sexta-feira, 20 de julho de 2007

Escavações Contemporâneas - 40


LC
O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Paulo Tunhas)
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"Paz em Cambridge*
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A Portuguese Murder, de Philip Papineau, é um excelente romance para as férias. É verdade que o título pode induzir em erro, já que nenhum dos personagens é português nem a acção decorre em Portugal. Também nenhuma referência é feita ao Professor Agostinho da Silva. Mas explica-se: a rua de Cambridge onde vivem três dos principais personagens do livro chama-se Portugal Place. Ou melhor, explicar-se-ia caso algum crime ocorresse ao longo destas trezentas páginas, o que manifestamente não acontece. Os habitantes deste romance são gente civilizada de várias raças e credos que ocupam o seu tempo falando de Wittgenstein, passeando de bicicleta e bebendo tímidas cervejas em pubs. Mas é um romance moderno. Fica-lhe bem um título inexplicável.

A única excepção a este tom comum das personagens reside nas duas irmãs, Sarah e Margaret: Sarah passa o romance todo a encher os pneus da bicicleta (o livro começa com ela em pleno exercício dessa actividade, por uma tarde fria e chuvosa, em frente à antiga casa de Muhamad Iqbal) e a dedicar-se a monólogos cínicos e obscenos, com o seu quê de delinquente ingenuidade, na veia dos da heroína de Story of My Life; Margaret é a única católica nesta história, e cita pelo menos uma vez em cada duas frases o cardeal Newman, além de se apaixonar por todos os personagens do sexo masculino com uma improvável e mal sucedida obstinação.

Mas são excepções. Como o autor escreve no prefácio, «trata-se de um romance sobre as condições emocionais da busca da verdade na juventude». E, consequentemente, grande parte do livro é ocupada pelas discussões entre David, estudante de Teologia a quem se poderia aplicar a descrição que Conan Doyle deixou de Mycroft, o irmão de Sherlock Holmes: «todos os outros homens são especialistas, mas a sua especialidade é a omnisciência», e Jeremy, o futuro médico, no qual não é difícil reconhecer a figura do autor. Quer seja junto às margens do Cam, quer passeando de bicicleta até Ely, quer ainda em conversa no pub, o comprometimento com as interrogações essenciais nunca os abandona, no que são acompanhados por vários outros personagens, dos quais é justo destacar o memorável Square, o eterno fugitivo da desgraçada Sarah.

O espírito do romance deixa talvez melhor apreender-se através de uma longa citação do penúltimo capítulo, quando Jeremy e David começam a perceber aquilo que o segundo define como «a natureza ilógica do preconceito da verdade»: «Jeremy deitou-se sobre a relva. Não se preocupou em escolher um lugar protegido do sol. No estado em que estava, precisava mesmo de encarar o sol de frente. Isso não o distinguia particularmente de ninguém, pensou, rindo para dentro. À primeira aberta, Jesus Park enchia-se de gente disposta a aproveitar tudo o que não fosse chuva. «É impressionante como à noite é completamente diferente», continuou a pensar. E então ouviu as conversas que vinham do lado do grupo de raparigas italianas que inundavam Cambridge pela altura dos cursos de Verão, e, por uma associação de ideias momentaneamente inexplicável, lembrou-se de Sarah e o seu coração experimentou uma amarga tristeza. «Como é possível que tenha ido para a cama com toda a gente menos comigo, que sou o único que a amo?» Por um momento odiou toda a gente: David, Square, Toby, Alfred e o paquistanês da papelaria da esquina. Mas uma leve brisa acompanhada pelo tinir de campainhas de bicicleta levou imediatamente para longe os seus dúbios pensamentos. Sentiu-se de novo mais fresco e descansado. O céu outra vez encoberto tornou o parque deserto. Foi quando sentiu uma mão pousada no seu ombro, e, para seu grande horror, ao virar-se descobriu que era Margaret, que o andava a tentar converter ao catolicismo por processos pouco ortodoxos. Trazia a Apologia de Newman debaixo do braço. Mal teve tempo para reparar no seu vestido lilás, já ela se lançara sobre ele e, quando a custo recuperou o fôlego, quase afogado no meio do lilás, ouviu a sua voz: «Não são legítimas evasivas, diz a Apologia». Jeremy ainda arranjou forças para pensar em Sarah e no seu impossível amor, enquanto a irmã desta o apertava com todas as suas forças e uma fé extraordinária; mas depois lembrou-se da natureza ilógica do preconceito da verdade e optou por uma conversão oportuna».

A Portuguese Murder não é certamente um grande romance. The Nature of Oblivion e Moral Debts, do mesmo autor, voam mais alto e com mais elegância. Em particular, em qualquer destas obras, os personagens são menos volúveis do que neste seu último livro. Mas talvez que a própria natureza do tema—«as condições emocionais da busca da verdade na juventude» — obrigasse o autor a essa espécie de debilidade que pervaga ao longo destas páginas. E essa debilidade oferece um encanto próprio, parente daquele que David evoca a Sarah: «Wittgenstein costumava vir ouvir música a esta casa. Sempre que passo por aqui tenho a ilusão de recuar no tempo, como por encantamento, e espero um dia poder cruzar-me com ele». O seu encanto é o do espírito do lugar."
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*O Primeiro de Janeiro, 12 de Agosto de 1990