quinta-feira, 3 de maio de 2007

Folhetim - 8

VANITAS
51, AVENUE D´IÉNA

por Almeida Faria
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Aí tive um vago vislumbre do esplendor daquela casa em vida do proprietário. As portas de espelhos lapidados – de dobradiças e fechos e puxadores amarelos como os frisos das cadeiras, dos canapés e cadeirões dourados nos mesmos tons que os apliques de três braços – ampliavam a estreita galeria reflectindo os motivos dos móveis, dos tapetes persas, do soalho embutido, num cruzar de imagens repetidas que me deixou meio perdido. Por uma dessas portas, à direita de quem chega, a governanta indicou-me um corredor dito de serviço, de chão axadrezado e muros e tectos forrados de azulejos branco baço, como num hospital, e onde outrora ficavam os quartos das criadas. Coube-me o quarto número dez, com uma sacada virada a poente, que me alegrou pela perspectiva de ter sol ao fim da tarde. Desfiz a mala, saí e andei um bocado para desentorpecer as pernas. Desconhecidos passavam por mim descontraídos, talvez por ser véspera de fim-de-semana, véspera de férias para alguns, verão para todos, dia longo. Na Étoile tomei um táxi para o Museu d'Orsay, onde queria revisitar o Rimbaud e o Verlaine em Um Canto de Mesa, e o retrato de grupo no estúdio de Manet. Mas em nenhum momento dei por este inteligente e culto cavalheiro.
«Já vê que não me intrometi, nem no Museu d'Orsay nem enquanto o senhor lia. Respeito aqueles a quem a leitura dá prazer, também fui desses. Em jovem diletantei em livro de viagens que Saint-John Perse elogiou, e o gosto de ler estará na base da minha obsessão pela Leitura do Fantin. Este Perse era bom poeta, creio, embora um tanto áulico de mais para o meu gosto. Conhece versos dele? Não? Nem são bem versos, são versículos em tom oracular, de fôlego oceânico, de uma eloquência quente, comovente, frases como vagas demoradas. Impressionaram-me. Em Exil _ onde havia curiosos jogos fónicos entre Alexis, um dos seus nomes de baptismo, e exil _ o halo das palavras valia tanto quanto o seu sentido. Talvez os poetas sejam todos assim, não sei, este foi o que eu mais li e sei que ele saboreava as palavras como coisas concretas, dotadas de espessura e peso. Tínhamos em comum esse respeito pelo concreto. Os estudos de mineralogia, de geologia, de ornitologia, sobretudo das aves marinhas, a sua prática de navegar, aliados aos seus talentos, fizeram dele um cantor do cosmos, do mundo imemorial, dos mitos, do ar, do mar, dos elementos olhados como se acabassem de nascer. Botânico minucioso, aconselhou-me quanto à flora a plantar no meu parque normando e depois da guerra perguntava-me se a alta sabedoria das minhas árvores _ era assim que ele escrevia _ fora poupada aos furores bárbaros. A relação dele com a natureza era muito intensa, mais ainda que a minha, e o que ele mais apreciava nesta casa não era a biblioteca, era o terraço por cima de nós, no último piso. Já subiu até lá? Antes da guerra, nos anos breves em que fui reunindo as minhas preciosidades nesta casa para melhor me rodear do meu passado, os faisões esvoaçavam no terraço em voos curtos, domesticados, por sobre as colunas e obeliscos, e as trutas nadavam à vontade no tanque ao comprido, onde a água saltava de repuxos e saía de bicas, como num chafariz. Ali conversávamos sentados, num recanto elevado do terraço, e Perse não era como outros poetas de quem se diz que são uns tímidos, uns sujeitos virados do avesso, Perse era mais que um conversador, hipnotizava quem o ouvia narrar estadas na China, contactos políticos e cenas da sua infância em Guadalupe, Pointe-à-Pitre, nas Antilhas."
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(continua)
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Próximo episódio: “Consta contudo que, antes da americana com quem veio a casar, foi homem de longas ligações amorosas. O seu fascínio pelo feminino nota-se em poemas que resistem a ser classificados, pequenas epopeias, elegias ou odes com algo de bíblico, de erótico (…)”