segunda-feira, 10 de março de 2008

Volta ao Mundo - 16

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Para os mais distraídos, devo repetir que partiram há já sete meses e que ainda não terão chegado a meio da volta ao mundo. Estando na China de momento, a Clara e o Miguel deixaram para trás muitas outras terras e crónicas: Madrid, Havana, Galapagos, Quito, Buenos Aires, Ushuaia, Polinésia, Ilha da Páscoa e Nova Zelândia; com passagens por Tahiti, Moorea, Huaihine e Raiatea. Publico hoje a 17ª epístola aos lusitanos, no que constitui um singular exclusivo para o Miniscente:
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"China"
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"Canto. Som. Vermelho.
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Os dias que vivemos na China ultrapassam o tamanho das palavras. Não há recantos descobertos dentro do meu ser que abranjam o tamanho de uma descrição. Devolvo-me às palavras soltas, ao abrir e fechar de olhos. Como um filme de imagens recortadas ao acaso, sem ordem, sem preparação. Cru. Só com a força dos pedaços soltos que acontecem.
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Dragão. Fogo. Luz.
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No meio de uma multidão que não nos esmagava. A viver a experiencia do lado contrário. Milhares de máquinas fotográficas paradas no espanto. Porque éramos nós a diferença. Queriam guardar-nos num retrato. O Dragão dançava o conhecido, a música e a festa cantavam felicidades repetidas. Nós. Nós tínhamos pêlos e olhos redondos, éramos altos como saídos de um filme. Abraços e sorrisos envolviam-nos com cuidado para não nos transformarmos num nada. Uma espiral de emoções apagava a necessidade de falarmos a mesma lingua. Éramos apenas aquele momento diluído de surpresa.

Toque. Cheiro. Passagem.
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Pelo meio de ruas cobertas de pessoas, passos e fumo. A noção da individualidade perde-se no íntimo de cada um. Não há espaço livre, não há um cheiro conhecido, não há um sinal que os nossos olhos reconheçam. Deixamo-nos seguir pelo meio. Uma discussão sobe o tom de um canto, imaginamos facas e sangue, choros e corpos deitados ao chão. Esperamos o pior… Despedem-se com gargalhadas curvas e barrigas cheias de riso. Não temos tempo para nos sentir perdidos. No instante em que julgávamos a nossa interpretação alguém nos dava algo para a mão. Comida ou objecto? Experimentamos ou guardamos no bolso? À nossa frente um homem mínimo esperava a acção. Comemos. O sabor doce do desconhecido junta-se ao sorriso do vendedor. O que seria?
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Medo. Curiosidade. Voz.
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Numa estação de comboios onde as pessoas esperam por um dia que não sabem se será o seguinte. Juntas, apagadas pelo frio e por uma solidão profunda que se prolonga até aos nossos olhos sem uma palavra. Transformam as nossas cores num cinzento-escuro que nos atravessa o corpo e nos corta pedaços. À medida que passamos ficam espalhados pelo chão. O mesmo onde se sentam e dormem e esperam. Entrámos no comboio vazios de nós.
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- O que é isso? – um estudante do quarto ano da Universidade, companheiro da longa viagem.
- Um saco-cama.
- Estou confuso… para que serve?
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Como se explica o conforto, a suavidade?
Caos. E novidade sem fim.
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Atravessar uma estrada, entrar num autocarro, perguntar onde estamos, saber o que comemos. Gestos simples são elevados à incompreensão. E nós, caídos num mundo novo e sem preparação, descobrimos vozes que estão para além da palavra. Aprendemos uma nova linguagem. A da existência."