sábado, 30 de junho de 2007

Touradas e copinhos de leite - 2 (act.)

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Amigo Bruno: não é com o sofrimento do touro que os movimentos anti-touradas se preocupam. Se fosse, fariam manifestações à porta dos matadouros e não comeriam carne. A própria ostensão do sofrimento e da violência nas arenas está longe de ser um argumento convincente, na medida em que constitui uma gotícula de orvalho no meio do fluxo mundializado de imagens (que nos entra diariamente pelo olhos e pelo corpo com desmedido apetite sanguinolento). O que mobiliza esses movimentos é o preenchimento de vazios que têm a sua origem na diluição de um 'mundo de causas', tal como o entendemos ao longo dos dois últimos séculos e meio. Nem é, pois, o apelo a uma utopia meramente defensiva (caso do ambiente, por exemplo) que estará aqui em questão. O que mobiliza a maior parte dos jovens genuínos anti-touradas é sobretudo uma reavaliação da ideia de barbárie que exclui do novo perímetro "civilizado" tudo o que não for minimamente sintético, ou da ordem do fetiche cénico e simulado (que é o que os alimenta, reveste, imagina, respira, pensa e habita). Para estes movimentos, a realidade pode ser bárbara - sem quaisquer limites - desde que o sangue aconteça do outro lado do ecrã. Para estes movimentos, os ritos deixaram de actualizar os mitos; em vez daqueles preferem a repetição pela repetição que apenas acaba por actualizar a própria actualidade mais imediata, embora sempre protegida pelas suas mediações plásticas (muito correctas). A safe and untastly world. É ou não é?

Escavações Contemporâneas - 35


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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: António Quadros - António M. Ferro, Org.)
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O futuro da cidade*
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"(…) o retrato psicológico e psicográfico de Lisboa não ficaria completo sem um aprofundamento da arquitectura que, em Lisboa, mais perfeitamente assume a verdade portuguesa, a dimensão da natureza. Ela é como que o coroamento ou a culminância de uma vivência que, quanto a mim, está espelhada e espalhada em toda a cidade. Depois da arte do barroco atlântico, os lisboetas foram fiéis e infiéis a esse seu sentido primordial da história e da arte. Fiéis nos jardins, nos miradouros, nos azulejos, nos arabescos, nos mosaicos, na policromia das casas, em muitas das manifestações barrocas dos séculos XVII e XVIII, igrejas, palácios, conjuntos urbanísticos. Infiéis quando abdicam da sua especifica via de ligação à verdade, quando copiam, imitam, decalcam os modelos estrangeiros. No momento actual, a situação está mais próxima da infidelidade. O urbanismo e arquitectura de hoje em Portugal não souberam conciliar a modernidade com a tradição e aproveitam a conciliação alheia. Toda a arte é sempre um compromisso entre o que é próprio do espaço e o que é próprio do tempo. Ora o tempo não é homogéneo porque é interpretado pelo espaço. (…) Ao copiarem os modelos estrangeiros os nossos urbanistas e arquitectos não estão a ser verdadeiramente modernos e ecuménicos, estão apenas a proceder a uma transplantação artificial, que não deixará de estiolar. Nessas ruas, nessas casas, nessas repartições públicas, nessas igrejas em que a concepção não parte da verdade íntima da Pátria, como autêntico acto de criação, como gestação e nascimento do filho, o espírito dos homens estiola e, se não morre, imobiliza-se como uma figura glacial e inerte."
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*“O Enigma de Lisboa”
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)

Há cursos e cursos!

Foto MJ
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Fica aqui o registo como prometido. Obrigado a todos!

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Fantasmas do passado

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Bem sei que o passado nem sempre se resolve de modo ideal. Já tive bons amigos polacos e nem sempre a queixa, a vitimização e a expiação lhes regiam o vocabulário ou a candura dos gestos. A revista WProst, no entanto, alegorizou este debate íntimo com fantasmas e fantasias de uma maneira danielítica. Falta agora Sócrates encontrar forma de saciar tanta avidez ou carência de alimento. Ao contrário do que disse José Pacheco Pereira, na última Quadratura do Círculo, não penso que seja assim tão fácil. Veremos.
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P.S. - E há uma parte abundante do assunto que nunca se diz, embora atravesse um imenso caudal de crónicas, artigos, posts e editoriais: é que o Ocidente está a delirar (quase ao nível do entretenimento) com o facto de existirem dois gémeos que governam um país como a Polónia. Ora digam lá que não.

Escavações Contemporâneas - 34


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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Paulo Tunhas)
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Le Pen por cá*
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A recente visita de Le Pen e de mais quinze deputados de extrema-direita a Portugal provocou a reacção que era de supor. Organizaram-se as coisas de modo a que toda a gente ficasse ciente que nós, portugueses, puros e democratas até pelo menos à décima quinta geração, não consentimos que o nosso território e a alma da nação sofram a mácula de tão abjecta presença. Ou melhor, consentimos desta vez por uma inexplicável falha da nossa excepcional legislação; mas de futuro, supõe-se, seremos mais avisados. Desde Francisco Louçã ao Presidente da República (num incomum momento de infelicidade), quase toda a gente, de consequência ou sem ela, aproveitou para demonstrar a beleza e a brancura da sua alma. Tirando a excepção habitual de Paulo Portas, no Independente, e o que escreveu José António Saraiva no Expresso, as manifestações de bom senso foram menos que poucas.

Não há nisto motivo particular para surpresa. Que o folclore por cá é assim, é um facto irrecusável, como é irrecusável que a gente que foi com Le Pen a Sesimbra, democraticamente eleita e tudo, não oferece os mais belos exemplos de elevação moral e de humanismo profundo. Nem nós nem eles nos distinguimos particularmente pela tolerância. Mas há pelo menos três perguntas que se podem fazer no seguimento do episódio. A primeira é: porque é que a esquerda adora a exibição da indignação e não se esquece nunca de lançar a mão ao que quer que seja, se se trata de fazer crer o advento do Mal iminente? Depois: porque é que a esquerda reduz tudo o que é fenómeno social a informação política? Por fim, porque é que — e é um dos maiores paradoxos do nosso tempo— o comunismo (enquanto doutrina sobre a justiça, a felicidade, o bem e a história) aparece, apesar de tudo o que se sabe, moralmente mais aceitável que os arremedos ideológicos de gente como Le Pen? Convém notar que «a esquerda», nestas perguntas, é quase tudo cá, porque a direita que há, por falta de princípios próprios, em matéria destas declarações segue-a em tom menor.

A esquerda tem a paixão da indignação, ou pelo menos finge que a tem. Era uma coisa da juventude; agora arrisca-se a ser uma coisa da senilidade. Era da juventude quando a esquerda herdava, com uma legitimidade sempre conflituosa mas efectiva a vocação da liberdade e a possível reflexão sobre esta. Tomou-se da senilidade depois de a esquerda encobrir, consciente ou inconscientemente, durante décadas, os maiores crimes em seu nome perpetrados, crimes mais extensos, para falar simplesmente, do que aqueles praticados pelas ditaduras «de direita». Simbólico disto — na sua insignificância mesma - é um artigo publicado há uns tempos no Público, secção local de Lisboa. O autor, Carlos Pinhão, tendo tomado um táxi, pedira ao motorista, um homem de menos de trinta anos, para o levar à rua Dias Coelho, parece que na Mouraria. Por qualquer razão, no meio de uma conversa que demonstrava, no máximo, o pouco interesse do homem por matérias políticas, Carlos Pinhão perguntou-lhe se sabia quem tinha sido Dias Coelho. Depois de saber que o outro não fazia ideia, a sua ira, pelo menos a confiar na crónica que escreveu, foi imensa: exigiu ao motorista que parasse ali mesmo, no lugar da infeliz confissão, e saiu do táxi. «Então o senhor não conhece o nome dos mártires da Pide? — O país está à beira do fascismo», era a inconsciente e económica moral da indignada história. O ser patética não lhe retira o carácter exemplar. É mesmo exemplar até mais não.

Mesmo quando tem razão, a esquerda acaba por não ter. E isto porque a sua dedicação à cegueira é prodigiosa. A redução de tudo o que é social ao político — reveladora de incompreensão tanto do que é social como do que é político — é a consequência imediata. Os fenómenos do «hooliganismo» ou dos skinheads são, para a esquerda, imediatamente políticos: exactamente como os cabelos compridos no tempo de Marcelo Caetano. Ao querer puxar toda a brasa à sua sardinha, desrespeitando a verdade e a verosimilhança, a esquerda vai acabar por se queimar. Tudo o que pode é arranjar uns mártires auto-fabricados. Dir-se-á que um militante do PSR foi assassinado por um bando de skinheads. Eis alguma coisa que, independentemente do horror e da tragédia que não se pode desrespeitar, precisa de ser relativizado. Ao reduzir tudo ao político, a esquerda cria paixões políticas violentas. Nomeadamente no caso do PSR, a extraordinária e despropositada projecção de que usufrui nos meios de comunicação social é particularmente proporcionadora disso. E quem semeia ventos colhe tempestades.

Apesar de tudo — e tudo é a imensidão descomunal que se podia saber desde, pelo menos, os anos 30, e que se não pode deixar de saber hoje —, a ideologia comunista permanece moralmente mais aceitável do que a de direita estilo Le Pen, para não falar da outra mais extrema. Isto revela uma extraordinária capacidade de distinguir a teoria da prática num caso e de a confundir no outro. O facto de o comunismo ter provocado muitos mais mortos do que o nazismo, fascismo e herdeiros juntos, não anula automaticamente o reconhecimento de alguma elevação nessa doutrina; e certamente que o mesmo se não dirá relativamente ao fascismo, ou melhor: não o dirá ninguém com quem se possa falar. Mesmo quem, por razões filosóficas e políticas, julgue o marxismo a expressão de um erro profundo e o condene como tal, não sai provavelmente deste paradoxo. Porque se trata efectivamente de um paradoxo: contendo já o marxismo o germe do mais terrível totalitarismo de sempre (ou antes, para ser mais correcto e justo: contendo a ideia de comunismo «científico» já esse germe), a «bondade» da doutrina é ainda aceitável, mesmo que descrita como «ilusão» ou erro. O mais certo é tal dever-se à paixão intelectual pela beleza e racionalidade das teorias, paixão que evidentemente não encontra objecto em ideologias estilo Le Pen. Mas a descomunal desproporção entre o deve e o haver em ambos os casos não deixa que tal explicação possa ser satisfatória. Porque não é, mesmo que seja verdadeira.
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*O Primeiro de Janeiro, 15 de Julho de 1990
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)

quinta-feira, 28 de junho de 2007

Pré-publicações - 40

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Helena Carvalho Buesco e Paula Mourão (Org.), Cesário Verde - Visões de Artista, Campo das Letras, Porto, 2007 (Julho)
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Pré-publicação:
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I Parte
As metamorfoses do sentimento
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por Helder Macedo*
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"Que se saiba, Cesário Verde escreveu quarenta e um poemas, incluindo um de que se conhece o título – “Subindo” – e que nunca foi encontrado. Mas a colectânea póstuma que Silva Pinto publicou em 1887 como O Livro de Cesário Verde só inclui vinte e dois poemas (por vezes com títulos e alguns versos diferentes dos que constavam em versões avulsas anteriormente publicadas). Foram portanto excluídos dezanove poemas. Ou vinte, se contarmos como um poema separado nove quadras suprimidas da versão original de “Cantos da tristeza” na versão publicada por Silva Pinto com o título de “Setentrional”1 . Os poemas excluídos da colectânea de Silva Pinto quase dariam para um “Livro de Cesário Verde” alternativo, pelo menos em termos de quantidade. No entanto, com excepção do poema “Esplêndida”, por causa do escândalo que provocou quando publicado em 1874, a crítica não tem dado suficiente atenção a esses poemas, relegando-os para uma categoria tematicamente indefinida de juvenília. São de facto juvenília, mas não menos do que alguns na colectânea que também foram escritos em 1873 e 1874, quando o poeta tinha dezoito ou dezanove anos. E outro poema excluído, “Desastre”, publicado em Outubro de 1875, é posterior a meia dúzia dos que foram incluídos por Silva Pinto."
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1 - Edições utilizadas: 1952. O Livro de Cesário Verde. Edição de Silva Pinto, organizada por Cabral do Nascimento. Lisboa: Editorial Minerva; 1970. Obra completa de Cesário Verde. 2.ª ed. Edição de Joel Serrão. Lisboa: Portugália; 1988. Obra Completa de Cesário Verde. Edição de Joel Serrão. Lisboa: Livros Horizonte.
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* Universidade de Londres – King’s College.
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Touradas e copinhos de leite - 1

Picasso (PTA)
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Como já não há polémicas há muito tempo no Miniscente, apetece-me perguntar ao Bruno: também alinhas nesse movimento anti-touradas? (ou tudo não passou de um toque irónico nessa res chamada "Casa do Pessoal da RTP")? O que me intriga é, não a transmissão de uma boa tourada, mas sim a transmissão da tourada sindical. Por outras palavras: o serviço público programa para quem lá trabalha ou para os vários públicos que existem no país?
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Não tenho interesses na tauromaquia, não sou dono de ganadarias, nem sou um aficionado tradicional. Nem vi, até hoje, mais do que duas ou três touradas ao vivo. Mas cresci com touros, forcados e cavalos à minha volta. Lorca esteve lá. Em adolescente não gostava nada do milieu. Mas há coisas que persistem, para além do gosto: a intemporalidade, a estética, o rasgo e o fundo da voz ancestral, para além dos rituais de sobrevivência (eu ainda me lembro de "malteses").
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A paz como produto sintético ou como simulacro socialmente correcto é um copinho de leite feito de pixels. É como a salvação ao contrário (um está tudo bem sem crença nem inclinações nobres). É como a cor do sangue convertida em travesti em estado de choque. Pouco mais do que isso. Os meninos pim-pam-puns encontraram aí - nas touradas - um vazio para preencher e para dizer 'Eu Sou'.
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Eu, pelo meu lado, vou tentar, este ano, finalmente, ver o concurso de ganadarias na nova Arena de Évora. Queres vir comigo?

Pré-publicações - 39

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Jacques Lanzmann, O Império do Silêncio, Publicações Europa-América, Mem Martins, 2007 (Julho)
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Pré-Publicação:
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"Ao longe, o caminho que serpenteava entre as mais altas dunas. Por vezes perdia-se de vista mas logo depois tornava-se de novo visível. Estava assinalado por bandeirolas, vasilhas enterradas até meio, destroços de camiões, pneus, portas ou capôs, colocados entre si a uma distância regular. Para completar este cenário alucinatório, estacas enormes, refractárias às piores intempéries, erguiam-se em direcção ao céu, como varas que ameaçassem a mais pequena nuvem com um suplício horrível.
As caravanas passavam entre o ferro-velho e as estacas. Quando se perfilavam ao largo de Garame, não prestavam atenção aos castelos desmesurados repletos de grés, nascidos de uma série de caprichos sísmicos. A erosão, as tempestades, a mitologia animista tinham-se encarregado do resto. O medo, os rumores, faziam com que ninguém parasse diante de Garame. Quer fossem num sentido ou noutro, os séquitos apressavam o passo. Homens e animais baixavam a cabeça. Tanto os mais velhos como os mais jovens estugavam o passo à mais ténue visão do oásis. Ninguém falava mas toda gente pensava nas terríveis provações que poderiam afligi-los eternamente. O melhor era evitar provocar a fúria dos espectros. Então, corriam, avançavam com o pretexto do atraso da caravana. A esse ritmo, a água ia escassear.
A montante de Garame, o poço mais próximo situava-se a quatro dias de marcha. A jusante, o primeiro ponto de água, frequentemente seco, ficava a cinco dias de viagem. E, mais uma vez, também aqui era necessário encurtar o tempo de descanso, esquecer as noites ao relento, aproveitar ao máximo a frescura nocturna. Avançar, sempre a direito, sob o caminho das estrelas.
Barski ainda se sentia surpreendido. Era o único a saber da existência do guelta que cobria o fundo do desfiladeiro. Outrora, dava de beber e irrigava o povoado. Hoje em dia, turvo e estagnado, assassinava o seu único ocupante. Água é água! Que importa que seja pura ou impura, água tratada ou envenenada. O sedento precipita-se sobre ela com vontade e violência. Resiste-se à fome, à sede não. Não se comem as carcaças porque fedem, porque fervilham de larvas. Em contrapartida, lançamo-nos sem hesitação sobre um charco imundo, chafurdamos no pior dos lodaçais.
Aqueles que se cruzavam ao largo de Garame — caravaneiros, camionistas, guias, desertores, viajantes perdidos — não suspeitavam de forma alguma da existência deste guelta. E mesmo que a ideia lhes viesse ao espírito, como a água vem à boca, teriam ainda de enfrentar os demónios e os djinns, que a lenda dos séculos faz coabitar neste canto maldito, entre as ossadas de uma população outrora pestilenta.
Barski constatava este facto todos os dias. Passa-se diante de Garame como quem percorre a garganta de uma montanha, com os ombros encolhidos, os olhos fixos no chão. Aqui, porém, não há garganta alguma nem cumes vertiginosos susceptíveis de impressionar os nómadas.
Diante de Garame e até ao horizonte, nada excepto um vasto planalto desértico, fileiras de dunas até ao infinito, nas quais vinha perder-se o caminho coberto de indicações, de tótemes da fortuna."
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

terça-feira, 26 de junho de 2007

Glorificação e mundanidade

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(versão completa na crónica desta semana - próxima Quinta - do Expresso Online)
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Sabe-se que Berardo não é muito bem visto pela galeria vetusta que, há uns bons vinte anos, ainda se designava de modo corrente por “intelectualidade”. Nem o design negro (mitologicamente Augustus) que o acompanha bastará para suprir as mil desconfianças que, apesar de tudo, não excedem, aqui e ali, os suspiros contidos ou os embaraços mais ou menos impertinentes de alguns. Apenas Mega Ferreira, na boca do lobo, foi mais longe e bateu com a porta. Além disso, o autor de Heliventilador de Resende foi categórico: só aceitara presidir ao conselho de fundadores do Museu Berardo para dar ao “exterior a imagem de uma certa unidade de propósitos entre a Fundação (Berardo) e a Fundação Centro Cultural de Belém”. Enfim: sem que nada o fizesse prever – acreditemos no vaticínio mais ingénuo –, estalou o verniz, afundaram-se as aparências e o “right to the point”, que nunca fez escola no Portugal dos pequeninos, tornou-se subitamente em mutismo e campo de pragas. Qual arte contemporânea, qual quê! O que a antiga galeria vetusta nunca apreciou foi o cheiro dos legumes.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Pré-publicações - 38

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John Marks, Fabgland - Em Directo das Trevas, Guerra e Paz, Lisboa, 2007 (Junho)
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Pré-Publicação:
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O Agente de Mudança
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Como iniciar este relato? Devo ser lesta e decidida. Na véspera da minha partida para a Europa de Leste, o Robert propôs-me em casamento. Iremos casar no princípio do Verão do próximo ano. A igreja será a de Santo Inácio de Loiola, o copo de água em Wave Hill. Assim que regressar a casa, temos de iniciar os preparativos para que o acontecimento suceda de maneira civilizada. Nenhuma das famílias deverá sentir-se alienada, derrotada ou enraivecida. Porque há a questão dos números. Com uma ocupação máxima de cento e cinquenta pessoas no copo de água, já iniciei negociações hostis acerca da lista dos convidados, baseada no princípio herdado da minha mãe segundo o qual aos que não são casados não é permitido trazer acompanhante. Se é solteiro, não traz companheiro, como ela costuma dizer.
Terão de existir discussões acerca da música, da comida e dos votos de casamento. O Robert quer clássicos do jazz, eu prefiro uma banda country de Austin. É um daqueles momentos em que eu ter nascido e crescido no Texas parece ser, para ele, um incómodo evidente ou até um constrangimento. Grande parte do tempo, ele tem a atitude contrária, falando da minha linhagem relativamente exótica de filha do petróleo para entreter os convidados num jantar. A comida, claro, será fonte de discórdia. Sendo um muito elogiado chefe pasteleiro numa das melhores cozinhas da cidade, ele tem o monopólio dos detalhes do bolo de casamento e exerce o seu despotismo culinário sempre que eu tento falar do assunto. Proibiu a carne curada de qualquer género, apesar do meu desejo expresso em ter carne assada e entrecosto enviadas do meu restaurante preferido de churrasco no Texas para o jantar de ensaio do casamento.
Mesmo agora, que estou a seis mil e quinhentos quilómetros de Nova Iorque, a minha cabeça não pára de pensar no sem número de contendas que serão travadas até Junho próximo. A família dele, os Judeus mais seculares que alguma vez conheci, ficaram subitamente indignados com a perspectiva de um casamento pela igreja, enquanto a minha família, que não tem fé absolutamente nenhuma, começou a falar da possibilidade de conversão. Mas à luz das minhas circunstâncias actuais, devo pensar nas coisas boas; é tudo muito bom. É maravilhoso, na verdade.

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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

Escavações Contemporâneas - 33


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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: João Pereira Coutinho)
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Tudo é ressentimento*
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UM PSICOPATA sul-coreano de 23 anos entrou numa universidade americana e abateu 32 pessoas. Nos dias seguintes, um vídeo do criminoso passou nas TVs do mundo inteiro e o mundo inteiro abriu a boca de espanto. Como é possível conceder a Cho Seung-hui os seus 15 minutos de fama?
Talvez eu esteja errado. Mas, no massacre da Virgínia, o vídeo que o criminoso gravou para a posteridade é a única coisa que se salva. Digo mais: deveria ser obrigatório nos departamentos de história e ciência política de universidades ocidentais. Ele mostra, de forma impressiva e brutal, o que Turgenev, Dostoiévski e Conrad escreveram um século atrás. Que tudo é ressentimento na cabeça totalitária de um terrorista.Os comportamentos do personagem são conhecidos. O ódio ao mundo. O ódio à sua própria condição marginal numa sociedade competitiva e livre. A vontade de destruição radical, como se essa destruição fosse redentora para ele. E a declaração final de que foram os outros, e não o próprio, que o obrigaram a gestos extremos. Foi o ressentimento, e não as armas, Bush ou o "capitalismo selvagem", que envenenou a cabeça de um ser humano.Aconteceu no passado, e Roger Scruton, um dos mais notáveis pensadores contemporâneos, explicou o fenômeno no ensaio "The Totalitarian Temptation" (a tentação totalitária), agora publicado no livro "A Political Philosophy" (uma filosofia política, Continuum, 214 págs.). Retomando Nietzsche e a noção de "ressentiment", embora recusando o significado que o alemão lhe atribuía como sentimento próprio da "moralidade cristã", Scruton explica como os movimentos totalitários, em política, não se limitam à sua dimensão "ideológica" ou "sistêmica". O totalitarismo, que para Scruton é anterior ao século 20 e emerge com a Revolução Francesa, Robespierre e o Terror, começa com seres humanos concretos que transportam para a arena pública os seus próprios ressentimentos privados.
A tentação totalitária é a tentação dos ressentidos. De todos aqueles que encaram o poder não só como forma de transformação do mundo mas sobretudo como instrumento de destruição de um mundo de que se sentem excluídos. Por isso, ao chegarem ao poder, na França de 1789, na Rússia de 1917 ou na Alemanha de 1933, os ressentidos procuram destruir instituições que conferiam poder aos outros. A lei, a propriedade privada, a religião e qualquer outra fonte de poder "intermédio" entre o Estado e os indivíduos.Mas o ressentido não procura só destruir qualquer princípio de autoridade que se oponha à sua própria. Ele entende que não há destruição sem inimigo, e a tentação totalitária exige um grupo capaz de expiar todas as falhas. A aristocracia para os jacobinos. Os burgueses e os kulaks para os comunistas soviéticos. Os judeus para os nazistas. E, numa escala menor e individual, os "garotos ricos" para Cho Seung-hui, o monstrinho solitário que deplorava nos outros o "materialismo", o "deboche" e a indiferença perante ele. Olhar e escutar o criminoso da Virgínia é uma lição preciosa para entender dois séculos de política e ressentimento.
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*Folha de S. Paulo (25/4/2007)
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)

sábado, 23 de junho de 2007

Conferência de ontem

Acabei de publicar no MINITEMPO - o blogue subcutâneo do Miniscente - o texto da minha conferência de ontem sobre a obra de Almeida Faria.

Escavações Contemporâneas - 32


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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: António Quadros - António M. Ferro, Org.)
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Mito e Utopia*
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(…)o mito do regresso ao Paraíso, poetado entre nós por Teixeira de Pascoais, atravessa desde o orfismo vários tempos, civilizações e mesmo religiões, transposto em diversas línguas, com diferentes imagens e personagens, mas articulando-se sempre à apetência dinâmica numa relação vivaz de ideal e real. É um mito que, constituindo-se revelação sobrenatural acerca de princípio e fim, exprimindo a possibilidade maravilhosa de génese e redenção constantemente se coaduna ao meio, que é o homem. Entre o Deus, dimanante da génese e o Deus absorvente da redenção, situa-se o homem viandante. Temos pois, idealmente, um princípio e um fim do movimento humano. Não poderá este movimento reger-se apenas por fins e princípios ideais, mas no plano existencial, ele manifesta-se por dois modos, pela saudade e pela razão. A saudade, que é um sentimento de feição religiosa, um sentimento por assim dizer numinoso, isto é um sentimento que ultrapassa e transcende o fenómeno, porque radica no nómeno e pode, por conseguinte, não ter sequer a mínima determinação fenomenológica, a saudade é a típica expressão sentimental do mito. O mito parte do homem, regressa ao homem, e sempre o dinamiza algo de pré-racional, uma apetência de todo o ser, lembrança e desejo talvez, como o definiu Pascoais, algo, já noutro plano, que manifesta aquela mesma noção de que um estado não é em si, pois se une moventemente ao que foi (lembrança) e ao que será (desejo).
(…) se ao mito se liga o sentimento da saudade, à utopia e à ucronia, liga-se o sentimento da angústia, que constitui a ontológica e sentimental pedra angular dos modernos sistemas metafísicos da Alemanha e da França. Compreende-se facilmente porquê: a saudade implicando a perda, a ausência, o desgarramento, todavia não exclui o desejo, a expectativa, a esperança, já que a margem de enigma e mistério do mito deixa à acção humana uma liberdade de decisão e iniciativa; correlativamente a angústia, emparedada entre o nada e o não ser, traduz o inelutável de um movimento todo exterior, que antecipou abusivamente o seu fim, que o acredita mentalmente já realizado e julga em consequência de estar à beira de um destino definitivo, de uma coisificação de determinado estado de consciência, que aparentemente é ou será «o melhor dos mundos», mas ao qual falta o que é acima de tudo essencial para o movimento humano.
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*«O movimento do homem»
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Homenagem a Almeida Faria - II

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Hoje, às 21.30h, serei conferencista convidado numa homenagem que a cidade natal de Almeida Faria, Montemor-o-Novo, lhe dedica. Deixo aqui um curto excerto da intervenção que, ao longo do fim-de-semana, será integralmente publicada no Minitempo.
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"(...) Uma tal circularidade que associa o subterrâneo da alma à geometria mais apolínea e que sabe rescrever o mundo num único esteio, amalgamando o sonho e o real, a efabulação e a experiência, a plenitude e o fragmento, é um dado que sempre me pareceu evidente em toda a obra de Almeida Faria. Aparece em Rumor Branco, atravessa o edifício de Tetralogia Lusitana, inicia O Conquistador, inunda Os Passeios do Sonhador Solitário e o recente Vanitas e revela-se ainda como acaso persistente nas incursões teatrais do autor (Vozes da Paixão e A Reviravolta)."

Pré-publicações - 37

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Eric Hoffer, Do Fanatismo - O Verdadeiro Crente e a Natureza dos Movimentos de Massas, Guerra e Paz, Lisboa, 2007 (Junho).
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Pré-publicação:
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"O ódio é o mais acessível e abrangente de todos os agentes unificadores. Puxa e atrai o indivíduo para longe do seu próprio eu, torna-o indiferente ao seu bem e futuro, liberta-o de invejas e interesses pessoais. Torna-se numa partícula anónima que vibra com um anseio de se fundir e aderir com os seus afins numa única massa incandescente. Heine sugere que aquilo que o amor cristão não pode fazer é feito por um ódio comum
Os movimentos de massas podem surgir e propagar-se sem crença em Deus, mas nunca sem crença no demónio. Regra geral, a força de um movimento de massas é proporcional à nitidez e tangibilidade do seu demónio."
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"Talvez seja verdade que a perspicácia e astúcia dos homens que sabem como levar a cabo um movimento de massas, ou como mantê-lo em andamento, se manifestem tanto por saberem como escolher um inimigo válido como por saberem que doutrina preferir e que programa adoptar.
Os teóricos do Kremlin nem esperaram que os canhões da Segunda Guerra Mundial arrefecessem antes de escolherem o Ocidente democrático, e particularmente a América, para seu inimigo.
É duvidoso que um gesto de boa vontade ou uma concessão da nossa parte tivesse reduzido o volume e o veneno da vileza que emanava do Kremlin contra nós.
Um dos defeitos mais graves de Chiang Kai-shek foi o fracasso em encontrar um novo demónio apropriado, depois de o inimigo japonês ter desaparecido de cena no final da guerra. O general ambicioso mas simplório talvez fosse demasiado presunçoso para perceber que não era ele mas sim o demónio japonês quem gerava o entusiasmo, a união e a receptividade à abnegação das massas chinesas.
O ódio comum une os elementos mais heterogéneos. Partilhar um ódio comum, até mesmo com um inimigo, é infectá-lo com uma sensação de parentesco, e assim minar o seu poder de resistência."
e
Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

Escavações Contemporâneas - 31


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Paulo Tunhas)
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A culpa dos filhos
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Entre os vários maus e infinitamente perdoáveis costumes da humanidade, há muitos que são os piores. Entre os muitos piores contam-se algumas das maneiras dos pais tratarem os filhos e dos filhos tratarem os pais. É um tema clássico, sobre o qual a Dra. Manuela Eanes pode ainda hoje oferecer inestimáveis prédicas e que serve perfeitamente para túrbidos exercícios de diferente espécie, como notas do dia da Rádio Renascença, inquirições psicanalíticas da infância de autores consagrados, singelos programas televisivos que nos ensinam o segredo da felicidade e outras coisas edificantes assim. Mas os maus costumes devassados são quase sempre os dos pais. Desde os mais brutais e ostensivos aos mais pérfidos e encobertos, os maus costumes dos pais discutem-se entre a mesa-redonda sobre o trabalho infantil e o psicanalista da esquina. Estão todos lá, não falta nenhum; e o esmero posto na sua descrição há-de ser uma coisa muito característica do presente estádio da nossa civilização.
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Os maus costumes dos pais são uma coisa péssima, é verdade. Mas que dizer dos maus costumes dos filhos? Não falo daqueles hábitos vulgarmente inocentes e geralmente inócuos como querer matar o pai para possuir a mãe ou não gostar da comida que vem para a mesa. Isso são pequenos problemas que, quando surgem, na maior parte dos casos se resolvem com saudável eficiência. Os maus costumes dos filhos só se tornam realmente maus e costumeiros quando os filhos têm idade para serem pais. E o pior de todos eles é este: não conseguirem tirar os pais da cabeça.
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A resposta clássica é que a culpa é dos pais. Se os filhos não conseguem tirar os pais da cabeça é porque os pais se meteram lá muito bem quando eles, coitadinhos, não tinham defesas nenhumas. Muito bem. Certamente que isto é uma grande verdade. Toda a gente sabe quanto, para o bem e para o mal, os pais se esforçam para entrarem dentro da cabeça dos filhos. Alguns dos pensamentos mais engenhosos da humanidade foram dedicados, com inacreditável dispêndio de energia e obstinada devoção, a essa melancólica tarefa. Em alguns casos exemplares, os esforços paternos são coroados de êxito. Aquela história clássica do filho que, na tentativa de imitar o pai, distinto cirurgião, se torna médico e alegremente vai matando indefesos doentes, parece que tem mesmo equivalentes reais. Mas enfim, são costumes. Quer dizer: não tem que acontecer sempre assim.
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A mania dos filhos porem a culpa de todas as desventuras pessoais na, consciente ou inconsciente, perversa acção dos pais é a forma terminal, e vulgar, de não conseguirem tirar os pais da cabeça. Há gente cuja vida inteira é dedicada à estranha missão, de uma grandeza pelo menos dúbia, que consiste em mostrar aos pais todo o mal que lhe fizeram. Nenhum vício, nenhuma desventura, nenhum desacerto escapam a esta tão misteriosa quanto inescapável causalidade. «Deixei cair a chávena de café ao chão? Pudera, com os pais que tive!» Os pais explicam todo o mal, previsível ou imprevisível, do mundo pessoal. Organizam sabiamente as infelicidades futuras como orquestraram as passadas. Servem de alibi para as mínimas imperfeições e para as máximas calamidades pessoais, guardando assim uma espécie de virgindade do eu relativamente a toda a culpa.
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Esta doutrina é uma doutrina corrente. E a verdade é que é agradável a gente imaginar-se possuído de uma inocência fundamental relativamente ao mal e ao fracasso, como se a culpa das coisas fosse intrinsecamente alheia e não pudesse deixar de o ser. Mas é um agrado de duvidoso encanto, além de ser uma estupidez. Porque o que acontece é que, a partir de uma determinada altura, toda a gente tem todas as culpas que tem que ter porque as quer ter. O grau de responsabilidade varia, é certo, em intensidade, consoante os casos e a circunstância, mas não parece possível, nas situações em que directamente nos envolvemos, apresentar uma inocência profunda e absoluta. Ou então aceita-se a moral daquela história passada com o filósofo estóico Zenão, que batia com um pau num escravo que o tinha roubado; o escravo disse-lhe: «Estava escrito no meu destino que iria roubar»; Zenão respondeu-lhe: «E também que te bateriam». A moral da história é falsa porque a ideia da responsabilidade pessoal o não é.
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Há qualquer coisa de eminentemente desagradável na atitude das pessoas que, ao longo da vida, explicam todos os seus comportamentos à custa da sua história familiar infantil. Como acham que os pais lhes estragaram a vida, fazem da vida uma acusação permanente aos pais. Os pais, de resto, às tantas já não os ouvem. Mas bem que os outros os podiam deixar em paz. Já lhes bastava terem tido os filhos que tiveram.
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(O Primeiro de Janeiro, 28 de Março de 1990)
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)

quinta-feira, 21 de junho de 2007

Homenagem a Almeida Faria - I

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Amanhã estarei lá. No Sábado publicarei aqui o texto da conferência que se chama - anuncio aqui em primeira mão - UMA CAIXA DE MÚSICA SIBILINA - REVISITANDO A OBRA DE ALMEIDA FARIA.

Blogues e Meteoros - 36

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(Crónica publicada desde anteontem no Expresso Online)
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O Triunfo do Design - VI
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Os textos apocalípticos de Daniel são uma verdadeira enxurrada de imagens. No capítulo 7, as imagens chegam a sobrepor-se aos eventos que se relatam: “Considerava eu, na minha visão nocturna, os quatro ventos do céu precipitarem-se sobre o grande mar. Surgiram do mar quatro grandes animais, diferentes uns dos outros” (7,2-3). Esses animais fabulosos são depois descritos um a um: o primeiro “era semelhante a um leão, mas tinha asas de águia”, o segundo era “semelhante a um urso”; o terceiro era parecido a “uma pantera que tinha sobre o dorso quatro asas de ave” e, por fim, o mais “aterrador”, tinha “enormes dentes de ferro (…) e dez chifres” (7,4-8). Na narrativa, a vitória do “filho do homem” sobre as quatro “bestas” funciona como alegoria para os males da terra que, deste modo iconográfico e mágico, se vão expiando.
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Muito mais tarde, os românticos e os expressionistas também trataram as imagens por tu, mas libertaram-nas dos conceitos a que tinham estado secularmente amarradas. Os primeiros acreditaram na imaginação livre dos artistas, enquanto os segundos preferiram as visões às simples fantasias. É nesta era que liga a primeira revolução industrial à consolidação de um mundo urbano, consumista e moderno que o design cresce e amadurece.
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O design beneficiou muito desta separação entre imagens e conceitos e, de certa forma, absorveu-a como uma mais-valia única.
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Por um lado, o design pôs à prova soluções conceptuais. E fê-lo, quase sempre, com eficácia e com um grande poder de resolução. O extraordinário no design é, de facto, a sua capacidade de aplicar, aliando a funcionalidade e as respostas a problemas concretos ao antigo espaço da alegoria (a cadeira de praia que parece uma sereia). Por outras palavras: para além de encontrar soluções, o design habituou-se a criar um espaço estético no seio do qual as imagens parecem acenar a certos relatos (ou mitos) que não são narrados mas antes evocados.
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Por outro lado, os conceitos puseram à prova o design. Daí que o design tenha reconfigurado todo o nosso universo mundano: dos pequenos objectos do dia a dia aos artefactos tecnológicos, dos interfaces que difundem informação aos nossos próprios corpos e desejos.
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Esta dupla relação entre design e conceitos foi – e continua a ser – uma relação bastante elástica e flexível. E a razão é óbvia: entre ambos os campos, na chamada área do projecto, o uso das imagens passou a ser cada vez menos condicionado e instrumental. É por isso que o profeta Daniel, se vivesse no nosso tempo, já não precisava de alegorias para comunicar e revelar. Bastar-lhe-ia tão-só o design. E porquê? Porque o design tornou o mundo em imagens, cartografando-o como, no tempo dos Descobrimentos, a natureza mais selvagem se transformou num conjunto de mapas e de representações. Ao contrário de Daniel que tentava contar-nos os sonhos de Deus, o design aprendeu a viver num mundo onde conceitos e imagens, um tanto à deriva, voltaram a ser parte desse sonho.
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Mas um sonho em que todos podemos tocar. Um sonho de que todos sentimos o pulsar profundo. Um sonho que, porventura, nos redime dos espantalhos dos antigos dogmas, doutrinas e ideologias pesadas.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

Pré-publicações - 36

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PADRE ANTÓNIO VIEIRA - SERMÃO DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO - ESOTERISMO E INICIAÇÃO, Campo das Letras, Porto, 2007 (Junho).
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Pré-publicação:
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"Talvez a hipervalorização da componente teológica nos escritos de António Vieira seja a razão do deficiente estudo e fraca divulgação da sua obra, e impedimento para quem o lê ver mais fundo. É um erro. Para além de meia dúzia de Sermões mais divulgados (S.to António aos Peixes, Sexagésima, Pelo Sucesso das Armas… e pouco mais), a maior parte da sua obra é praticamente ignorada. Só assim se compreende que em www.vidas-lusofonas.pt se diga: “Durante um mês prega todos os dias (são os sermões conhecidos como Rosa Mística, do Rosário) abordando o tema da escravatura”, o que é manifestamente incorrecto.
Pregados durante um mês?! Antes me parece que os pregou ao longo da vida. Contra a escravatura?! Sim, mas melhor se diria, contra as escravaturas; sobretudo a que a ignorância e o desejo de poderes e vãs glórias impõem ao homem, privando-o de humanidade. E deste modo, disseminam-se por verdades erros grosseiros. Ainda que o desprezo respeitoso dos nossos melhores
valores, alicerçado na ignorância, seja um hábito entre nós, é um hábito mau; e não me ocorre razão nenhuma para que não seja modificado.
Na minha opinião, a teologia na obra de António Vieira é incidental. É padre, educado num colégio jesuíta, numa época e num país onde não ser cristão era autopropor-se à fogueira; não vejo como fugir à teologia, que de resto professava, embora de modo diverso da maioria dos seus pares. Porém, a recorrente persistência na citação de filósofos e escritores pré-cristãos, a qua-
lidade supra-religiosa do seu humanismo e a implícita aceitação das descobertas e teorias científicas contemporâneas mostram bem como em António Vieira há mundo para além da teologia. O próprio o escreveu no prólogo do 1.º volume dos seus Sermões, em 1677: “E assim uns serão Panegíricos, outros Gratulatórios, outros Apologéticos, outros Políticos, outros Bélicos, outros Funerais, outros totalmente Ascéticos, mas todos quanto a matéria o permitia (e mais do que em tais casos se costuma) Morais”. Nos escritos de António Vieira encontramos duas constantes: a teologia cristã; o humanismo – repúdio da opressão e repressão entre os homens, independentemente da raça e seja por que meio for. Estas duas características
harmonizam-se, e o autor faz da segunda a exemplificação da prática material da primeira. O estado clerical, ao qual pertencia, pelo contrário, sustentava, com a sua explicação teológica e a sua prática, a servidão de quase todos e o domínio de uns poucos."
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Guerra e Paz, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença e Vercial.

terça-feira, 19 de junho de 2007

Genoma de Viriato

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A súbita maré de estudos para o novo aeroporto fez disparar a rara inventividade dos portugueses. Por vezes, este indomável arrojo criativo que tem genoma de Viriato faz-nos esquecer coisas elementares e uma delas diz respeito à cidade que carece justamente do novo aeroporto. Mas eu lembro: trata-se de Lisboa. Seja como for, é compreensível o voluntarismo patriótico que faz com que a Associação Comercial do Porto e, depois, a de Bragança, Horta, Damão, Faro, Dili e Caniçal invistam em novos estudos e visões particularmente originais. Talvez um dia os comerciantes de Manaus proponham um novo aeroporto para o Rio e estes o aceitem de braços abertos. Carioca é mesmo assim... mas o português, garanto, é feito de fibra ainda mais engenhosa!

Kitsch, mon ami!

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Estava em Vila-Viçosa, o mutismo corria pela rua comprida a rejubilar de mármore e esquecimento. Não havia qualquer sinal de neve, mas a melancolia já profetizava este momento: o céu a segredar inocência e a saudade a entrever o esvaziar do tempo.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Editores espertinhos

e
Como não gostei da fotografia que dominava a primeira página do Público, comprei hoje o DN. Acontece que a primeira página do DN dá a ver, ao lado de uma imagem fabulosa (artista vs. obra de arte), uma fotografia de Nelly Furtado com a seguinte legenda:
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"Ladra. Nelly Furtado foi filmada a roubar jóias. Canal AXN passa as imagens amanhã. Televisão, pág. 61"
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É claro que fui a correr para a página 61. Resultado: a cena passa-se no CSI: Nova Iorque e não na vida real. E eu... que gosto tanto de antecipações ficcionais!

Escavações Contemporâneas - 30


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: João Pereira Coutinho)
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Trabalhar para o bronze
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"Confesso um certo carinho pela sra. Ségolène Royal. Razões? A paixão tem razões que a própria razão desconhece. O facto de ser mulher ajuda. O facto de ser mulher e exemplo maior da elegância gaulesa, também. Mas é com tristeza que leio na imprensa especializada que as simpatias liberais de Ségòlene a convidam a actos de loucura. Como, por exemplo, acabar com a semana das 35 horas, o último bastião da civilidade europeia. Bem sei que os meus amigos liberais fazem um esgar de nojo e me acusam de traições várias. A França está em declínio porque os franceses não trabalham como os americanos. Trabalham menos, muito menos, e depois saem para o mundo e entregam-se à ociosidade. Deus meu, acabo de escrever isto e quase choro de inveja e raiva. Sim, eu, um workaholic sem emenda, que há vários anos sonho com o improvável: 35 horas semanais, não mais. Pior: chego a pensar que 35 horas semanais são um clamoroso abuso da nossa humanidade e que 30, ou 25, ou mesmo 20 chegavam. Eis o supremo paradoxo da condição moderna: a tecnologia fez-se para libertar os homens do trabalho; a tecnologia existe para aprisionar os homens ao trabalho.
Não admira que os resultados estejam à vista: os portugueses que entram em férias em Agosto não entram propriamente em férias. Basta vê-los: demenciais e à solta, pelas estradas do país, a correr não se sabe para onde, ou porquê. E depois, quando chegam ao destino, descarregam o carro, marcham para o metro quadrado de areia e começam, atenção ao termo, a trabalhar para o bronze. Para o português médio, as férias não se bastam a si mesmas: não são um espaço em branco onde ele pode dedicar o tempo, e o corpo, a abusos e preguiças macabras. As férias têm um propósito, e um propósito que exige a continuação do trabalho por outros meios: regressar a casa com a medalha do bronze colada ao corpo, para mostrar aos amigos da empresa e comparar. Conheço casos de gente que falou das férias como usualmente se fala de uma batalha: as horas a que acordavam (obscenas); a corrida para a praia (às vezes com frio, às vezes com chuva); a forma espartana como comiam «sandes» e outros vexames; e o regresso ao ninho, literalmente deprimidos e arrasados. E porquê?
Não tenho teorias científicas. Apenas pessoais: os portugueses são incapazes de abandonar o trabalho porque o trabalho não abandona os portugueses. E estes, pobrezinhos, são incapazes de pensar que talvez exista vida sem propósito e que as férias são a suspensão desse propósito. Não existem sítios para ir ou não ir: existe apenas um horizonte de possibilidade onde vamos mergulhando sem hora marcada. As melhores férias que tive foram repartidas entre a minha casa e o sul de Itália, e confesso que fui vogando entre ambos sem contar. Acordava e adormecia quando muitos adormeciam e acordavam. Nunca permitia refeições «leves» ou «rápidas»; os repastos eram longos, elaborados, acompanhados. Lia por mero acaso livros que acumulava por mero acaso. E a água do Mediterrâneo era o berço gentil onde embalava as horas que perdia, ou ganhava.
A primeira medida de um governo responsável seria devolver o sentido original das férias aos portugueses. E isso implicaria devolver os portugueses a um ritmo de vida mais brando e mais civilizado, permitindo que estes reencontrassem o que resta das suas pobres existências escravizadas. Ninguém necessita de oito horas diárias para carimbar papéis, aturar o chefe, os colegas, os clientes e as infinitas maçadas que acabam por desabar com violência inesperada. Duas ou três horas chegavam, se os portugueses realmente as trabalhassem. E o resto? O resto seria uma preparação informal para as férias seguintes: porque o ócio não é brincadeira. Ele exige longas horas de ócios privados, só para habituar o corpo, e o espírito, a uma posição horizontal, confortável e acordada."
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)

domingo, 17 de junho de 2007

Quando blogar é ficção apetecida - 8

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Extractos de posts de natureza ficcional a que apetece criar o início e o fim do enredo, ou tão-só desfrutar o pousio em media res
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"Como bom nómada, estou parado na A1, numa gasolineira com café, a meditar. Chove torrencialmente e ocorre-me que Deus não dorme. Um país de pulhas não merece a benção solar. Falei agora ao telefone com uma amiga e colega. Há dias, quando Rui Pereira a convidou para adjunta, adverti-a acerca do tipo de gente que ela ia incomodar. Não Pereira, coitado, que é mais um a ver passar os comboios."
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sábado, 16 de junho de 2007

Blogues e Meteoros - 35

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(crónica publicada no Expresso Online desde anteontem)
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O Triunfo do Design - V
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O design está hoje a encontrar na tecnologia a sua realização quase plena. Não apenas reúne o que sempre se pensou serem opostos (razão e mito, técnica e arte), como está a ajudar a libertar a arte da sua sacralização moderna, misturando-a com objectos do nosso quotidiano. Cada vez mais, o design age nessa película muito fina que aproxima o corpo e os sentidos daquilo que os envolve. Razão pela qual o design é mais susceptível de uso, usufruto e fruição do que de discussões teóricas acaloradas.
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À excepção de alguns centros de investigação (UNIDCOM/IADE, FBAUL, CIFAD, etc.), o design quase se contenta em incorporar. Ou seja: em dar ao corpo a sua nova e inesperada pele. Eficaz e bela, funcional e mágica, prática mas visceralmente estética.
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Os blogues não escapam a este horizonte, já que são, por natureza, filhos de templates e afilhados de diversas ‘poéticas do código’ que concorrem entre si. Mas há blogues que tratam o design como área de excelência. Destacamos, nesta crónica, alguns desses ciberespaços mais relevantes. Agradeço ao meu colega José Bártolo (investigor da área do design e da cultura visual) a ajuda para a enumeração que se segue.
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Em termos internacionais, convirá sublinhar dois blogues à partida: o
“Design Observer” de Rick Poynor, um influente designer e crítico de design, e o “Core 77” que é uma referência no campo do design industrial. Existem, naturalmente, muitos outros blogues de relevo na área, tais como o “Design Writhing Research” de Ellen Lupton, o “Speak Up” de De Armin e Bryony Gomez-Palacio, ou a edição online do Journal da A.I.G.A. (Associação de Designers Gráficos Norte-americana) que é editada por Steven Heller.
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No que diz respeito à blogosfera portuguesa, saliente-se o
“Ressabiator” de Mário Moura, o “Desígnio” de Luís Inácio, o "Isto não é uma tese" de Joana e Mariana Leão Cunha, o “Coconut Jam” de “Jam” (uma preciosa e actualizada lista de links), o “Tocolante” de “Papo-Seco” (que remete para a história política recente do design gráfico), o “Type For You” de Pedro Mesquita, para além do genérico “Comunicarte”, do “Texto”, do infelizmente já desactivado “DesignerX” e ainda, claro, de “Reactor” do já referido José Bártolo (chamo a atenção para as entrevistas que aí têm sido publicadas recentemente).
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O “sonho” do “resgate estético da quotidianidade”, a que há dezoito anos se referia Gianni Vattimo a propósito do design, na sua obra A Sociedade Transparente, parece agora estar a tornar-se numa realidade evidente. E é claro que a realização do design é, ao mesmo tempo, um facto tecnológico e o resultado da massificação do – chamemos-lhe – ‘antigo altar’ das artes.

Sociedade civil e justiça...

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Fui alertado pelo próprio. Transcrevo o início do seu próprio post:
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"Acabo de ser convocado para prestar declarações como arguido no âmbito de inquérito judicial relativo ao assunto do percurso académico (e utilização do título de engenheiro) de José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa - além de outra convocação para depoimento como testemunha noutro inquérito relativo ao mesmo Dossier Sócrates. Desconheço o(s) crime(s) de que sou arguido - tendo sido eu que investiguei e publiquei este Dossier, depois desenvolvido na blogosfera e nos media."
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Vamos ver até onde é que este caso nos leva. Está em causa a (nos últimos dias repetidíssima) "vitalidade da sociedade civil". O meu medo é que a postura salazarenga de silenciar o incómodo se sobreponha à expressão livre e democrática.

Escavações Contemporâneas - 29


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: António Quadros, M. Ferro, Org.)
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Mito e Utopia
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"(…) a angústia é um sentimento peculiar do «drama como movimento que se ignora», ou do falso movimento, que se agita tanto mais quanto suspeita não passar de uma aparência ou uma máscara do verdadeiro movimento. Kierkegaard, Sartre, Heidegger prestaram especial atenção a este sentimento difuso, indeterminado, quase inqualificado, que o homem encontraria dentro de si como inerente à sua mesma condição vivente. Mas terá a angústia, tal como a descreve a fenomenologia existencialista, isto é, como um sentimento incausado, porque consubstancial ao ser humano, terá a angústia realmente um valor universal, transcendente às filosofias, às civilizações e às culturas? A sua presença quase exclusiva nos países da Europa Central, particularmente no triângulo constituído pelos países nórdicos, pela França e pela Alemanha, não indicará ao invés que se trata de um sentimento decorrente naturalmente do teor de determinadas perspectivas filosóficas? E estas perspectivas filosóficas, nascidas na era da industria, da técnica e da sociologia, não resultarão afinal da queda do movimento, detido na problemática do ser em situação estática?
Efectivamente, a dialéctica do ser e do nada, a oposição entre o ser e o não ser, geradores dos sentimentos de desespero, de desgarramento e, principalmente, de angústia, tal como surge descrita em Heidegger ou em Sartre, seriam inconcebíveis numa filosofia dinâmica, porque, se o nada representa a coisificação de um estado-limite, o não-ser é um artificio gramatical que perde realidade quando transposto para termos vitais. Assim, as ucronias apenas subsistem com todo o seu poder de atracção enquanto são garantidas por sistemas em queda para o estatismo. De igual modo, os conceitos de progresso circulam dentro do mesmo tipo de sistema, propondo caminhos aparentemente válidos para a ucronia ou para a utopia."
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*«O Movimento do Homem»
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Fascismos e "má consciência" (act.)

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Nos próximos dias, vão aparecer textos 'compreensivos' para com o fascismo do Hamas. Não apoiarão a barbárie, claro. Mas compreenderão o fenómeno. Este tipo de compreensão permite salvar a consciência (lesada pela imagem de um paraíso perdido à semelhança da Índia de Colombo) e expiar os males de uma visão algo patológica do mundo. Aliás, em concordância, a culpa será sempre, em todos os casos, projectada sobre Israel. Sobre isso, geralmente, não há nada a fazer. A própria memória da fundação do estado a poucos serve. Depois, virá o Verão a sério (bem o espero!). O Médio-Oriente tem uma história de guerras estivais. Quando lá estive, há cerca de duas décadas - era Páscoa - , os meus anfitriões já conjecturavam as Danças com Lobos desse Verão. Porém, este ano, e tal como aconteceu em 2006 no sul do Líbano (e no norte de Israel), as correias de transmissão iranianas preparam-se para dar sinal de si. É que o Irão não ocupou apenas o vazio deixado pela dissolução política do Iraque. Esse vazio tornou-se, entretanto, numa rede perigosa e ameaçadora: uma verdadeira labareda guerreira, cujos limites serão hoje difíceis de traçar. Mas haverá sempre, no Ocidente, pode crer-se, quem 'compreenda' a raiz dessa labareda. A culpa será sempre dos americanos (e aqui haverá razões repartidas), dos israelitas e, claro, da cobardia dos estatos dandies da Europa. A culpa será sempre da fina mácula desta parte do mundo que, um dia, há uns três séculos, se pôs a inventar um leque de coisas (tal como hoje as entendemos) aparentemente - parece - sem importância: a liberdade, a democracia, etc.
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P.S. - De facto, vem mesmo a propósito: e a Resolução 1701 que previa o desarmamento do Hezbolah?

Escavações Contemporâneas - 28


LC
e
O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Paulo Tunhas)
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"Lourenço e Al Barran*
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A invasão do Kuwait pelo Iraque poderia ter suscitado algumas reflexões sobre o racismo por parte da vasta legião de vozes que se dedica a comentar, entre nós, a matéria. Não aconteceu. E não aconteceu, provavelmente, por duas razões. Primeiro, porque os aspectos mais imediatamente políticos da crise consequente concentraram as atenções. Segundo, porque o racismo é, diga-se o que se disser, um assunto tabu: na alma, muito mais do que nas palavras.
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E, no entanto, ele está no centro de tudo, como se verifica perfeitamente no próprio cuidado com que é ocultado por quem tem escrito sobre esta crise. Um bom exemplo é o artigo que o Dr. Eduardo Lourenço publicou no «Público» de 23/8/90. O Dr. Eduardo Lourenço, é verdade, escreve sempre por alturas destas umas redacções em estilo sibilino e cardinalício destinadas a convencerem os predispostos a isso que vê o mundo a partir de Sírius. E a originalidade da pretensão, acrescida da perfeita nulidade do resultado, deveria aparentemente inibir a intenção de o considerar paradigmático. Mas é um pudor desnecessário, porque — estilo à parte —as suas reflexões estão, moral e ideologicamente, ao nível exacto da opinião esclarecida comum.
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Estão logo desde o princípio. O medo de parecer racista e etnocêntrico obriga-o a escrever um artigo inteiro a descrever o conflito como se este revelasse fundamentalmente uma oposição entre os Estados Unidos e a Europa. Contam-se pelos dedos as palavras dedicadas a Saddam Hussein e aos árabes em geral. Destes apenas se tem o cuidado de dizer que se encontram «partilhados entre a natural reivindicação da sua dignidade e o ressentimento», o que está certamente longe de iluminar por pouco que seja a natureza do seu comportamento. Em contrapartida, as causas que determinam, na sequência da crise do Golfo, uma «subalternização» da Europa pelos Estados Unidos, são exploradas até mais não, como se se tratasse da matéria principal de preocupação. E é espantoso o cuidado posto na autoflagelação europeia: a Europa não vai «morrer pelo Kuwait», porque «a Europa morre nas estradas por conta própria»; tanto mais espantoso quanto sublinhado por um exemplo contraditório do primeiro: a guerra das Falklands foi «absurda». A Europa, pelos vistos, morra ela por conta própria ou por conta alheia, não parece ter a mínima probabilidade de se comportar decentemente. Mas manda a verdade que se diga que os Estados Unidos, apesar de «subalternizarem» a Europa, não são por isso mais dignos de louvor. Fazem-no porque pertencem a um «país sem memória», movidos apenas pelos mais baixos interesses económicos que os seus «boys» servem. Além das potências ocidentais que se digladiam entre si, existem os árabes, divididos, como se viu, «entre a natural reivindicação da sua dignidade e o ressentimento». É louvável que Eduardo Lourenço não os julgue capazes de confundirem as duas paixões. São criaturas que têm uma razão «natural» para a primeira, e outra, supõe-se, «cultural» para a segunda: a velha humilhação que o Ocidente (entidade ambígua que tanto se divide como se une, consoante as circunstâncias) faz sobre elas pesar. Saddam Hussein não pode ser levado particularmente a mal: o seu tempo é um «tempo longo» que nós, estúpidos europeus e ainda mais estúpidos americanos, não podemos perceber; seria pura estultícia medir os seus comportamentos pelos nossos padrões; etc. O segredo do mundo visto de Sírius é então o seguinte: cupidez, divisão e cobardia a Ocidente; e inocência, aspiração à dignidade e (não sei como evitar) heroísmo do lado «muçulmano».
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É propriamente inconcebível, neste caldo de pensamento, julgar Saddam Hussein (ou, para o efeito é o mesmo, as lutas entre xhosas e zulus) um sinal da barbárie. É impossível vê-lo como um criminoso, alguém para quem a vida humana literalmente não conta. Isso são coisas de quem tem o péssimo hábito de pesar as coisas neste planeta. Mas— é um aspecto importante — não quer isto dizer que este sistema conduza a uma profissão de fé no fundamentalismo islâmico. De modo algum. A conclusão até é inversa e só aparentemente paradoxal. Porque é no Ocidente que se pode partir para Sírius e observar os animais justos na sua maior pureza. Só o amor à distância é o amor da razão e o mau cheiro dos mortos e dos vivos não perturba assim a lucidez. O verdadeiro racismo revela-se aqui encapotado debaixo da autoflagelação ocidental. O seu objecto são aqueles que se decidiu não poderem ser culpados. Em psicanálise chama-se «o retorno do recalcado».
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Um proficiente e inesperado discípulo do Dr. Eduardo Lourenço é o jornalista Artur Albarran. Mas, não se sabe se por se encontrar na Jordânia, perto da zona do conflito e, portanto, sujeito a pressões empíricas, este decidiu-se mais abertamente pela sua causa. Mergulhado no meio de árabes, Albarran anda visivelmente emocionado com o seu espírito. Quando chegar a Portugal há-de ter mudado nome para Al Barran. É mesmo provável que, à semelhança de Saddam Hussein, que, depois de ter descoberto ser descendente do Profeta, começou a tratar o rei Hussein por «primo», Al Barran dentro de dois telejornais o trate por «tio». Pela forma entusiástica como descreve o apego dos jordanos à causa iraquiana, não há-de faltar muito. Nem o rei — que deve andar desesperadamente à procura de uma maneira de se salvar desta situação — escapou aos seus arrebatamentos líricos: parece que está dividido entre a antiga amizade com os Estados Unidos e o seu amor «de corpo e alma» pelos «irmãos iraquianos». Pode ser só parvoíce; pode ser, como me sugeriram, uma manifestação do «síndroma de Estocolmo». Mas o mais provável é ser mesmo racismo: Al Barran descobriu que os habitantes da zona se encontram, por definição, isentos de responsabilidade, e anda por lá feliz no meio dos seus inocentes e guerreiros júbilos. Como o Dr. Eduardo Lourenço, também não percebeu que a forma mais perversa de racismo consiste em julgar o outro, por razões rácicas ou culturais, radicalmente insusceptível de culpa.
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E chega-se assim ao essencial. Não é o racismo enquanto atitude espontânea e natural que é condenável. Há sem dúvida um nível em que o racismo é universal. O que é condenável são as formas segundas de racismo que se instituem a partir desse racismo natural. Elas são múltiplas e, por vezes, contraditórias. Tanto se podem manifestar na afirmação da superioridade de certas raças sobre outras raças como, paradoxalmente, na proclamação da equivalência de todas as culturas. Esta última é uma forma contemporânea e relativista de racismo. É um racismo desenvolvido e ocidental. Não parece ter germinado em nenhum outro lugar do mundo. Impede que se reconheça a superioridade efectiva dos nossos padrões civilizacionais, impede que se chame criminoso a Saddam Hussein, impede que o fanatismo islâmico receba os nomes que merece, impede que se fale dos combates entre xhosas e zulus no tom certo e impede que se reflicta honestamente sobre a responsabilidade dos povos do chamado terceiro mundo na sua situação actual. O racismo, não o racismo natural mas o racismo elaborado, é o que não deixa ver a realidade. O racismo do Dr. Eduardo Lourenço e o do jornalista Albarran também são assim."
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*(O Primeiro de Janeiro, 2 de Setembro de 1990)
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)

quinta-feira, 14 de junho de 2007

O absoluto em directo

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É extraordinário ouvir os autarcas depois do recente volteio folclórico da questão Ota/Campo de Tiro de Alcochete. De facto, poderia parecer constrangedor ver alguém falar, quando a previsibilidade do que defende se centra nos cem por cento. Mas não, aquilo é o próprio absoluto em directo. Coisa rara. Poucas vezes se tem visto tanta irracionalidade junta, é verdade. Mas tem sido delicioso. Para tal, basta dar a voz aos autarcas de Leiria, Alenquer ou Cartaxo para falarem sobre a Ota e, depois, basta dar a voz aos autarcas de Alcochete, Montijo e Samora Correia para falarem sobre o Campo de Tiro de Alcochete. O argumentário de uns e de outros torna-se subitamente sibilino, convicto e praticamente anedótico. Portugal afasta-se assim da sua tendência elegíaca. Faço tudo para não perder uma dessas performances, juro. Ainda dizem que a linguagem e os factos andam de mão dada!

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Era eu ainda um jovem deus

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Só falámos duas vezes, creio. Mas ele andou pelas mesmas terras que eu andei. Peregrinos diferentes de silêncios parecidos, talvez. Sempre apreciei o modo como ele enfrentava o tosco, o desfigurado, o limiar do kitsch e todo o paraíso das naturezas incontidas. Não era amigo de grandes depurações e o ritmo corrido e comprido sorria-lhe como uma festa que aparentemente não partilhava. Padeceria, porventura, do mesmo mito da planície que entrevê na larga sintaxe de Bernardim Ribeiro uma alma plena e satisfeita? Não sei. Mas um pasmo sereno acompanhava-o; um pasmo de labaredas que se revia no Aberto de Rilke. Um pastoreio de palavras sem medo. Sim, o livro continuou sempre aqui no meu escritório. É como uma antologia em forma de rolo, resguardada pela fotografia performativa de Nozolino que me faz lembrar ainda hoje as performances de José de Carvalho, Conduto ou Caravaggio. Morreu faz hoje dez anos. Não concluirei com ditames alarves do género "continua vivo entre nós" ou "a morte separou-nos...". Não, o Al berto é apenas uma memória, um acontecimento pessoal e íntimo, um verso que se leu naquela noite de temporal em Amesterdão. Havia neve na janela do quintal e o gato da vizinha, molhado como um glaciar branco, olhava-me olhos nos olhos: "A ponta dos dedos acendendo o firmamento da alma". Foi agora mesmo. Era eu ainda um jovem deus à procura do seu céu. Até já, Al berto!

terça-feira, 12 de junho de 2007

Quando blogar é ficção apetecida - 7

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Extractos de posts de natureza ficcional a que apetece criar o início e o fim do enredo, ou tão-só desfrutar o pousio em media res
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"Ao princípio ficamos impressionados. "Aquele ali é príncipe", dizem-nos, apontando para um homem de barba bicuda e olhar de falcão. Mas depois descobrimos que há mais de 3.000 príncipes na corte. E a palavra príncipe fica estranhamente parecida com o portuguesíssimo sôtor."
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Contra a tirania de Chavez

San Cristonbal, Lynda Galiano
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Deixo aqui este link importante. Trata-se de um blogue que põe em causa a tirania venezuelana Um blogue...
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"...creado para todos aquellos que deseen ver fotos de la realidad que esta pasando Venezuela en estos momentos. Pasen la pagina a sus amigos, familiares en el interior y el exterior. Tenemos que hacer ver que pasa en nuestro país y que mejor que imagenes que expresen la fuerza, tristeza, impotencia, felicidad, emocion y union de los estudiantes y jovenes de toda Venezuela..."
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Obrigado, MJ!

Escavações Contemporâneas - 27


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Fernando Ilharco)
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"Somos Todos Soldados (II - 17/08/1998)
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Recuando um pouco, até ás bases cognitivas do ser humano, sabe-se que é na linguagem que o homem se faz homem, construindo o entendimento dum mundo sempre a acontecer. Porque esse mundo é prioritário ao próprio sujeito, o acontecer implica que o sujeito e o mundo estão mutuamente ajustados. O sujeito – ou sujeitos – influenciam o rumo que os acontecimentos tomam. Mas é o mundo, enquanto envolvente externa, que prevalece no necessário ajustamento estrutural entre os dois. Este ajustamento é inevitável, intuitivo e não planeado. É a própria essência do ser vivo: é estar vivo. Isto significa que o conhecimento é o que permite uma adaptação com sucesso ao meio envolvente. Ou seja o conhecimento é o que permite sobreviver. Daí que a melhor forma de conhecer, e por isso de sobreviver, seja influenciar decisivamente a evolução do meio envolvente.
Num excelente artigo no “Le Monde Diplomatique” (Agosto de 1996) intitulado “Comment la pensée devint unique”, Susan George, directora do Transnational Institute de Amesterdão, reflecte como as coisas na politica e na economia se tornaram o que são. Lê-se: “o catálogo das ideais que exercem a hegemonia nas políticas públicas e que, graças ao seguidismo dos media, invadem os espíritos não são mais “naturais” que quaisquer outras: o neo-liberalismo, que recupera simplisticamente doutrinas do inicio do século XIX, começou na indiferença geral a colocar as peças no lugar após a Segunda Guerra mundial. Algumas dezenas de anos mais tarde, graças à inteligência estratégica dos seus promotores e a milhões de dólares de financiamentos – apesar dos resultados geralmente desastrosos – ele tornou-se a base do pensamento único”.
“Saber é estar apto a operar adequadamente de um ponto de vista individual em situações de cooperação”, escrevem Humberto Maturana e Francisco Varela, biólogos chilenos de renome mundial, em “The Tree of Knowledge” (1992). A biologia, nomeadamente na sua variante em impacto crescente que se centra no conceito de autopoiesis, diz-nos mais. O que faz mudar ou variar um ser vivo não é directamente a envolvente externa. Essa envolvente apenas pode despoletar alterações nesse mesmo ser vivo. Essas alterações são determinadas por aquilo que o ser vivo já é. Não são mudanças previsíveis, são mudanças despoletadas. Desta forma, a comunicação entre seres vivos – entre dois ou mais seres humanos – só é possível se existir correspondência no domínio da interacção. Isto é, os homens que comunicam estão necessariamente estruturalmente ajustados no seu meio.
Um exemplo recente disto mesmo é protagonizado por certas práticas na Internet. Material que há uma década ou menos levaria o carimbo de top secret, for no one, ou coisa do género, está hoje na Internet disponível para todos: chineses, iraquianos, iranianos, americanos malucos e não malucos, portugueses, etc. Claro, que ninguém inadvertidamente colocou o papel na net… Mas se é de propósito então qual é a intenção? É simples: influenciar as regras do jogo. Influenciar a envolvente em que os bons e os maus se vão confrontar no futuro - “o que é tudo, senão o que pensamos de tudo?” (Fernando Pessoa). Claro que essa envolvente – esse entendimento do que é o mundo – é tão mais favorável a quem coloca o material na net, quando mais gente o ler… menos eu, claro. Porque não há almoços grátis – continua a não haver embora por vezes apareça gente nova para os pagar – o que os bons/maus tentam fazer é influenciar o ajustamento estrutural, o qual afectando amigos, inimigos e intermediários, venha a favorecer os próprios. Convenhamos que não está mal visto.
Afinal de contas os marines, os satélites, as redes, os infravermelhos, perderam a guerra na Somália. Os somalis não viam as coisas da mesma maneira; não usavam o espectro rádio-eléctrico, nem tinham nova tecnologia nos seus sistemas de informação. E este é um problema sério. Não se fala muito nele, é certo. Mas se não o fosse um problema importante os EUA teriam ganho a guerra. Mas perderam-na – não contra outro exército, mas contra outra mundo.
Nesse outro mundo somos todos soldados. Contudo, numa coisa, ontem como hoje, tudo está na mesma. Poucos são os soldados que sabem de que lado estão. Porque poucos sabem quais são as guerras que correm."
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Quintas - Bragança de Miranda
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)