, entre outros). É a primeira vez que a literatura deixa de depender de horizontes teleológicos, ou outros que não sejam genuinamente os da sua ficcionalidade, afinal sempre adstrita e subserviente a outras ordens de metanarração. Por outro lado, na sua entrega ao plano da contemporaneidade, isto é, à pura rede universal de vasos comunicantes e coexistentes com um tempo actual no seu viver-se e não, portanto, à simples deriva comandada por desígnios de controlo do tempo - sobretudo do futuro - e naturalmente da esfera do próprio poder (escatológico, ideológico, ou outro).
Creio que a via dos blogues entronca, ainda que parcia e inconstantemente, neste processo de libertação da literatura (tal como a entendemos hoje, na sequência ainda das codificações iniciais do fins de setecentos e do próprio alvor romântico).





As sete caras do nada

1 Nada como interior.

Van Gogh escreveu a propósito de um estudo que estava a realizar no interior do seu quarto, dias antes de Gauguin se vir juntar a ele, em Arles, no Outono de 1888: "Diverte-me extraordinariamente o trabalho de tirar do nada esse interior, com uma simplicidade digna de Seurat" .
Quer dizer que Van Gogh recorta, re-tira ou molda, a partir de um conjunto avultado de possíveis (de conteúdo e de expressão), a forma precisa que torna palpável o seu escorço, o seu arquipélago de figuras, ou, se se quiser, o seu estudo.
É uma fuga involuntária à tentação de ficar colado ao branco irredutível do animal indomável. Daí a exaltação, a vitória, o êxtase do pintor holandês.

2 Nada e os pontos de partida.

Foi Dionísio, o Exíguo, treze séculos antes de Van Gogh, quem concluiu que Jesús deveria ter nascido a 753 A.U.B (ad urbe condita - data contada a partir da presumível fundação de Roma, confirmada ou legitimada, já há séculos, pelo designado ‘código juliano’).
Segundo os cálculos de Dionísio - feitos por encomenda do Papa João I -, o primeiro ano da Cristandade deveria passar a ser contado a partir do primeiro de Janeiro do ano seguinte, isto é, de 754 A.U.B (momento da circuncisão de Jesús, após a sua primeira semana de vida).
Contudo, por não dispor do número e sobretudo do conceito de zero - criação indiana e depois islâmica dos séculos VIII para IX (S. Gould,1998:22/3 ) -, Dionísio esqueceu-se de baptizar o ano de 754 como ano 0 - ícone, índice e símbolo do nada - acabando antes por designá-lo, para a posteridade, como se fosse o verdadeiro ano 1.
Dionísio criou tais problemas por não ter tido em conta um certo nada como ponto de partida, que muitas das conjecturas posteriores acabariam por entender o tempo, não tanto como uma régua bem separada por cortes exactos e precisos, mas entes como uma espuma confusa, difusa e turva.

3 Nada e os sentidos da falha.

Lê-se no início das Poésies de Mallarmé: "Rien, Cette écume. Vierge vers/ A ne désigner que la coupe" : (Nada, Esta espuma. Verso virgem/ que não designa senão o corte). Eis o nada, ele sim, mais espuma e fantasma, do que corte preciso, rigoroso e aritmeticamente existente.
Guio durante a noite e que observo, cansado ou não, a linha tortuosa e persistente das bermas, pintadas ou não no asfalto imaginário da viagem. É uma mancha turva entre faróis e o re-corte dessa fronteira entre estrada e não-estrada. Confesse-se que entendo, percebo e compreendo, porque represento (a estrada como faixa...), construo identidades (a estrada como tipo de caminho...) e arrumo conceitos (a estrada como um tipo de diagrama a ligar x e y).
É verdade que, para além do conceito delimitado e fechado em si mesmo, existe também o caos, a estrada sem bermas e sem dimensionalidade (à David Linch); é verdade que também existem as esferas da não-representação, abertas caleidoscopicamente para todos os lados (a sintaxe das cibervias); é verdade que também existem os conteúdos fechados no conceito que, subitamente, se dispersam como bons nómadas a errarem num espaço para fora do espaço (as bandas do hipertexto).
É verdade que do outro lado da representação, das simetrias forçadas, das harmonias adquiridas, das categorias imaginadas, existe o fulgor da grande deriva sem nome, da imensa balbúrdia indeterminada, da gigante entropia sem corpo, da desmedida figuração à margem da ordem dos ritmos, hábitos, memórias e delimitações. É verdade que, para além da sintaxe do paraíso apolíneo, também existe, na imaginação humana, esta outra implosão explosiva que nos arrasta, ou para o inferno, ou para a doença, ou ainda para a beleza das falésias nocturnas, onde aquilo que flui vive da metamorfose imponderável do próprio fluir. Um nada é sempre algo próximo do abismo.
Entre amálgamas de representações, por um lado, e o caos inomeável, existe, no entanto, qualquer outra coisa. Uma mancha, as asas de um fantasma. Chamemos-lhe a falha, a fenda, o fractal, ou, por outras palavras, essa espécie de não-ordem que se intromete entre a dispositio apolínea da nossa comunhão conceptual e a quase infernal e abismada melodia do caos. Nessa passagem, nesse estar-a-meio, nessa media res do corso da vida, ter-se-ão entendido alguns dos dispersos sentidos do nada que, num dado tempo, se arrumaram, ou em conceito, ou em chuva aleatória de estilhaços.
Seja como for, existe sempre um nada adiado ou desconhecido; o que quer dizer que o nada se inscreve em qualquer coisa, se substancia sempre em algum dado. Nem que seja, entre a espuma, o corte e uma certa forma de imaginar o que não tem fim: o possível eterno.

4 A eternidade como uma espécie de nada.

Martin Heidegger e Jorge Luis Borges responderam um ao outro, sem o saberem, a esta mesma questão: a das eternidades sonhadas pelo homem.
O primeiro, ao afirmar que a “finitude do tempo só se tornava plenamente visível, quando o 'tempo sem fim'" se explicitava, por contraposição "à finitude” ; o segundo, ao afirmar que “ninguna de las eternidades que planearon los hombres”(...)”es una agregación mecánica del pasado, del presente y del porvenir. Es una cosa más sencilla y más mágica: es la simultaneidad de esos tiempos” .
Conclusão: a eternidade - ou a infinitude - torna-se, deste modo, numa espécie de negativo da finitude (e vice-versa), razão pela qual, no seu dicotomismo, o fim não pode nunca ser uma ruptura, ou um deslize para o abismo irrepresentável, mas sim um espaço derradeiro onde o tempo acaba por ser contido.
É nessa contenção do existente (o tempo existente é apenas o tempo concebível) que o nada nos acena. De longe.
Como um fantasma.

5 Nada fáustico.

No seu Del sentimiento trágico de la vida , Miguel de Unamuno, pôs a descoberto o que, à data, já era um sentimento comum de desconfiança face ao ímpeto - ou fuga para a frente - que o sujeito moderno parecia querer manifestar. Diante do “hombre concreto, de carne y hueso” que, no início da obra, surge identificado com “el sujeto y el objeto” de toda a filosofia, depara-se, com efeito, a maior das interrogações. O professor de Salamanca exprimi-la-ia do seguinte modo: “Progresar, para qué ?”. Adiantando-se à questão, Unamuno haveria de comentar e sobretudo alertar: "la famosa maladie du siècle, que se anuncia en Rousseau"(...)" no era ni es outra cosa que la pérdida de la fe en la inmortalidad del alma, en la finalidad humana del Universo. Su símbolo, su verdadero símbolo, es un ente de ficción, el Doctor Fausto.”
De facto, por mais macro-sujeitos que o limiar do século XX tivesse conhecido (a ‘classe’ marxista, a ‘humanidade’ comtiana, o ‘espírito’ hegeliano) e por mais performances que o sujeito livre tivesse exibido na novíssima arena dos artefactos e da urbanidade modernos, a questão persistia. Não era tanto a questão da miséria pascaliana do homem a sós sem Deus, mas era sobretudo o desnorte, ou a falta de fé, face àquilo que, durante séculos - e de diversas maneiras -, havia sido traduzido através da palavra ‘salvação’. Ao fim e ao cabo, é esse o desígnio que sempre perseguiu a longa ontologia (ou utopia) da imortalidade. As palavras quase mágicas enunciadas por J. Goethe e imputadas, na hora da morte, ao seu Fausto, parecem aliás atestá-lo:

(...)”Fausto- Que só da liberdade e vida é digno
Quem cada dia conquistá-las deve!”
(...)”Pudesse eu ver o movimento infindo !”
(...)“Mefistófeles-Consumou-se !
Coro- E acabou-se tudo !
Mefistófeles- Acabou-se ! Palavra sem sentido !
Acabou-se porquê ? acabou e nada
É tudo a mesma cousa ! Então que vale
A eterna criação ? Cousas criadas
Ao nada reduzir ! ‘ Está acabado’!...
Que quer isto dizer ? É exactamente
Como se nunca fosse, e todavia
Circula, como tendo inda existência !
Preferira ao que acaba o vácuo eterno.”

Enquanto Fausto sucumbe, após a grande ilusão que se transforma, porventura, na metáfora da própria transcendência perdida, ainda chega a afirmar o que jamais Sócrates, no seu tempo, teria podido afirmar: “Pudesse eu ver o movimento infindo !”. O verbo utilizado não é ‘saber’, ou ‘conhecer’; é antes, com toda a intencionalidade, - ‘ver’. Isso significa que, tal como nos relatos apocalípticos do séc. II AC ao séc. II DC, a descrença, ou a própria dúvida, impelem o sujeito a querer ver com os seus olhos a máquina que rege o perpétuo universal. Nesta medida, o sujeito ficcional reflecte a frustração que Mefistófeles depois aclarará, ao reduzir a zero a “eterna criação” e sobretudo ao equipará-la a “nada”. Por fim, Mefistófeles acabará mesmo por preferir o “vácuo eterno” (o impreenchível; o lugar da não-liberdade, ou da liberdade absoluta) ao que, queira-se ou não, ainda “circula” - ou permanece.

6 Nada metafísico.

Miguel de Unamuno parece acertar em cheio neste símbolo de todo o spleen da modernidade. A comprová-lo, bastará rever a questão que domina, do princípio ao fim, a Introdução à metafísica de Heidegger - “Porquê é afinal ente e não antes Nada ?” . A pergunta, para o autor, “gera o fund(ament)o de todo o verdadeiro questionar” e é mesmo reconhecida “como a questão mais originária”.
No fundo - repondo a dita questão no berço da modernidade - é como se do ‘nada’, o homem agora surgisse repentinamente para um recomeço total e se transformasse nesse ‘ente’ nostálgico de um ser que já nem consegue recordar.
A amnésia colectiva de que nos fala Bernardo Bertolucci ?

7 Nada como terra firme e deus como ser finado.

De qualquer modo, o desencanto pela modernidade começa no seio da própria modernidade e ninguém possivelmente o terá ilustrado melhor do que Nietzsche. No &124 de A Gaia Ciência , o autor parece narrar alegoricamente o facto - que poderíamos denominar por 'pecado original da modernidade’:

“No horizonte do infinito. Deixámos a terra firme, embarcámos ! Não podemos voltar para trás, mais ainda, cortámos todas as ligações com a terra firme ! Agora, barquito, toma cuidado ! Tens na tua frente o oceano ! É verdade que ele nem sempre ruge, por vezes espraia-se calmo, como se fosse seda e oiro, como um sonho de bondade! Momentos virão, porém, em que reconhecerás que ele é infinito e que nada há de mais terrível do que a infinitude. Ai da pobre ave que se sentiu livre, e se debate agora contra as paredes desta gaiola ! Ai de ti, se as saudades da terra firme te assaltarem, como se lá tivesse havido mais liberdade... agora que já deixou de haver “terra”."

A partida da ave que ousou ser livre é o próprio sujeito moderno, amaldiçoado por Nietzsche. Dele 'nada' se espera e o devir anunciado jamais se consumará; nem mesmo a ciência, atingido o seu horizonte ou limiar ilusórios, poderá valer ao desencanto humano. E porquê ? A resposta, concludente e quase apaixonada, surge curiosamente no Fragmento seguinte de A Gaia Ciência:

"Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite ? Não teremos de acender lanternas em pleno dia ? Será que ainda não estamos a ouvir o ruído que fazem os coveiros a enterrar Deus ?”(...)”Deus está morto ! Deus permanece morto ! E quem o matou fomos nós ! "

Já Maria Zambrano afirmara que o nada terá sido a última aparição do sagrado. Um fantasma sem rosto.
Nessa medida, todas as outras aparições acabam por ser, ou ilusão, ou dissimulado controlo do agir. Político, mas não só.

8 Nada branco e nada negro.

Disse Gilles Deleuze: "A diferença tem dois aspectos: o abismo indiferenciado, o nada negro, o animal indeterminado em que tudo é dissolvido - mas também o nada branco, a superfície tornada calma em que flutuam determinações não ligadas, como membros esparsos, cabeças sem pescoço, braços sem ombro, olhos sem fronte."
Por outras palavras, diríamos que foi esta a dança dominante das vanguardas do século XX. Pelo menos foi este o modo como as ditas oscilaram entre o informalismo complexo de Jackson Pollock e a action painting de Franz Kline, por um lado, e as figurações desconectadas de René Magritte e Max Ernst, por outro.
Segredaria o fantasma que se trata de magia negra e de magia branca, ambas na secreta demanda do seu próprio nome: o nada.

9 O nada e o rosto do mito.

E porque não há mito sem Pessoa, retenhamos ainda a emblemática metáfora do "Rosto da Europa" . Diga-se que, no poema, a "Europa" surge como jazendo sobre "os cotovelos", o mais recuado a Itália e o mais avançado a Inglaterra, de onde a mão sustenta o grande rosto. Este fita com olhar esfíngico e fatal o oceano, o mundo, o infinito; e "Este rosto que fita", é, afinal, para o poeta, "Portugal".
Na Mensagem, livro onde Pessoa introduz a ideia do rosto europeu, o poeta identifica o mito com esse "nada que é tudo", como se fosse "o corpo morto de Deus/ vivo e desnudo" que "aportou" em Portugal; e conclui nos versos seguintes: "As Nações todas são mistério/ Cada uma é todo o mundo a sós".
A última aparição do sagrado - esse "nada que é tudo", esse "corpo morto", mas "vivo e desnudo" - torna-se assim numa espécie de memória invisível, no mito, ele- mesmo; ou seja, na última das redenções criadas pelo do homem moderno.