domingo, 30 de março de 2008

Episódios e Meteoros - 77

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O testemunho único de dois portugueses no Tibete
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(crónica publicada, desde quinta-feira passada, no Expresso Online)
(ver também no meu blogue de crónicas)
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Desde Setembro passado que o meu blogue publica as crónicas da volta ao mundo de dois amigos aventurosos: a Clara Piçarra, tecedeira de escritas e neta do saudoso Luís Piçarra, e Miguel Sacramento, fotógrafo. Os quase vinte testemunhos editados, nos últimos sete meses, abrangem latitudes muito variadas: Havana, Galápagos, Quito, Buenos Aires, Ushuaia, Polinésia, Ilha da Páscoa, Nova Zelândia, Austrália, sem esquecer Tahiti, Moorea, Huaihine ou Raiatea. A penúltima crónica que recebi veio da China e ligava, com sabedoria, a intimidade do fascínio com a visão abismada daquilo que, à partida, se revela como estranho:
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“Atravessar uma estrada, entrar num autocarro, perguntar onde estamos, saber o que comemos. Gestos simples são elevados à incompreensão. E nós, caídos num mundo novo e sem preparação, descobrimos vozes que estão para além da palavra. Aprendemos uma nova linguagem. A da existência”. Esta crónica – que pode ser lida na íntegra
aqui – foi publicada no dia 10 de Março, mas tinha sido recebida seis dias antes. Na carta que a acompanhava, a Clara escrevia: “Chegámos ontem ao Tibete, após uma viagem de 48h de comboio. Como tenho que reaprender a respirar neste ‘Topo do Mundo’, aproveito para enviar o texto da China. Para mim, a China ficou do outro lado dos Himalaias”.
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Devo dizer que o tom algo insondável que percorria a crónica me fez desejar a sua rápida continuação, porventura a partir da Índia. Mas não. Dez dias depois, precisamente a 20 de Março, soou o alarme. Num
brevíssimo mail, já no Nepal, a Clara e o Miguel revelavam ter presenciado o início da barbárie: “Fomos os dois (eu e o Miguel) as únicas testemunhas do princípio de tudo (no mosteiro de Drepung, onde estávamos no dia 10 de Março, por acaso)”. Na crónica enviada no dia seguinte, tudo se deslindava: “Ninguém olhava para trás. O medo envolvia os corpos. O que se passa? Responderam-nos: um fogo; exercícios… duas vozes fardadas. Queríamos voltar para trás. Já não conseguíamos ver as caras, apenas roupas vermelhas abafadas por uma força violenta. Armada. Foi o início. Sabemos que muitos desses monges morreram no final desse dia.”
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A publicação no Miniscente das variadas missivas, mensagens e crónicas, quase em tempo real, desencadeou um interessante diálogo com jornalistas, mas também o registo abjecto de comentários nos vários posts. Nestas alturas, quando a liberdade se impõe como tema primeiro, há sempre quem prefira instrumentalizar. E, neste caso, a abjecção chegou mesmo a legitimar a violência chinesa em nome – imagine-se – de interesses ditos nebulosos.
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As últimas palavras que recebi da Clara Piçarra – no momento em que escrevo esta crónica – tornaram-se, de qualquer modo, reveladoras: “As imagens violentíssimas e não oficiais (vídeos e fotografias) que vimos já em Kathmandu presumo que nunca irão ser passadas para os olhos do mundo... Fica apenas o nosso depoimento. Tenho uma pena desmedida do povo tibetano e chinês, mas fico feliz que em Portugal, pelo menos, se possa expressar a opinião. Quer sejam as do Luís que comenta no Miniscente ou totalmente contrárias. Acho que só isso mostra tudo”.
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A esta elementar e fundada resposta à abjecção, apenas acrescentaria uma derradeira nota: A liberdade é um bem tão precioso quanto, por vezes, demasiado invisível para quem nela respira e habita. Como se fosse um dado adquirido. É esse o problema de quem persiste em não querer ver a realidade em nome de receituários e dogmas, cujo simplismo tem, no mínimo, a marca do ignóbil.