quinta-feira, 17 de novembro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel - Episódio 34
Terceira Parte: O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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Está a ver, minha filha, tantas vezes a dizer que a vida não se compunha! A dizer que podia ter tido uma vida de luxo, é verdade, mas que depois tinha ficado viúva muito cedo, não é assim? Ele, esse saudoso Adão, era bom homem, bem parecido, uma bonita figura. Mas... ter sido seu namorado em jovem já é um orgulho e um privilégio que deve até agradecer a Deus. Mas, sabe, Deus escreve sempre direito por linhas tortas - eu que o diga! - E a felicidade, minha filha, tinha que acabar por bater-lhe à porta. Não é por acaso... o senhor Abel é um sujeito que, embora humilde, é tranquilo, discreto e deve dar-lhe muito carinho; Dona Olga abre então a boca e descreve uma larga baía com os lábios distendidos, hirtos, expelindo, em breves segundos, um estrídulo ai ai, ui ui.
Que bom que deve ser... ter um homem em casa, eu bem me lembro como era antes do Armando ter desaparecido em África, Deus o guarde e tenha compaixão de nós todos! Mas não me posso queixar, embora o que mais me custe, hoje em dia, seja a vista e o ouvido. Mas a gente distrai-se, há sempre coisas que fazer, cortinas, canjinhas, a paróquia, os fofos de Belas; o que é preciso é saber fazer bem a massa e polvilhá-la com açúcar bem granuladinho, também costuma fazer, não é? A minha mana, a sua vizinha, diz-me que sim e a Leonorzinha é muito jeitosa; pena é que depois do vosso... enlace, Dona Olga abre agora os olhos, embaraçada, como a não querer sublinhar a ausência da palavra casamento, - mas a Igreja até já protege o namoro e as relações de facto dos mais novos, mesmo sem matrimónio, não é assim? E os leigos já fazem, hoje em dia, quase o mesmo que os padres dantes aprendiam por si sós, e eu, sabe, minha filha, no fundo, até era capaz de admitir que nós, mulheres, pudéssemos dar missa. Não pense que sou assim tão antiquada, pois a idade cria caruncho e saudade do tempo em que despertávamos para certas coisas, mas agora os tempos mudam muito depressa, é tudo a correr, e a minha mana, pois, coitada, desde que a Leonor deixou de estar só, digamos assim, não vai já visitá-la como ia dantes e isso para ela até era importante.
Sabe, a minha irmã nunca conheceu homem, e agora Dona Olga colocou a mão sobre a boca e evitou que os maus-olhados e os espíritos mais aziagos se aproximassem do hálito de tais palavras, não vá o diabo enredar as suas histórias onde menos se espera. Bom, mesmo bom, é durante as longas invernias, ter ali ao lado um homem e, à noite, no tempo das constipações, servir-lhe um chazinho e umas torradas com aspirina e muitas colheres cheias de mel de favo é coisa que faz sempre bem, embora os intestinos, está a ver, isso é que é o pior. Gosto de a ver assim, rosadinha, composta e de novo a dar aulas sem aqueles pesos, aquelas dúvidas em que andou aí mergulhada. Pois é, pois é, eu apercebi-me de que a Leonorzinha andava mal; não andava mesmo nada bem, até pediu um atestado médico, ai, ai, ai, o que nós nos admirámos com isso, não fosse a voz esclarecida e sábia do senhor doutor e juro que até tínhamos, eu e a minha mana, pensado que a doença era mesmo coisa a sério. A voz é subitamente mais secreta, escondidinha, cheia de gafanhotos. Andar aí com dúvidas a mais não é lá muito boa coisa, não.
É que a Leonorzinha, nessa altura, andava tão branca, até emagreceu e pouco aqui aparecia na esplanada. Mas não há mal que não venha por bem e a menina, porque é boa moça, generosa, sempre pronta a ajudar e por isso… mesmo tinha que atrair até si aquilo que merecia; digo-lhe, minha querida, que eu sempre tive essa intuição, sempre a tive. Bem lhe disse, hoje e tantas vezes antes, que é por linhas tortas que se escreve a felicidade, não é assim? Leonor respondeu finalmente que sim e espreitou o relógio. Abel não voltara ainda à praça e há já meia hora que o médico e os restantes convivas tinham ido para casa. A tarde de sol e céu azul prometia. - E onde foi a sua irmã? Foi a casa da costureira que, pelas minhas contas, já cá deve estar. Foi o seu..., o seu Abel - sorrisos e cochichos - que a levou de táxi ao curandeiro do Sabugo, não sabia ?... Até mesmo o senhor doutor lá vai. Quem parece que não vê com bons olhos a ida do senhor doutor ao Sabugo, sabe quem é, sabe? Pois, pois, é a mulher dele. A Dona Isabel.
Sabe, é uma senhora muito difícil, sempre assim foi, e faz a vida muito negra ao nosso doutor, isto é... só aqui mesmo entre nós, eu até penso que ele... se fosse mais novo havia de repensar a vida. Mas já se sabe, dantes a educação era outra coisa e as alianças pesam, são bodas de ouro e de prata e por mais que se saiba que não há amor e que não há verdade, o certo é que na minha geração ninguém se atreve a divórcios e coisas dessas. A si, Leonorzinha, ainda a percebo. Repare, com quase trinta anos na altura desse pavor do 25 de Abril, é normal que se tenha separado. E foi o seu único casamento, pois claro. Deve ter sido uma experiência penosa, difícil, mas percebe-se. E os tempos também se davam a isso nessa altura, digamos que é até verdade, vistas as coisas já com uma certa... distância. Agora comigo, ou com o senhor doutor... não, não, não pode ser. Até lhe digo mais - Dona Olga como que deita o cabelo grisalho e o nó de vison da gravata sobre o desprevenido colo da professora - Olhe, o senhor doutor... conheço eu bem, há muito, muito tempo. Ah, Ah! não core, não core, Leonorzinha, que não é nada disso que está a pensar... isto é só a gente a falar. Só isso.
Bom, minha filha, tenho que ir andando, Tenho tanta coisa para fazer! Vou começar por ir ao pão, depois passo pelo senhor Figueiredo a ver se ele me arranja um peitinho de frango ou coisa assim do género, porque tenho andado com umas náuseas, à noite, umas sedes, umas coisas que nem imagina. Ainda vou aproveitar a luzinha do fim da tarde para coser as bainhas ao cortinado da dispensa e, depois, não posso perder a telenovela das sete. Também está a seguir, não está? Ai é? Olhe, eu não, vejo essa e a das nove e meia, faz parte do meu dia a dia. Ah... é verdade, a minha mana disse-me que a Leonorzinha tem lá em casa umas revistas espanholas de decoração, será que me podia emprestar uma que é, segundo julgo, acerca de cobertas... dessas que se usam para proteger os sofás. Obrigada, obrigadinha. Dona Olga levanta-se, cobre os mil anéis reluzentes com as luvas de cor pastel, fecha o casaco, apara o cabelo grisalho muito bem penteado, recebe das mãos de Leonor a sombrinha e conclui, no momento em que vê na sua frente o imóvel jardineiro da Junta freguesia: Ai filha, tenho que pedir ao homem para ir lá ao meu quintal. Tenho umas begónias e uns arbustos para desbastar, o limoeiro também está a morrer e, depois, é tanta erva daninha a aparecer por todo o lado que eu já nem sei o que fazer à vida!
Dona Olga despediu-se finalmente de Leonor que voltou a olhar para o relógio e seguiu logo para a escola. Até que, em frente dos jardins da Vila Jacinta, o telemóvel tocou e a professora foi levada a exclamar um emocionado - Olá Luísa! Ah! Desculpa não te ter logo reconhecido. Como estás? E a tua filha? Ah é? Uma reunião de amigos... mas fazes anos? Sim, sim, entendo. Olha, tenho todo o gosto e sabes... tenho grandes notícias. Sim, andou mouro na costa. Não, não, já acostou e aportou como deve ser. Sim, sim, como deve mesmo ser. Não, isso não. Sabes, eu já tive um divórcio e prefiro assim. Aliás, hoje em dia, já não é problema para ninguém. Na escola e entre as minhas amigas, mesmo as mais idosas, é coisa que toda a gente já aceita. Sim, estou bastante feliz. Tive aí, há uns meses, uns períodos difíceis... mas isso é coisa que já lá vai. E tu? Percebo, percebo, Mas ainda bem, pode ser que, desse modo, atinjas o que queres, não é? Está bem, está bem, eu depois telefono-te. Olha, e fico muito contente por te teres lembrado de mim. Sim, sim, talvez já há uns bons cinco anos que não nos vemos uma à outra! Um beijinho também para ti, clic.
Leonor andou depois até à casa das bonecas e, já na rua da escola, não retirou os olhos do telhado muito inclinado, quase germânico ou sintrense, que se ergue ao fundo, esbatendo-se no claro claríssimo azul do céu. Leonor vai tranquila, contente com o convite, - a Luísa, a Luísa dos tempos em que comíamos na cantina da câmara, em Alcântara. Depois a coincidência de sermos ambas Evas do mesmo Adão que Deus levou. A sorte que teve na vida... com o segundo casamento e a herança que ganhou do galo cantor é que são a minha secreta inveja. Quem me dera não ter que dar estas aulas e andar de iate nos mares do sul! Quem me dera.
À frente, impiedoso, o rosa esvaído das paredes é esventrado por janelas graves e pelo muro gradeado, vigiado por um guarda minúsculo com sardas e óculos quase redondos. Por dentro, no jardim centenário, várias dezenas de crianças brincam com balões de cores vivas, cheias, exuberantes, enquanto a colega de turno de Leonor, alta, gorda e quase já na reforma, agita os folhos da saia comprida, arrastando o ocultado bigode para cima e para baixo, tal como o movimento da corda que, de um dos lados, ela mesma segura. Toca a sineta e tudo recolhe subitamente para a sala de aula onde, no topo, ainda esmorecem os sombreados dos antigos retratos de Salazar e Caetano.