segunda-feira, 25 de junho de 2007

Escavações Contemporâneas - 33


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: João Pereira Coutinho)
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Tudo é ressentimento*
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UM PSICOPATA sul-coreano de 23 anos entrou numa universidade americana e abateu 32 pessoas. Nos dias seguintes, um vídeo do criminoso passou nas TVs do mundo inteiro e o mundo inteiro abriu a boca de espanto. Como é possível conceder a Cho Seung-hui os seus 15 minutos de fama?
Talvez eu esteja errado. Mas, no massacre da Virgínia, o vídeo que o criminoso gravou para a posteridade é a única coisa que se salva. Digo mais: deveria ser obrigatório nos departamentos de história e ciência política de universidades ocidentais. Ele mostra, de forma impressiva e brutal, o que Turgenev, Dostoiévski e Conrad escreveram um século atrás. Que tudo é ressentimento na cabeça totalitária de um terrorista.Os comportamentos do personagem são conhecidos. O ódio ao mundo. O ódio à sua própria condição marginal numa sociedade competitiva e livre. A vontade de destruição radical, como se essa destruição fosse redentora para ele. E a declaração final de que foram os outros, e não o próprio, que o obrigaram a gestos extremos. Foi o ressentimento, e não as armas, Bush ou o "capitalismo selvagem", que envenenou a cabeça de um ser humano.Aconteceu no passado, e Roger Scruton, um dos mais notáveis pensadores contemporâneos, explicou o fenômeno no ensaio "The Totalitarian Temptation" (a tentação totalitária), agora publicado no livro "A Political Philosophy" (uma filosofia política, Continuum, 214 págs.). Retomando Nietzsche e a noção de "ressentiment", embora recusando o significado que o alemão lhe atribuía como sentimento próprio da "moralidade cristã", Scruton explica como os movimentos totalitários, em política, não se limitam à sua dimensão "ideológica" ou "sistêmica". O totalitarismo, que para Scruton é anterior ao século 20 e emerge com a Revolução Francesa, Robespierre e o Terror, começa com seres humanos concretos que transportam para a arena pública os seus próprios ressentimentos privados.
A tentação totalitária é a tentação dos ressentidos. De todos aqueles que encaram o poder não só como forma de transformação do mundo mas sobretudo como instrumento de destruição de um mundo de que se sentem excluídos. Por isso, ao chegarem ao poder, na França de 1789, na Rússia de 1917 ou na Alemanha de 1933, os ressentidos procuram destruir instituições que conferiam poder aos outros. A lei, a propriedade privada, a religião e qualquer outra fonte de poder "intermédio" entre o Estado e os indivíduos.Mas o ressentido não procura só destruir qualquer princípio de autoridade que se oponha à sua própria. Ele entende que não há destruição sem inimigo, e a tentação totalitária exige um grupo capaz de expiar todas as falhas. A aristocracia para os jacobinos. Os burgueses e os kulaks para os comunistas soviéticos. Os judeus para os nazistas. E, numa escala menor e individual, os "garotos ricos" para Cho Seung-hui, o monstrinho solitário que deplorava nos outros o "materialismo", o "deboche" e a indiferença perante ele. Olhar e escutar o criminoso da Virgínia é uma lição preciosa para entender dois séculos de política e ressentimento.
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*Folha de S. Paulo (25/4/2007)
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)