quinta-feira, 27 de julho de 2006

Uma guerra em tempo real?

LA Times
e
Ontem, o José Pimentel Teixeira do saudoso Ma-Schamba fazia eco, em comentário aqui no Miniscente, que tinha crescido entre “a venda do Moshe Dayan (lendária, pelo menos a venda, talvez a personagem) e o lenço do Arafat (menos lendário o adereço)”. Escrevia depois, com a sua habitual graciosidade estilística, que se lembrava “do telejornal (ainda do globo a circular no genérico a preto-e-branco)” que via em casa do seu avô paterno. Por ter nascido em 1954, acompanho em pleno o fio desse cronograma algo nostálgico: Nasser, Golda Mair, as gordas do Século e do Diário de Notícias (ninguém pronunciava “DN”), os “locutores” que, na televisão e na “telefonia”, respiravam as palavras uma a uma, os heroísmos, a saga da Guerra Fria e a ordem dicotómica do mundo (apenas no backstage). Entre a magnitude da emissão e a apertada normalização do auditório havia uma distância imensa, a maior parte das vezes povoada pela imaginação, pela dúvida pouco metódica, pelo solilóquio anónimo, pelo folclore, pelas “Melodias de sempre”, pela deriva passiva e, em alguns meios restritos (fica mal dizer isto em certos sectores), pelo agir político - e pelo rock. Não é inteiramente verdade que esta minha geração (existirá tal coisa?) tenha sido apenas - e redutoramente - uma escrava do salazarismo, do marxismo e da posterior ditatura do entertainment. Muita ‘terra de ninguém’ foi, pelo meio, fazendo o sentido que as coisas hoje têm, de tal modo que, vistos retrospectivamente, a revolução, o marcelismo, o salazarismo, os eighties e o high-tech contemporâneo constituem, nos nossos dias, territórios cumulativos que se equivalem e que acbam por perspectivar, de modo (aparentemente) pouco abismado, o presente.
d
No entanto, na última década fez-se sentir uma diferença fundamental: a interacção. Não apenas a emissão perdeu a sua magnitude e se pluralizou, como os auditórios se aproximaram e, por vezes, passaram a coincidir com a própria emissão (quando aqui escrevi, entre Abril e Junho, “O Tom dos Blogues”, referi-me com assiduidade a este aspecto nevrálgico). Os blogues são interfaces que estão na linha da frente da nova interactividade global, de tal modo que há já quem diga que a guerra em curso no Médio-Oriente é “The most blogged war”. Vale a pena dar uma volta pelos blogues portugueses, que se mantêm particularmente activos neste momento, para verificar esta realidade e esta tendência. Não é a discussão que ‘resolve’ a guerra e nos devolverá a paz, embora, tal como outras linguagens noutros conflitos e épocas acabaram por ter influência no decorrer dos acontecimentos (Vietname, por exemplo), também o ‘agora-aqui’ que os blogues veiculam - instante a instante – possa vir a ter impactos hoje ainda pouco antecipáveis. Seja como for, a interactividade, a disputa de argumentos, a discussão aberta e livre mesmo em condições difíceis (no teatro da guerra) são instrumentos de uma novo tipo de democracia que está a germinar no mundo. Já lá vai o tempo dos heróis e das causas que quebravam estriadamente a sociedade em dois rostos petrificados. Os novos maniqueísmos tendem já a conter em si sementes de dúvida, de pluralidade e de inquietação (com excepção, talvez, para os fanatismos religiosos). No velho noticiário que dava a ver “o globo a circular no genérico a preto-e-branco” estavam ainda à mostra as raízes de uma sociedade que sonhava e falava através da espessura das tradições orais. A guerra, nesse tempo, era ainda um diferido distante que ancorava nas lendas e narrativas. A guerra hoje passou a ser um vórtice, ou uma estesia tecnológica, que está dentro da nossa casa (e que está dentro do frémito compulsivo do nosso corpo).