quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Episódios e Meteoros - 45

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(crónica publicada desde hoje no Expresso Online)
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O Terreiro dos segredos
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As arcadas, a abertura do espaço, o arco da Regeneração e as colunas voltadas para o rio definem o equilíbrio e a geometria mais modelares que conheço numa Praça. Se há forma e corpo para uma ideia de Iluminismo, misturado ainda por cima com a perdição de uma beleza em suspenso, é aqui que a encontramos. Neste locus da ordem e da delicadeza de contornos que é a Praça do Comércio existe uma memória do antigo Terreiro que era avermelhado, cheio de varandas contíguas e desalinhadas, permeável apenas às marés, ao grande torreão do Paço e ao ímpeto mercantil da lendária Rua Nova.
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Depois precipitou-se a tragédia e, à ondulação irregular da Ribeira das Naus, sucedeu a nitidez, a definição e o rigor das formas. Ao centro da actual Praça, D. José I aspira à idealidade de um centro e, para sugerir essa demanda meio imaginária, o cavalo de bronze levanta, com imprevista leveza, uma das suas patas. Na Praça, entre a visível nuvem do comedimento, há muito mais sortilégios do que se possa supor. Desde os acenos em matéria de Ode do Café Martinho da Arcada até ao cais do Sul-Sudeste bordejam mistérios, vogas marítimas e maresias mitológicas. Para Cesário, o absurdo desejo de sofrer provém desta beleza por decantar, algo veneziana, cheia de mistérios, sempre a rorronar por baixo da pele de tanta aparente geometria.
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Desde a cadência bachiana dos arcos até à música silenciosa que de noite nos empresta o amarelado das luzes, vagueiam sigilos, silhuetas imersas pela vertigem pessoana, alaridos de paquete ou navio galgando o grande rio das Tágides. A Praça do Comércio é uma imensa história por contar. Ampla como um salão de baile sem fim, só dali se tornam visíveis os anjos de Ulisses, quando abrem as asas em direcção ao mais antigo dos impérios: o das obras imperfeitas. É o metro adiado, são estacas lamacentas, é o dinheiro perdido, são colunas apeadas e é a estação ferroviária deglutida pela voragem. Até quando?
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Sempre nos habituámos a ver os poetas prestar contas. Nem que tais contas fossem malditas, ou tão onerosas quanto o nosso desemprego pessoano: essa quase desistência que convida ao laxismo e à alarve aceitação de todas as pragas. Ao que nunca realmente nos habituámos foi a ter que saber, parcela a parcela, nome a nome, ministro a ministro, qual o destino do numerário. Quais as responsabilidades e quais os montantes. O episódio, relembremo-lo, teve lugar há mais de sete anos. Mais precisamente a 9 de Junho do ano 2000.