segunda-feira, 31 de março de 2008

Wanted

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Depois do sucesso de audiências do vídeo, a palavra de ordem fez história. E continua a fazer. Tal como acontece com os blogues há já dois anos, o YouTube inundou, subitamente e em jeito de avalanche, o caudal dos media com imagens e mais imagens de “porrada” nas salas de aulas. Como se Portugal se tivesse transformado numa cascata de múltiplos ecrãs, desenterrados do fundo dos mares, onde os peixes se comem uns aos outros com dentes aguçados e finos. Espadas, escamas e sangue. Algas, professores degolados e um som arrastado à moda dos escafandros que não mais voltarão à superfície.
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(ver versão completa a partir da próxima quinta-feira no Expresso Online)
(ver também no meu
blogue de crónicas)

domingo, 30 de março de 2008

Episódios e Meteoros - 77

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O testemunho único de dois portugueses no Tibete
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(crónica publicada, desde quinta-feira passada, no Expresso Online)
(ver também no meu blogue de crónicas)
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Desde Setembro passado que o meu blogue publica as crónicas da volta ao mundo de dois amigos aventurosos: a Clara Piçarra, tecedeira de escritas e neta do saudoso Luís Piçarra, e Miguel Sacramento, fotógrafo. Os quase vinte testemunhos editados, nos últimos sete meses, abrangem latitudes muito variadas: Havana, Galápagos, Quito, Buenos Aires, Ushuaia, Polinésia, Ilha da Páscoa, Nova Zelândia, Austrália, sem esquecer Tahiti, Moorea, Huaihine ou Raiatea. A penúltima crónica que recebi veio da China e ligava, com sabedoria, a intimidade do fascínio com a visão abismada daquilo que, à partida, se revela como estranho:
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“Atravessar uma estrada, entrar num autocarro, perguntar onde estamos, saber o que comemos. Gestos simples são elevados à incompreensão. E nós, caídos num mundo novo e sem preparação, descobrimos vozes que estão para além da palavra. Aprendemos uma nova linguagem. A da existência”. Esta crónica – que pode ser lida na íntegra
aqui – foi publicada no dia 10 de Março, mas tinha sido recebida seis dias antes. Na carta que a acompanhava, a Clara escrevia: “Chegámos ontem ao Tibete, após uma viagem de 48h de comboio. Como tenho que reaprender a respirar neste ‘Topo do Mundo’, aproveito para enviar o texto da China. Para mim, a China ficou do outro lado dos Himalaias”.
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Devo dizer que o tom algo insondável que percorria a crónica me fez desejar a sua rápida continuação, porventura a partir da Índia. Mas não. Dez dias depois, precisamente a 20 de Março, soou o alarme. Num
brevíssimo mail, já no Nepal, a Clara e o Miguel revelavam ter presenciado o início da barbárie: “Fomos os dois (eu e o Miguel) as únicas testemunhas do princípio de tudo (no mosteiro de Drepung, onde estávamos no dia 10 de Março, por acaso)”. Na crónica enviada no dia seguinte, tudo se deslindava: “Ninguém olhava para trás. O medo envolvia os corpos. O que se passa? Responderam-nos: um fogo; exercícios… duas vozes fardadas. Queríamos voltar para trás. Já não conseguíamos ver as caras, apenas roupas vermelhas abafadas por uma força violenta. Armada. Foi o início. Sabemos que muitos desses monges morreram no final desse dia.”
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A publicação no Miniscente das variadas missivas, mensagens e crónicas, quase em tempo real, desencadeou um interessante diálogo com jornalistas, mas também o registo abjecto de comentários nos vários posts. Nestas alturas, quando a liberdade se impõe como tema primeiro, há sempre quem prefira instrumentalizar. E, neste caso, a abjecção chegou mesmo a legitimar a violência chinesa em nome – imagine-se – de interesses ditos nebulosos.
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As últimas palavras que recebi da Clara Piçarra – no momento em que escrevo esta crónica – tornaram-se, de qualquer modo, reveladoras: “As imagens violentíssimas e não oficiais (vídeos e fotografias) que vimos já em Kathmandu presumo que nunca irão ser passadas para os olhos do mundo... Fica apenas o nosso depoimento. Tenho uma pena desmedida do povo tibetano e chinês, mas fico feliz que em Portugal, pelo menos, se possa expressar a opinião. Quer sejam as do Luís que comenta no Miniscente ou totalmente contrárias. Acho que só isso mostra tudo”.
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A esta elementar e fundada resposta à abjecção, apenas acrescentaria uma derradeira nota: A liberdade é um bem tão precioso quanto, por vezes, demasiado invisível para quem nela respira e habita. Como se fosse um dado adquirido. É esse o problema de quem persiste em não querer ver a realidade em nome de receituários e dogmas, cujo simplismo tem, no mínimo, a marca do ignóbil.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Cerveja e literatura - 69

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“(…) O Leste? Ainda lá estou de certo modo, sentado ao lado do condutor numa das camionetas da coluna, a pular pelas picadas de areia a caminho de Malanje. Ninda, Luate, Lusse, Nengo, rios que a chuva engrossara sob as pontes de pau, aldeias de leprosos, a terra vermelha de Gago Coutinho que se prende à pele e aos cabelos, o tenente-coronel eternamente aflito a encolher os ombros diante do licor de cacau, os agentes da PIDE no café do Mete-Lenha, lançando soslaios foscos de ódio para os negros que bebiam nas mesas próximas as cervejas tímidas do medo.”
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(António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Publicações Dom Quixote, Lisboa, (1979) 2001, p. 143; Participação: Maria João Eloy
)

terça-feira, 25 de março de 2008

Para além de qualquer lamento

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O texto na página 4 do P2 (da edição impressa de hoje) do Público começa assim:
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"Miguel Sacramento está a dar uma volta ao mundo com a namorada, Clara Piçarra. Foram ao Tibete para ver a "cultura única" e a "beleza natural" do Tecto do Mundo. Mas viram outras coisas. Viram polícias e militares por toda a parte."
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Tenho pena que a Francisca Gorjão Henriques não tenha revelado, pelo menos, o ponto de partida para este seu trabalho. Não seria obrigatório, mas eu confesso que, se tivesse escrito um post no Miniscente baseado numa informação original ligada ao Público, decerto que a teria revelado (ainda que em minúsculas - como faço com as imagens). Custa-me muito escrever isto em público, sublinho, porque gosto especialmente da Francisca. Mas não posso deixar de o fazer.

Episódios e Meteoros - 76

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(crónica publicada, desde quinta-feira passada, no Expresso Online)
(ver também no meu
blogue de crónicas)
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Uma apologia de Miguel Esteves Cardoso
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Houve um tempo português em que a crónica quis libertar a sina do sinal. Por outras palavras: retirar o telhado pesadão a uma escrita que exagerava em verosimilhança e em pessoana seriedade. Foi nos anos oitenta, vivia eu na Holanda e era assinante do Expresso.
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Miguel Esteves Cardoso foi o papa angélico da feliz cenografia que acabou por ter imensa influência na geração que se seguiu ao demiúrgico Turn. Década e meia depois, a blogosfera lusitana herdaria parte da emboscada expressiva em muitos dos seus melhores cultores. Este é um campo ainda virgem, por estudar, por auscultar. Por desbravar.
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Nessa lenta peregrinação, que ajudou a desmontar o binário a diesel da ideologia (isto é: da escrita baseada na prova, na farpa previsível ou no bate-bate pimba dos receituários), a crónica ganhou novos sabores e saberes. Ao fim e ao cabo, entre a imagem escrita e o que ela sugeriria, deixou de haver um casamento perfeito e monolítico. As palavras passaram subitamente a reinventar-se ao jeito de um jogo de damas sem fim. Um cachalote a escalar a montanha ou Luís Filipe Menezes a falar sobre Sísifo seriam assim – e não serão? – coisas parecidas. E não tanto pelo facto de os habitantes de Creta serem cretinos ou os de Malta serem apenas malteses.
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Diga o que disser Kundera, a leveza sempre foi matéria cinematográfica. Imagens fortes, pois então. E já o era séculos antes de haver cinema, sob a forma de sombra e luz projectadas num quarto escuro em tudo parecido às circunvalações neurais. No fundo, é este tipo de leveza que permite a uma boa escrita não depender apenas do que diz (ou do que refere). A crónica é sempre uma síntese, um simples electrão, ou melhor: a própria electricidade mais estética do que estática. E é por isso mesmo uma bênção e um hiato que se recolhe na boca que a lê e digere – à moda das pastilhas elásticas – com humor e leveza (se possível).
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Nunca conheci pessoalmente Miguel Esteves Cardoso, embora na minha pré-história universitária ele tenha frequentado a mesma escola de jesuítas que eu frequentei. E na mesma época, segredam-me os botões de punho. Na altura em que o MEC passa uma fase difícil, queria aqui relembrar a Causa destas Coisas todas. Ainda que por vezes o personagem me tenha entaliscasdo o juízo (e me cheirasse a redundância), nada ofusca os deleites que vivi na Palmstraat Nº 90, quando, pelo correio, me chegava o Expresso fresquinho entre discursos do Gorbatchov, romances de Sollers e o saudoso cata-vento televisivo chamado VPRO. Foi aí que percebi que algo estava a mudar na arte lusa da crónica. E percebi bem.

segunda-feira, 24 de março de 2008

O Tibete e a liberdade (continuação)

NCN
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O ruído quase abjecto que atravessa os comentários ao post anterior leva-me a tornar público mais algumas palavras da Clara Piçarra e do Miguel Sacramento, ainda no Nepal, mas com a memória cheia do que viram (com os seus próprios olhos) no Tibete:
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"Já fomos entrevistados pela TSF, Expresso e Público (pela Rádio Renascenca provavelmente hoje à noite). Amanhã partimos para a montanha para umas caminhadas incontactáveis. Depois continuaremos a Volta ao Mundo para o Sudeste Asiático. Tudo o que se passou no Tibete ficar-nos-á na memória. As imagens violentíssimas e não oficiais (vídeos e fotografias) que vimos já em Kathmandu presumo que nunca irão ser passadas para os olhos do mundo... Fica apenas o nosso depoimento."
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"Tenho uma pena desmedida do povo tibetano e chinês, mas fico feliz que em Portugal, pelo menos, se possa expressar a opinião. Quer sejam as do Luís que comenta no Miniscente ou totalmente contrárias. Acho que só isso mostra tudo."
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Continuarei à espera - serenamente - das próximas crónicas dessa longa volta ao mundo que se iniciou em Setembro passado e que já dobrou a América do sul, o Pacífico, a Austrália, a Nova Zelândia, a China e... como se sabe... o Tibete na chamada 'hora H' da barbárie. A liberdade é um bem tão precioso quanto, por vezes, demasiado invisível para quem nela respira. É esse o problema de quem não quer ver a realidade em nome de gramáticas, receituários e dogmas subterrâneos.

sábado, 22 de março de 2008

Tibete: ainda a denúncia em directo

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O jornal Phayul mostra, pela primeira vez, os portugueses que viram tudo começar no Tibete. À direita, ao lado de Steven Dubois e de Ulkike Lakiere, pode ver-se a Clara Piçarra e o Miguel Sacramento (ver crónica de ambos em baixo e demais notícias).

sexta-feira, 21 de março de 2008

Volta ao Mundo - 17

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A Clara acaba, neste momento, de me enviar um texto do Nepal. Sei que vai falar aos jornais em breve, mas deixo - agora aqui - a sua crónica (e a foto do Miguel):
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"Tibete"
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"Não sou jornalista.
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Acrescento sempre palavras ao que vejo. E guardo outras, num recanto do meu egoísmo. Não acreditem no que escrevo, pensem apenas. Porque pode ser verdade.
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Quem é que nunca sentiu a surpresa de uma notícia? Ou o susto de uma bomba de Carnaval? Ou encontrou um conhecido num lugar improvável? Ou se queimou, se arrependeu, pisou um buraco? Momentos… momentos… momentos… em que não temos tempo para controlar a parte de dentro do corpo. Era dia 10 de Março. E o maior desses momentos aconteceu. Descíamos a rua do Mosteiro de Drepung, com dezenas de monges, em debates e amizades criadas pelo puro acaso durante todo esse dia. Um falava sobre a importância da data, outro de liberdade, da vida, de estarem a um passo de ter voz. Apenas voz. Nem cabíamos dentro da pele. Os únicos diferentes do meio, mas no meio. Entre sorrisos vermelhos e vestidos de confiança, faláv… Sinto um braço a puxar-me, a rua bloqueada, e tanta gente. Polícias de choque, militares, camiões, um barulho confuso a impedir o caminho para Lassa. E um braço. A insistir, a puxar-me. Num segundo levou-nos para o outro lado da rua. Vi que era um polícia. Não podem estar aqui. Continuem a andar. Do outro lado os monges, num silêncio cada vez mais afastado. Mais carros, e homens, e carros, e homens. Sem farda. Fecharam as lojas, fecharam as casas. Voltaram. Tiraram as pessoas das casas. Continuem a andar. Ninguém olhava para trás. O medo envolvia os corpos. O que se passa? Responderam-nos: um fogo; exercícios… duas vozes fardadas. Queríamos voltar para trás. Já não conseguíamos ver as caras, apenas roupas vermelhas abafadas por uma força violenta. Armada.
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Foi o início. Sabemos que muitos desses monges morreram no final desse dia.
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Após quilómetros a andar por estradas de terra não batida, a tentar inventar ruelas que nos levassem a testemunhar a prepotência militar e policial sobre pessoas desarmadas, descobrimos o pior. A nossa impotência. O bloqueio estendia-se ao inimaginável, até nenhum som vindo do Mosteiro se conseguir ouvir. Máquinas fotográficas inspeccionadas ao milímetro, questionados ao milímetro, desde esse instante, controlados ao milímetro. Telefones, internet, conversas, gestos e decisões. Tínhamos sido as únicas testemunhas do início, da violência utilizada sem justificações de defesa, da experiência que demonstraram, da rapidez com que limparam o local de olhos e provas, da postura silenciosa daqueles monges. Os sete dias até à chegada ao Nepal, por terra, a dormir em pequenas aldeias no meio dos Himalaias, ficaram marcados pela tentativa de criar medo. Presos nos quartos, revistados, identificação constantemente exigida na estrada e após a única consulta do e-mail, horas passadas na fronteira… Mas não foi o que mais me assustou. Foi a certeza do que vi: o controlo do povo chinês e tibetano levado ao extremo por violência e impunidade; a quantidade sem fim de agentes à paisana ou pessoas que a troco de uns sapatos novos falam do que se passa na casa ao lado; o medo; a propaganda; a confissão assustada de que a falta de direitos humanos ultrapassa o não ter pão. Aqui morre-se por ter opinião.
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Tudo o resto que vivi no Tibete ultrapassa um texto legível… por enquanto. Mas tenho voz. E não me esqueço."

quinta-feira, 20 de março de 2008

Em directo do Tibete: a denúncia

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Não sou capaz de não tornar público o mail que acabo de receber de uma amiga que saiu ontem do Tibete e que testemunhou o início de tudo (deixo o mail como me chegou, acentos incluídos). A Clara e o Miguel - é deles que se trata - têm enviado aqui para o Minscente as crónicas da sua volta ao mundo - que me desculpem! Sei bem que me irão desculpar:
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"Meus queridos amigos,
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Cheguei ontem ao Nepal, apos dias muito violentos passados no Tibete.Estou muito muito cansada. Um cansaco diferente... estou sem energia. Tenho que comer e descansar, para conseguir por as ideias mais claras e escrever sobre tudo o que aconteceu. Espero que para o Miniscente, Luis, se conseguir.
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Mas, agora que posso, tenho que comecar a falar. Devem saber o que se passa no Tibete... O que vos posso dizer eh que tudo eh muito mais violento do que mostram na televisao. Foi muito muito violento. Para os tibetanos vai ser um massacre. Nunca vamos saber quantos morreram ou morrerao. Para nos, alem de violento psicologicamente, foi mais perigoso porque acabou por se saber que fomos os dois (eu e o Miguel) as unicas testemunhas do principio de tudo (no mosteiro de Drepung, onde estavamos no dia 10 de Marco, por acaso).
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Ficamos imediatamente controlados pela policia ao ponto de, a caminho para o Nepal, nos dizerem que estavamos presos no hotel. Nunca tinha sentido o que era estar "presa" nao porque tivesse feito alguma coisa mas porque nao queriam que falassemos. O nosso mail e telefone ficaram, tambem, imediatamente controlados e as nossas maquinas fotograficas bem inspeccionadas.
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Vimos a maior violencia policial que podem maginar, sobre pessoas desarmadas. Nao vimos ninguem morrer, mas sabemos que muitos dos monges com quem estivemos durante todo o dia 10, morreram depois, nesse mesmo dia. Vai ser um massacre em Lassa. Tudo o que disserem nas noticias de contrario podem acreditar que eh mentira. Ha lugares no mundo onde pessoas morrem por terem opiniao. Nao se passa apenas na distancia da televisao, ou em filmes com actores conhecidos, passa-se na realidade e muito perto de nos.
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Desculpem a violencia do mail. Nao vos contei nem metade do que vi e vivi nestes dias. Mas nao posso ficar mais dias em silencio.
Espero que compreendam...
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Muitos beijos. Adoro-vos.Clara
(Espero que o que se esta a passar no Tibete nao seja esquecido mal comece o Europeu de Futebol...)"

Boa Páscoa!

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BOA PÁSCOA!

A atenção de Paulo Querido

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Óptimo texto do Paulo Querido sobre o lançamento e discussão do meu livro A Expressão na Rede - O Caso dos Blogues. Esta questão da verdade vs. sentido (os grandes Turns da segunda metade do século XX) assim como a questão da verdade vs. ficção (cuja superação remete para o hiper-real) constituem, afinal, temas actualíssimos e que, na minha modesta opinião, se reflectem, com rara nitidez, no universo dos blogues. Só que meio mundo... não gosta de discussões e reflexão acerca destes reflexos (passe a redundância activa). Paulo Querido é excepção. Um abraço.

terça-feira, 18 de março de 2008

Episódios e Meteoros - 75

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Esquerda? direita? Tetraodon Nigroviridis sorriu e exclamou: “Angústias”. E continuou, lucubrando sobre a espécie humana: as pessoas precisam de um horizonte, de uma congruência forçada. As pessoas precisam de atribuir uma lógica contínua ao que fazem e ao que dizem. As pessoas precisam de herdar o que lhes dá mais jeito. Uma questão de economia. Mas também de liberdade. Por vezes untada e em série, outras vezes “desmassificada” (para utilizar o termo do casal Toffler). Outras vezes ainda… nem isso.
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(ver crónica completa no Expresso Online ou no meu blogue de crónicas)

segunda-feira, 17 de março de 2008

Risos - 11

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Na Retória, Aristóteles evoca um livro que viria a perder-se:
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“Semelhantemente, como são agradáveis o jogo, toda a espécie de folga e o riso, também o que é risível deve ser agradável, tanto pessoas, como palavras e obras. [1372a] As coisas risíveis foram definidas separadamente nos livros sobre a Poética. Eis o que tínhamos para dizer sobre as coisas agradáveis; as dolorosas são manifestas pelos seus contrários.”
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(Tradução e notas de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pera, INCM, Lisboa, 1988, p.88)

sábado, 15 de março de 2008

Pré-publicações - 78

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Rubem Fonseca, Ela e Outras mulheres, Campo das Letras, Porto, 2008.
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Pré-publicação:
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"Alice"
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“Nosso filho Gabriel, de catorze anos, era gago. Eu e minha mulher Celina já o havíamos levado a vários especialistas, mas a gagueira dele continuava. Gabriel era estudioso e passava de ano em todas as matérias, menos em português, em que sempre ficava de recuperação. Conseguíamos um professor para lhe dar aulas particulares e assim mesmo ele passava com dificuldade.
Nas ocasiões em que o professor mudava, o que podia ocorrer quando Gabriel passava de ano, eu e Celina procurávamos o novo professor para falar das dificuldades do nosso filho. Nesse ano, quando marcámos a entrevista, verificámos que quem ia ensinar português ao Gabriel era uma professora, de nome Alice, que fora transferida de outra escola, uma mulher de aproximadamente quarenta anos, separada do marido, sem filhos.
A professora perguntou se Gabriel gostava de ler e minha mulher respondeu que ele detestava e se irritava quando o professor mandava ler um livro da bibliografia. A professora Alice disse que isso era comum, os jovens, com algumas excepções, não gostavam de ler.
Uns meses depois a professora Alice nos telefonou pedindo que fôssemos à escola. Ela nos recebeu gentilmente e disse que haviam sido realizadas as primeiras provas e que Gabriel tivera um desempenho abaixo de sofrível. Acrescentou que ele precisaria de aulas particulares. Minha mulher deu um suspiro, era ela quem tomava conta das finanças da família e conhecia melhor do que eu a nossa situação económica. Eu sempre achei que Gabriel deveria estudar numa escola pública, mas Celina queria que ele frequentasse o melhor colégio, cuja mensalidade era uma fortuna.
A professora Alice era uma mulher inteligente e devia ter percebido o nosso embaraço. Ou talvez não tivesse tido a sensibilidade de ler o nosso semblante, apenas notara pelas nossas roupas que nós não pertencíamos ao mesmo nível económico e social dos outros pais que tinham filhos naquele colégio. Houve um instante em que percebi que a professora Alice olhara os sapatos de Celina, e as mulheres entendem de sapatos, e são capazes de descobrir, pelo sapato de uma mulher, o nível económico-social a que ela pertence.
Depois de consultar uma agenda, a professora Alice disse que poderia dar as aulas particulares ao Gabriel sem cobrar por isso. Eu e Celina alegámos, sem muita convicção, que não queríamos dar esse trabalho a ela, mas a professora Alice foi categórica e marcou para todas as terças e quintas-feiras à noite aulas particulares em sua casa.
Aquilo nos deixou aliviados, não apenas deixaríamos de pagar pelas aulas como elas não seriam realizadas em nosso pequeno e desconfortável apartamento.
Um mês mais tarde notei que Gabriel estava deitado no quarto lendo. Perguntei que livro era aquele e ele respondeu que lhe fora emprestado pela professora Alice. Ela é boa professora?, perguntei, e ele respondeu que ela era legal.
Contei para Celina o que acontecera. Ela não acreditou que Gabriel estivesse lendo um livro, disse que ele odiava livros.
Acrescentei que era um livro do Machado de Assis e ela fez uma careta dizendo que quando mandavam ela ler Machado de Assis no colégio ela não conseguia e pedia a uma amiga para lhe dizer qual era a trama do livro, e acrescentou que Machado de Assis era um chato insuportável. Mais tarde, quando estávamos na cama, ela disse, essa professora Alice é uma feiticeira.
Feiticeira do bem, acrescentou depois de uma pausa.
Mas a professora Alice era muito mais feiticeira do que supúnhamos. Além de ter tido uma boa nota na segunda prova e de ficar lendo diariamente, até mesmo deixando de ver o jogo de futebol na televisão, Gabriel parou de gaguejar. Celina lembrou-se do médico que dissera que para curar a gagueira de Gabriel precisaria usar um tal de método holístico.
Ele explicou o que era, escreveu num papel, que eu guardei. A gagueira, conforme escreveu o médico, só poderia ser curada através do holismo, que busca a integração dos aspectos físicos, emocionais, mentais do ser humano. Segundo o médico, nós não éramos apenas matéria física, nem somente consciência, nem unicamente emoções, éramos uma totalidade que precisa ser analisada em sua inteireza. O tratamento holístico custaria uma fortuna. Creio que ele não olhou os sapatos de Celina.
O certo é que Gabriel não gaguejava mais e ao comentar o assunto no escritório um colega me disse que isso era muito comum, um menino ou menina gaguejava até uma certa idade e de repente parava de gaguejar.
Gabriel não apenas falava com desembaraço, também deixara de ter o aspecto sorumbático de antes. Ter-se curado da gagueira lhe fizera um grande bem. E também a Celina, que sentiu-se perdoada. Nós tivemos o Gabriel quando ela tinha dezasseis anos de idade e eu dezoito, ainda solteiros. E ela, que era muito católica, eu diria mesmo uma carola, acreditava que a deficiência de Gabriel tinha sido uma espécie de punição divina e sentia-se culpada.
Convidámos a professora Alice para jantar em nossa casa.
Era uma pessoa agradável, inteligente e muito falante. Quem ficou muito calado durante o jantar foi o Gabriel, certamente com medo de gaguejar na frente da professora. Eu o provoquei várias vezes, mas ele respondia monossilabicamente.
Celina perguntou à professora se Gabriel ainda precisava daquelas aulas extras, explicou que não queríamos abusar da sua generosidade. Alice respondeu que ele estava indo muito bem, principalmente na parte de redacção, pois passara a ler bastante, mas na gramática ainda havia algumas insuficiências.”
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Cerveja e literatura - 68

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A palavra a Maria do Rosário Fardilha :
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"Acabo de ler A Morte Feliz de Albert Camus. Na Segunda Parte, «A Morte Consciente», o protagonista, Mersault, deambula por Praga. Um dos hábitos que adquire é o de jantar todos os dias num restaurante que descobriu por acaso "donde saía um som de acordeão":
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"A um canto, raparigas de lábios besuntados comiam qualquer coisa. O resto dos clientes bebia canecas de cerveja preta, a cerveja adocicada da Checoslováquia" (p. 76).
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"Continuava a comer no mesmo restaurante, onde já se não sentia um estranho. Ocupava o mesmo lugar, ao lado do homem da estrela vermelha, que só vinha à noite beber uma caneca de cerveja e remoer no seu eterno pau de fósforo." (p. 80)
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(Albert Camus, A Morte Feliz, Edit. Livros do Brasil, Lisboa, 2002, pp. 76 e 80; participação:
Maria do Rosário Fardilha)

terça-feira, 11 de março de 2008

O texto que a Isabela não leu

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Eu também concordo, Isabela, que perdemos uma boa ocasião para dizer alguma coisa sobre o que o meu livro pretendia abrir (sim, um livro pode ser uma faca sem lâmina que abre um envelope sem fim). Por isso, deixo aqui o belo texto da Isabela que não foi - infelizmente - revelado na Casa Fernando Pessoa, na passada quinta-feira:
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"As linguagens seculares estão em declínio. Penso que o fenómeno reflecte, inapelavelmente, o tempo pouco rigoroso que atravessamos e atravessaremos. As linguagens seculares carregam o peso da erudição, de um discurso nem sempre fácil, reclamando concentração, e os tempos são outros: o leitor procura, na literatura, como no resto, o fácil e o rápido, conclusão a que chego sem censura: também estou cansada de certos discursos seculares, os quais, frequentemente, pouco me dizem. Os blogues têm sabido responder a esta procura, com texto curto, inteligente e satírico, cuja leitura não exige acurada atenção. Por outro lado, usando as linguagens não textuais, como a "caderneta de cromos", ou seja o fotoblogue, e a praga do You Tube. O You Tube fala pelo bloguista. Exige-lhe menos trabalho, e satisfaz por igual o leitor, confrontando-o com informação nova e inesperada. A questão da autoria é alheia ao leitor do blogue. Não lhe interessa quem produziu o que lê ou vê, mas a emoção produzida.
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Este é o estado das linguagens seculares, e é assim porque o mundo mudou, nós mudámos, a cultura mudou. Deseja-se interacção, imediatismo e intensidade. A ficção tem dificuldade em superar a intensidade da vida real. O carácter excessivo da vida real colide com o pudor da ficção. Como ficcionar a realidade sem a tornar inverosímil, sem a transformar numa novela das 7? A ficção perdeu pathos. A grande literatura perdeu pathos. Os leitores emocionam-se com o big brother, por excelência a novela da vida real, e é nesse aspecto que o blogue de quotidiano, diarístico, confessional, entra, e funciona. O blogue torna-se uma espécie de big brother que o autor manipula a gosto, seleccionando as imagens do seu real que quer passar. E passando-as, escolhe a música de fundo com que pretende que sejam visionadas. A vantagem do blogue no qual se insere O Mundo Perfeito, e o seu sucesso, está neste equilíbrio inconfessado, nunca verdadeiramente declarado, entre o real e o ficcional. Por vezes não interessa nada ao leitor que aquele poste seja a realidade. Por vezes, só consegue lê-lo como autobiografia em estado puro. Para mim, enquanto bloguista, tanto faz. O texto postado é para o leitor aquilo que o leitor precisar de ler nele. Nisto, o blogue revela uma plasticidade insuperável, e é um meio de comunicação absolutamente surpreendente.
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A actual tendência para a uma literatura rápida, curta, confessional, regista visível crescimento a nível editorial. Não me lembro de as livrarias exibirem tantas novidades editoriais na área do memorialismo, do texto biográfico e autobiográfico bem como irónico, auto-irónico. Os leitores procuram a confissão, o documento: mais uma vez, o pathos da vida real que tão bem serve o blogue-diário. N' O Mundo Perfeito, por exemplo, os leitores preferem as aventuras pseudo-verídicas da Isabela, operária suburbana, solteirona, com excesso de peso, uma mãe, duas cadelas, que trabalha numa fábrica de parafusos, e evidencia uma certa má relação com os homens e o sexo. A Isabela tem um passado de vivências exóticas e intensas, sonha um futuro qualquer que há-de vir, e narra as aventuras da sua vida solitária e social, os amores e desamores, traumas, medos, caprichos, incoerências, revelando uma humanidade tão chã quanto nobre, com a qual o leitor vulgar se pode identificar. "A Isabela é perfeita, mas a Isabela não é perfeita. A Isabela é como eu ou a Isabela é tudo o que desprezo. Amo-a. Odeio-a." Escreva a Isabela bloguista o que escrever, o que até poderá ser a fórmula química da vacina contra a sida, e os leitores não recusarão ler e comentar, mas o que vende, o que aqui se procura, é a personalidade amorosa, mas brutal, contraditória, radical, teimosa, idealista, bastante romântica e vagamente fora de moda e contracultura da Isabela, que se pode amar e odiar livremente, a quem podemos deixar declarações de amor ou insultos, coisa que não podemos fazer relativamente à Clara Ferreira Alves ou outras "personagens" pelas quais sentimos igual paixão. As linguagens seculares pouco entram neste insuperável trânsito de pathos. Desprezam o confessionalismo, olham-no tão de lado quanto possível, mesmo que se declare contaminado."
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"Isto seria o que eventualmente teria dito sobre o tema "O modo como as linguagens seculares (que aprendemos sem ter em conta a rede) se moldam, hoje em dia, à rede e mais concretamente aos blogues", caso esta conversa tivesse ocorrido na Casa Fernando Pessoa, no passado dia 6. Como não aconteceu, deixo aqui a minha participação. Para a próxima, por favor, convidem-me a participar via net, e assim posso vir logo para casa vestir o pijama e meter-me debaixo do aquecedor enquanto vejo o telejornal."

segunda-feira, 10 de março de 2008

Volta ao Mundo - 16

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Para os mais distraídos, devo repetir que partiram há já sete meses e que ainda não terão chegado a meio da volta ao mundo. Estando na China de momento, a Clara e o Miguel deixaram para trás muitas outras terras e crónicas: Madrid, Havana, Galapagos, Quito, Buenos Aires, Ushuaia, Polinésia, Ilha da Páscoa e Nova Zelândia; com passagens por Tahiti, Moorea, Huaihine e Raiatea. Publico hoje a 17ª epístola aos lusitanos, no que constitui um singular exclusivo para o Miniscente:
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"China"
e
"Canto. Som. Vermelho.
e
Os dias que vivemos na China ultrapassam o tamanho das palavras. Não há recantos descobertos dentro do meu ser que abranjam o tamanho de uma descrição. Devolvo-me às palavras soltas, ao abrir e fechar de olhos. Como um filme de imagens recortadas ao acaso, sem ordem, sem preparação. Cru. Só com a força dos pedaços soltos que acontecem.
e
Dragão. Fogo. Luz.
e
No meio de uma multidão que não nos esmagava. A viver a experiencia do lado contrário. Milhares de máquinas fotográficas paradas no espanto. Porque éramos nós a diferença. Queriam guardar-nos num retrato. O Dragão dançava o conhecido, a música e a festa cantavam felicidades repetidas. Nós. Nós tínhamos pêlos e olhos redondos, éramos altos como saídos de um filme. Abraços e sorrisos envolviam-nos com cuidado para não nos transformarmos num nada. Uma espiral de emoções apagava a necessidade de falarmos a mesma lingua. Éramos apenas aquele momento diluído de surpresa.

Toque. Cheiro. Passagem.
e
Pelo meio de ruas cobertas de pessoas, passos e fumo. A noção da individualidade perde-se no íntimo de cada um. Não há espaço livre, não há um cheiro conhecido, não há um sinal que os nossos olhos reconheçam. Deixamo-nos seguir pelo meio. Uma discussão sobe o tom de um canto, imaginamos facas e sangue, choros e corpos deitados ao chão. Esperamos o pior… Despedem-se com gargalhadas curvas e barrigas cheias de riso. Não temos tempo para nos sentir perdidos. No instante em que julgávamos a nossa interpretação alguém nos dava algo para a mão. Comida ou objecto? Experimentamos ou guardamos no bolso? À nossa frente um homem mínimo esperava a acção. Comemos. O sabor doce do desconhecido junta-se ao sorriso do vendedor. O que seria?
e
Medo. Curiosidade. Voz.
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Numa estação de comboios onde as pessoas esperam por um dia que não sabem se será o seguinte. Juntas, apagadas pelo frio e por uma solidão profunda que se prolonga até aos nossos olhos sem uma palavra. Transformam as nossas cores num cinzento-escuro que nos atravessa o corpo e nos corta pedaços. À medida que passamos ficam espalhados pelo chão. O mesmo onde se sentam e dormem e esperam. Entrámos no comboio vazios de nós.
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- O que é isso? – um estudante do quarto ano da Universidade, companheiro da longa viagem.
- Um saco-cama.
- Estou confuso… para que serve?
e
Como se explica o conforto, a suavidade?
Caos. E novidade sem fim.
e
Atravessar uma estrada, entrar num autocarro, perguntar onde estamos, saber o que comemos. Gestos simples são elevados à incompreensão. E nós, caídos num mundo novo e sem preparação, descobrimos vozes que estão para além da palavra. Aprendemos uma nova linguagem. A da existência."

sábado, 8 de março de 2008

Episódios e Meteoros - 74

e
(crónica publicada, desde quinta-feira, no Expresso Online)
(ver também no meu blogue de crónicas)
es
A fábula da educação em Portugal
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O Tatraodon Nigroviridis, ou peixe-bola, é o animal que tem o genoma mais parecido com o genoma da espécie humana. Eu já desconfiava, há muito tempo, do excesso de simpatia deste nosso antepassado comum.
s
Não sei se navega em águas profundas, nem sei se trabalha no ministério da educação ou se tem amigos na Fenprof (imagino que faz uma perninha em cada lado). Nem sei se a sua forma esférica o empurrará para o compromisso (imagino-o a cotejar fichas de avaliação para professores), ou se o seu imenso lombo faz dele um emplastro que prefere o sorriso para as câmaras à acção (sem dúvida nenhuma, o seu jogo estratégico).
s
Estou certo de que a vida humana começou nas praias portuguesas e que o Tatraodon Nigroviridis, ou peixe-bola, terá sido o primeiro dos nossos seres. Muito antes de Viriato. Uma corrente ilustríssima do pensamento ocidental, a filosofia portuguesa, já o havia sinalizado (e, porventura, em carta a Pascoaes, já Unamuno corroborara o notável facto).
s
O animal foi o primeiro a indignar-se com os pescadores que lhe tocavam nos direitos adquiridos. Em vez do jogo da isca e do engodo, lançaram-lhe rede e a navegação tornou-se, desde logo, complicada. Raul Brandão estava a milhas deste descontentamento: lenços e mais lenços brancos em águas costeiras, pois o Tatraodon Nigroviridis não gosta realmente que lhe mexam nas rotinas, nos hábitos e no habitat.
s
O Tatraodon Nigroviridis sempre adorou as suas pequenas hortinhas no fundo do mar, recheadas com algas e mastros de antigos barcos que, há séculos, descobriam continentes e cofres épicos a saber a pimenta.
s
O Tatraodon Nigroviridis é bicho de caprichos e gosta que um rectângulo seja um rectângulo, que uma ministra seja uma ministra e que um professor seja um professor. E adora sobretudo a “desmassificação” profetizada por Toffler: no fundo, a nova vaga do antiquíssimo “pobretes mas alegretes”. Dito por outras palavras: “Deixem-nos em paz e deixem-se de invenções”.
s
Nada melhor, pois, do que navegar orgulhosamente e a sós, à imagem do cardume nostálgico e brando que dá pelo nome de Tatraodon Nigroviridis. O país profundo tudo tem feito para honrar estas suas raízes ancestrais. E continua a fazê-lo. Com poucas dissonâncias. No agitado telejornal das oito, ou na caótica 5 de Outubro. Tanto faz. Uns e outros adorariam estar a milhas deste filme.

sexta-feira, 7 de março de 2008

O livro já aí anda

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Peço uma breve pausa. Tenho que respirar fundo. Durante o fim-de-semana, terei tempo para dizer algumas coisas. Sim, ficaram coisas por dizer. Fica sempre tudo por dizer.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Hoje há livro sobre a blogosfera

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Pois é, relembro: HOJE, na Casa Fernando Pessoa (18.30h), com apresentação a cargo do Eduardo Pitta, vai ser lançado o meu livro A Expressão na Rede - O Caso dos Blogues (Magna Editora). Seguir-se-á um debate com moderação de Paulo Gorjão e com a presença dos bloggers Carla Hilário Quevedo, Isabela, Pedro Rolo Duarte e Vasco M. Barreto. Espero que compareça.
e
Para iniciar as hostilidades, vou deixar aqui neste longo post, ao jeito de excertos mobilizadores, alguns tópicos que logo mais desejarão encontrar o seu eco:
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"Sendo franco, deve dizer-se que o termo “telemática” foi criado por Alain Minc em 1978 (a partir de “telecomunicação” + “informática”) num artigo sobre a “informatização da sociedade” e corresponde hoje, reportando-me a Claudia Giannetti, a um campo do saber que investiga a dissociação entre o corpo e a informação. O espaço telemático é assim encarado, nesta acepção como na de Sloterdijk, como uma rede em constante mobilidade que permite visionar a ideia de televiagem e – tal como sustenta Giannetti – a “transladação imaterial para qualquer sítio em tempo real”.
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"Curiosamente, quando a Declaração de Leiner e Cerf foi tornada pública, a meados dos anos setenta, o protocolo que viria a criar rede (TCP/IP) tal como hoje a entendemos, baseava-se já na lógica do End-to-End. Ou seja, tal como este último escreveria mais tarde: “A única coisa que queríamos era que os bits fossem transportados através das redes, apenas isso...”
e
"Os campos hoje em dia contaminam-se, confundem-se e movem-se. A blogosfera é um desses campos que cresceu e apareceu na turbulência que reflecte e está a edificar o presente comunicacional. Subitamente, quebraram-se as paredes que limitavam os géneros e as legitimações expressivas, ao mesmo tempo que se passaram a ouvir vozes que antes não dispunham de meio onde enquadrar a sua expressão própria. Todos conhecíamos já a tradição espistolográfica, enciclopédica e opinativa que era complementada com modelos adequados à tradução do intimismo (diário, crónica, memórias, etc.). Contudo, a blogosfera (ao lado de outros meios inovadores) está a proporcionar a enunciação de tipos expressivos que não se enquadram já em nenhum destes moldes que parecem ter sempre existido."
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"Poder-se-ia até ir mais longe e reivindicar para a blogosfera um certo tipo de ‘efeito estético’ que resulta da permanente adaptação da linguagem ao multi-posicionamento das escritas na relação com outras escritas hipertextuais e com o novo meio onde se inserem. A linguagem no novo meio blogosférico é uma linguagem que acaba por flectir em tempo real, como se fosse um corpo em movimento, mas sem regras óbvias que lhe apontassem uma sintaxe apropriada, uma locução tipificada e um sentido estrito de finalidade. O jogo desta nova linguagem é a pesquisa da sua própria expressão, afinal (é esse o seu tom). Este tipo de ‘efeito estético’ que se sente na blogosfera vive sobretudo de um princípio que o design tornou presente há algumas décadas: uma permanente perturbação no que sempre foi um encaixe perfeito entre acondicionamento e finalidade."
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"Cada post tende para variadíssimos textos que nunca constrói integralmente. A geometria do registo blogosférico prefere arrumar-se no fragmento onde não existe um limite claro a que tenha que submeter-se. O post é sempre um segmento que recusou a arquitectura, mas que, ao mesmo tempo, a transformou parodicamente em leve storyboard. O post é livre e anda à deriva entre várias possibilidades que se imaginarão. Está muito para além da tradição da “Obra Aberta”, porque aquilo que o anima não é a dedução de várias finalidades possíveis por parte de um intérprete, mas sim a pura propagação na rede: dá-se a ver e logo desaparece. Reaparece, dissimula e logo aparece removido. A memória de um post confunde-se sobretudo com a simbólica de um metabolismo inacabado."
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"A sugestão e a ilusão do inacabado prendem-se também com o tempo. Mesmo as mais clássicas das obras inacabadas (seja o – tríptico cinematográfico – ‘Napoléon’ de Gance, seja a ‘Sagrada Família’ de Gaudi) não dispõem de um tempo que seja efectivamente o ‘seu tempo’. Nos posts, esta suspensão adquire recortes muito mais voláteis, na medida em que o ‘tempo real’ nunca chega a ser o tempo da edição: já passou, já refluiu – sempre – na direcção da reciclagem do olhar. É por isso que a leitura de um blogue se assume de forma oblíqua, descendente e anagramática: o olhar salta, ilude-se e sobretudo fantasia. O olhar desbrava hiatos de escrita e hiatos de não-escrita. Quando o utilizador clica e se retira, fica apenas um ritmo, um cromatismo, um ambiente, uma batida, um DJ em frenética actividade num espaço não sonoro. O tempo de um blogue não é nunca – radicalmente – o ‘seu tempo’."
e
"A obsessão (a compulsão) que liga o blogger ao blogue nada tem a ver com a pulsão que religava o escritor tradicional ao seu almejado e perseguido objecto: o livro. Este último apareceu sempre como a meta de um processo mais ou menos estável que se ia testemunhando, passo a passo, rescrita a rescrita, de acordo com as metáfora da incubação e da gestação. Curiosamente, alguma tradição literária (e não só, veja-se o caso de Artaud) sempre adorou associar este processo “criativo” a uma “dor” e a um “sofrimento” terrível, em analogia com ideia de parto (o livro era, nesta simbólica, o verdadeiro “filho” do escritor)."
e
"Enquanto Sebald reivindicava a restituição da narrativa para enquadrar a vida num conjunto de sentidos, a rede e a casa blogosférica preferem cumprir a ininterrupta enunciação de narrativas e transformam esse acto num conjunto de sentidos que simula todo o tipo de enquadramentos e de reivindicações."
e
"A blogosfera situa-se na rede virtual e processa-se a todo o momento num espaço que pode ser observado no mapa que Bill Cheswick e Hal Burch têm estado a implementar desde o ano 2000 (este interessantíssimo projecto – “The Internet Mapping Project” –, sediado desde o ano 2000 na “Lumeta Corporation”, pode ser visitado em “http://research.lumeta.com/ches/map/”). O mapa tem o fascínio da cartografia de um oceano de galáxias: há nele um encanto estético neural e ao mesmo tempo espacial e mitológico."
e
"Como notou recentemente António Machuco Rosa, o protocolo TCP/IP permite ainda que a Internet seja um meio essencialmente auto-organizado e vocacionado para o crescimento espontâneo, “imprevisível e não-regulado”.
e
"Os efeitos do fenómeno incessante de actualização vs. desactualização na adaptação da linguagem ao novíssimo meio blogosférico são abundantes e óbvios. Citaria os seguintes:
a) Os
posts tendem a condensar informação e a concretizar-se através de um tipo expressivo muitas vezes elíptico.
b) Os
posts descomprometem-se face a um texto genericamente orgânico e enunciam-se de modo solto e desagregado.
c) Os
posts compensam a sua brevidade através de remissões e ligações que se projectam (por precedência ou irradiação) noutros lugares da rede.
d) Os posts podem
suceder-se ininterruptamente numa espécie de (nada pejorativa) fuga para a frente contra a emergência sempre actual da desactualização (às vezes em regime irónico de estimulante count down).
e) Os posts tendem a visar, ao mesmo tempo, targets
muito variados, rentabilizando assim a compactação de dados que vão actualizando (e fazem-no, às vezes, com humor e sem quaisquer links).
f) Os posts obedecem amiúde a
rubricas e séries predefinidas, de acordo com uma sintaxe de conteúdos que é prévia à própria transitoriedade do meio.
g) Os posts adoptam metalinguagens –
textos acerca (da inscrição) de textos no programa Blogger, ou noutros programas congéneres – tentando relativar a angústia face à derrogação permanente pressuposta pela actualização vs. desactualização.
h) Os posts alimentam-se de um
contraditório elementar, mais reactivo e esquemático do que sustentado e argumentativo (mesmo no caso das chamadas “micro-causas” – sobre o tema, ver micro-ensaio “H” da secção seguinte, “A casa dos blogues”).
i) Os posts agenciam a
agenda pública, seleccionando, filtrando e interpretando alguns dos seus dados.
j) Os posts recorrem a realidades icónicas, googlando
imagens ou, mais raramente, criando condensações de natureza poética.
k) Os posts recorrem a
realidades indexicais, dirigindo sucinta e regularmente a atenção para outros posts de outros blogues, ou a textos da chamada atmosfera.
l) Os posts ancoram muitas vezes os topics (aquilo de que se fala) a simples marcas adverbiais ou de remissão directa (exemplo: “
ver aqui” ou “ver mais”).
m) Os posts subsumem-se amiúde à prática mais coloquial do correio: o
convite.
n) Os posts
alegorizam a vida de outros blogues.
o) Os posts, por vezes,
convidam tão-só a clicar.
p) Os posts tendem a contrastar a síntese produtiva com uma abundante
notação de fontes."
e
"A expressão não é, pois, apenas o acomodar da linguagem no novo meio; é também o modo como ela se transforma à medida que o meio se torna cada vez mais povoado e gregário. Daí que o modo como o autor (ao mesmo tempo editor) encara o seu blogue dependa muito mais da zona de impacto das interacções do que de meia dúzia de certezas provisórias (isto é: a provisoriedade no metabloguismo de rede é inversamente proporcional ao excurso da teologia)."
e
"O que torna os blogues num painel de análise fascinante e complexo é o facto de, neste novíssimo dispositivo, os pontos de vista se deslocarem de maneira incessante, independentemente das nossas escolhas (como se as bocas de cena de muitos teatros se sobrepusessem e nós fôssemos, ao mesmo tempo, actores, encenadores, pontos, cenógrafos e espectadores). Esta mobilidade é verificável em qualquer blogue, devido sobretudo à infindável circulação de dados, mas também à recontextualização ininterrupta que é própria do meio."
w
"Na rede nada culmina e tudo se processa, já que nela não existem pontos nevrálgicos ou zonas de clímax. O que surge, logo se remove e reconverte. A narrativa criada pelos blogues – e por outros processos de micro-narrativa em rede – é um tipo de narrativa que, talvez pela primeira vez, não necessita de uma retórica baseada em analepses e prolepses (flash-backs e antecipações): o que conta é o registo que acompanha a mais pura imobilização do instante. O que cativa é a duração, a iminência imediata, o 'estar lá'."
e
"As micro-causas integram-se, hoje em dia, num âmbito de causas mais vastas e fragmentárias que está percorrer a abertura dos novos ciberterritórios e das novas cidadanias emergentes no globário."
e
"Verifica-se na rede um inevitável descolar das marcas enunciação de carácter pessoal ou subjectiva. De certo modo, está-se a assistir, hoje em dia, a um regresso ao palimpsesto de várias entradas e de várias autorias. Esta sobreposição de quase anonimatos tem mais tendência a ser activamente sincrónica – várias autores ao mesmo tempo, ou em tempos diferentes de um mesmo registo que se enuncia – do que diacrónica, no sentido em que um texto profético medieval era rescrito secularmente (e se ia adaptando às mais variadas circunstâncias históricas). Na actualidade, o evento é sempre o evento actual e, nessa medida, ele mesmo se encarrega de virtualizar as instâncias autoriais e as suas próprias circunstâncias de existência referencial, retórica ou estética. Contudo, a blogosfera acedeu, desde o primeiro momento, ao interessante paradoxo da individualização. Este paradoxo é um dos atributos mais singulares da procura expressiva que caracteriza o “globário” dos blogues, na medida em que todos os blogues se movem numa primeira pessoa, embora percorrendo sempre a mesma água, o mesmo tipo de leitura, a mesma instantaneidade de sentido, a mesma remoção da memória e a mesma inscrição de tipo síncrono (a remissão como respiração e a des-subjectivação como prática comunitária)."
e
"O tom dos blogues não é apenas uma procura na amálgama incerta onde antes havia géneros, compartimentos e identidades algo forçadas. Talvez tenha sido por isso que Pedro Mexia escreveu: “Há blogues de que gosto especialmente porque não podiam ser artigos de jornal nem ensaios nem outra coisa que não um blogue”. Existe neste tipo de reconhecimento quase poético aquilo que, entre o mais emblemático Steiner e a omnipresença de Heidegger, terá levado Jorge Gonçalves a caracterizar o “tom” dos blogues: "Penso que aqui, como em grandes momentos das nossas vidas, não fazemos outra coisa senão lidar com "indefinições" e com o "não dito". Heidegger chamava a este pathos "a clara noite do nada". We have no more beginnings”.
e
"Nos blogues, para além de uma auto-regulação ainda à procura de forma, o uso da linguagem não se submete a qualquer escrutínio tangível (o que não acontece na literatura, nos meios jurídicos, comerciais, económicos, etc.). Quer isto dizer que a blogosfera tipifica como nenhuma outra expressão a ideia de que é no contexto do uso – e apenas no uso, no efémero, no ‘cria e esquece’ – da linguagem que se cria o sentido. A escrita dos blogues brota do fragmento e da desintegração do corpo clássico e enuncia-se para além dos géneros, esboçando, nessa aventura diária, os seus escorços de tom."
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"No início dos anos oitenta, Richard Rorty afirmou: “há pessoas que escrevem como se só existissem textos”. Na blogosfera, fora talvez das vagas mais especializadas, esta tendência virtualizante apenas se acentuou. O mundo das escritas que se desdobram em escritas e das imagens que se desdobram em imagens tornou-se cada vez mais numa espécie de barómetro expressivo."
e
"O que faz de um blogue um corpo vivo é menos este jogo de sucessão e hierarquização e mais o tipo de preenchimento que não tem uma finalidade clara (como acontece nos media clássicos). Aqui o que perdura acontece: as vozes que respiram na blogosfera, ao contrário das que convivem na redacção de um jornal, são dispositivos de enunciação que se vão enquadrando através de fragmentos de texto, independentemente da sua natureza ou categoria. A miscelânea que assim se actualiza vive aparentemente sem clímax nem desfecho, como se a intermitência realizada aliasse – embora de forma mais discreta – o já referido efeito de tranquilizante ao inevitável ímpeto e acção que pressupõem o fervor e o próprio de fluxo em estado de exaltação: continuar sempre a escrever, a postar, a permanecer. Continuar a viajar, a visitar, a revisitar e a permanecer constantemente ligado (à rede)."
e
"Hoje em dia, a literatura já não corresponde à ideia que dela foi sendo formada desde há pouco mais de dois séculos no Ocidente (de Schlegel a Garrett, a Holderlin, a Musset, a James, a Proust, etc.): a arquitectura digital, o circo mundializado de imagens, a hipertecnologia e a redução – sobretudo – das Escrituras a simples escritas alteraram radicalmente as coisas. O escritor é hoje alguém que agencia ficcionalidades e não mais o fruto de uma iluminação subliminar. A sacralização dos alfabetos e dos seus brilhos, herdada desde aqueles tempos originais que Vico soube tão bem inspirar e expirar, transformou-se, hoje em dia – em primeiro lugar na rede –, num puro processamento discreto de dados, grafos e gestos.
A expressão dos blogues corresponde na contemporaneidade a uma metamorfose curiosíssima, porque está a reflectir, de modo dir-se-ia cristalino, esta transição abrupta entre um legado marcado pela sacralização da escrita e a sua mais alucinante e total dessacralização. Há três aspectos particulares que dão a esta mudança uma acuidade quase única:
1 - Os blogues constituem uma categoria expressiva muitíssimo maleável que introduziu na rede, um pouco contra natura, um quadro de clara individuação. Esta singularidade veio permitir o imediatismo da edição sem o peso das tradicionais mediações (de início, entre Deus e o profeta havia uma voz, depois um anjo, depois ainda uma exegese; na literatura, de início, houve os scriptoria, depois os editores e depois ainda a crítica). Esta remoção da mediação, apesar da necessária lógica dos hosts, dessacraliza completamente a ideia de uma forma – ou de uma escrita – que remete sempre para outrem. Trata-se de uma autonomia subitamente descoberta e ainda, por isso mesmo, sem um rosto estável.
2 - Os blogues põem decididamente em causa o espírito do ‘Livro’ como desígnio salvífico do escritor oitocentista e novecentista. Durante o fulgor moderno, a actividade do escritor era socialmente dominada por um carácter deífico. A questão atravessava regimes e modos de codificar o futuro: Hemingway, Camus, Céline ou os anónimos escritores que escreviam no “Palácio da Cultura” de Varsóvia eram, sempre, independentemente das tergiversações, “escritores”. E essa era uma marca indelével: a “declaração do escritor Y”, a “censura ao escritor Y” e o “congresso de escritores com a presença de Y” eram frases que pertenciam inevitavelmente à galeria hierarquizada do espaço público de então. O pasmo e a realização máxima dos escritores coincidiam com o surgimento do "Livro". Era o tudo ou nada de um processo que, depois, a jusante, tinha – e ainda vai tendo, embora já com alterações de significado – os seus Passos Perdidos e a sua élégance royale (prémios, recepções, inspirações políticas e outros pendores de considerada e pública moralidade).
3 - Os blogues põem em marcha uma (paradoxal) instrumentalidade poética: a linguagem visa a linguagem. Isto quer dizer que a linguagem se enraíza e se virtualiza ao mesmo tempo no quotidiano. Ou, por outras palavras, que os factos e a linguagem escorrem mimeticamente através da voragem do efémero que enuncia uns e outros (trata-se de um novo mapeamento da experiência). Nesta linha de ideias, a linguagem dos blogues e a realidade que nela se virtualiza estabelecem, instante a instante, uma permanente e mútua relação metonímica que pressupõe a ilusão de uma verdadeira imersão no quotidiano. Esta quase ‘Life live’ procede (da atitude) da crónica do dia a dia mais próximo, mas distancia-se da modalidade do diário literário, do mundanismo genérico da crónica e do “microrealismo” (J. G. Merquior) das novas poéticas pela sua radical dessacralização, já que nela não há, com efeito, um ‘exterior’ (na esfera literária, havia sempre a imanência do “seu mundo”). Na blogosfera, o ‘de dentro’ e o ‘de fora’ – que sempre pressupuseram a transcendência – comprimem-se e estendem-se hoje no caudal da procura expressiva e da linguagem (que a si própria se visa)."

terça-feira, 4 de março de 2008

Convite

e
Na próxima quinta-feira, dia 6 de Março, pelas 18h30, na Casa Fernando Pessoa, terá lugar a apresentação, a cargo de Eduardo Pitta, do meu livro Expressão na Rede - O Caso dos Blogues (Magna Editora). Depois da apresentação, debater-se-á "o modo como as linguagens seculares (que aprendemos sem ter em conta a rede) se moldam, hoje em dia, à rede e mais concretamente aos blogues." A moderação do debate estará a cargo de Paulo Gorjão e os bloggers presentes serão: Carla Hilário Quevedo, Isabela, Pedro Rolo Duarte e Vasco M. Barreto. Apareça!

segunda-feira, 3 de março de 2008

Episódios e Meteoros - 73

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No passado Verão, vinha amenamente a guiar entre Bilbao e Santander, quando avistei uma aprazível e imensa baía. Desci, procurei hotel e por aí fiquei. Há repentes assim. A praia tinha o paroquial nome de Laredo e, apesar da latitude, proporcionou-me um inesquecível mergulho. Depois das tapas – essas efusões breves, sedutoras à primeira vista, mas depois nauseantes –, sofri um ataque de nostalgia. Uma nostalgia sem objecto, visceral. Imprópria para quem não é António Nobre, ou para quem atravessa uma crise de vocação à moda de Carla Bruni.
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Decidi então ir passear na marginal e acabei por ter uma das mais brilhantes ideias dos últimos anos: se tinha deixado de fumar a 7 de Março de 1997 – ainda sei de cor o dia! –, por que não poderia agora voltar a fumar, tentando, de uma vez por todas, separar o mais puro prazer… do hábito? Fui a uma loja de tabaco e comprei uma caixa de cigarrilhas. Das melhores. A voz gutural do lojista cantábrico doutrinou a minha ávida sede de pecado. E fê-lo com determinação à Rick Blaine.
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A verdade, confesso, é que tentei aspirar o fumo até ao fundo da alma, como se dele irradiasse o aroma ideal de todo o universo. Uma espécie de mel bíblico embebido na suavidade dos poros de Shakira. Mas não. Por mais que tentasse, a impressão era sempre a mesma: uma secura extrema, petrificada, como se fosse carvão vegetal ou um simples naco de pele mumificada de Nefertiti. Fiquei desalentado. Senti-me como quem perde a última esperança de falar a sós com a Oprah, ou até mesmo com o Papa. Fiquei entregue a uma rara atrapalhação, sem sentido. E foi aí que me lembrei do conto de Calvino.
e
Rezava assim: “Quando tomava banho numa praia ocorreu à Srª. Isotta Barbarino um desagradável contratempo. Nadava ela ao largo, quando, parecendo-lhe altura de regressar, e já se dirigia para a margem, se apercebeu de que um facto irremediável acontecera. Perdera o fato de banho”*. Assim me senti eu, também: transtornado pela perdição. Bem tentei voltar a fumar, o que só me ficava bem no meio do actual panorama unanimista e correcto. Mas falhei. Nunca mais voltaria a sentir o inacessível prazer do tabaco. Tal como a Srª. Isotta Barbarino nunca mais voltaria a encontrar o seu bikini preferido. Melhor para ela, mas sinceramente: muito, muito pior para mim.
e
*Italo Calvino, Os Amores difíceis, Arcádia, Lisboa, 1968, p. 27.
e
(crónica publicada, desde quinta-feira, no Expresso Online)
(ver também no meu
blogue de crónicas)

domingo, 2 de março de 2008

Convite

e
Na próxima quinta-feira, dia 6 de Março, pelas 18h30, na Casa Fernando Pessoa, terá lugar a apresentação, a cargo de Eduardo Pitta, do meu livro Expressão na Rede - O Caso dos Blogues (Magna Editora). Depois da apresentação, debater-se-á "o modo como as linguagens seculares (que aprendemos sem ter em conta a rede) se moldam, hoje em dia, à rede e mais concretamente aos blogues." A moderação do debate estará a cargo de Paulo Gorjão e os bloggers presentes serão: Carla Hilário Quevedo, Isabela, Pedro Rolo Duarte e Vasco M. Barreto. Apareça!