sábado, 5 de novembro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 22
Segunda Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Até que no início de uma noite de Verão, em Cascais, num dos paredões que as antigas falésias espalharam entre o que é hoje memória de limos e alguma poluição ao vivo; até que nessa noite, antes de um jantar combinado para mais tarde entre gente do ofício e algumas meninas, Caim e Sara entraram entre as ondas da baixa maré e não resistiram a nadar durante alguns minutos. O mar do Verão é esse fogo do nascimento revisto e pressentido a bordo da pele, do corpo livre, hábil e leve, entre a espuma das ondas e o flanquear dos membros; é assim, quando Caim se deixa boiar arrastada e lentamente e é também assim, com o mesmo repouso e ânimo, no momento em que Sara, mais ao longe e de bruços, agora avança entre a impulsão das águas e a sombra das constelações que cobrem o ar morno e denso dessa noite. Até que Sara deu algumas braçadas e fez lembrar a Luísa dos namoros antigos, talvez isso, talvez não; mas a verdade é que, quando surgiu face a Caim, ela, de pestanas e olhos molhados e muito abertos, era como o fetiche da sua Sharon Stone num esplendor acrescido e luminoso; bela, sensual, retirando com vagar as calcinhas com as pontas dos dedos e, por zombaria lasciva, atirando-as para cima da cabeça de Caim.
Ouviam-se risos por sob a agitação das águas, restos de algas entre o borbotar dos lábios; ouvia-se o distante gorgolejar dos braços presos às mãos, o marulhar dos seios descendo pelo peito até à coxa lisa e frondosa por onde penetraram pontas de dedos, línguas e bolhas e mais bolhas que fervilharam à superfície do mar sempre quente e agitado entre vaivéns e balanços repentinos, suspiros e sussurros que pululavam e formigavam entre as peles de Caim e de Sara. Parecia o eterno fim de um jejum que nunca existira, o record premente e perpétuo da entrega entre os dois nesta noite de Verão, sonhada apenas para o repentino despertar da carne. A água enxameada, mexida pelos corpos; a mão de Sara aberta nos ombros de Caim agitando-se entre água vai e água vem, à tona e por baixo, anfíbia e larga como as convulsivas plantas dos pés aos saltos; até que, nessa mesma noite de Verão, aconteceu o nunca visto entre Caim e Sara. O primeiro chegara prematuramente ao fim da viagem e o secreto líquido espelhara-se, branco e espesso, na noite das águas breves, transparentes, estivais. E o tédio quase invisível a pairar no olhar parado e estático de Sara, subitamente apeada da sua ascese; e o arrebatadamente perdido, revoltado, a pairar no olhar de Sara que agora brindava agressiva o pálido e descorado Caim.
Passados segundos, Sara dizia a Caim que a deixasse, que queria estar só. E Caim, silencioso, convicto de ser aquela a primeira vez em que não fora homem de jeito, perdido na mácula máscula do seu porte, diminuído face à rainha insaciada das sereias, a olhar para o pendente, limitando-se a exprimir um sim gestual, rápido, conciso. Assim ficou com a água pela cintura, recolocando os calções no seu sítio, perdendo a vista nas candeias ondulantes das traineiras e, por trás, até agora ocultado, o ruído da Marginal cheia de carros e luas navegantes; cheia de calor, langor e dessa festa irreal que é feita do delírio das noites de Verão. No areal mal iluminado, Sara vestiu o vestido longo sobre o corpo nu, fechou alguns botões e correu, correu, correu. Terá corrido quilómetros na senda disso mesmo, dos quilómetros. E depois? Depois, às dez da noite, apareceu no restaurante de olhos sempre muito abertos, cabelos atados e a testa talvez mais franzida, porosa, distante. A noite passou e a ela não mais voltámos, até porque as margens do Tejo separaram Stone e Caim, nessa distante calenda de eclipses e infortúnios passageiros, até ao nascer do dia seguinte. É o que vale, quando se mora em Lisboa e em Porto Brandão ao mesmo tempo.
E Sara sonhou, nessa noite de Verão, na Rua das Flores:
Era de lenho de sândalo, cuniforme e muito claro; e só se estreitava na poderosa glande por onde desflorava nuvens até suspender-se em frente das águas-furtadas, diante das luzes foscas em que me revi de boca aberta. Era a chuva do mundo que me batia à porta e com ela, sob uma algema de ferro e fuligem negra, vi-o todo atado pela cintura com cabedais do exército russo e, mais abaixo, artelhos e canelas presos com fios férreos e escuros. Pelo traseiro entrava o báculo e o binóculo do bispo que, em plena clínica, colou os restos da orelha à pele da perna e depois me levou ao Vaticano para que eu aprendesse o que eram as meias roxas que no kamasutra se atam até à raiz das coxas, sob águas quentes, em Cascais, ou talvez em Numancía. Não sei, esqueço tudo e continuo a olhar pela janela, de onde sempre esteve suspenso o imenso falo de prumo feito de madeira de sândalo e, comigo, pondo-me os braços em volta do ventre e da cintura estreita, vieram dois bielorrussos negociantes de cera e de miúdas baratas, porque já apanhadas pelo clima e pelos males de pele e dos planetas, mas que servem para fazer dinheiro no lado de lá do rio português de Lisboa, onde existem tartarugas, comboios voadores e correctores de seguros, para não falar já do chefe do sistema. Sobre a máquina azul da Rua das Flores, mandei então as miúdas tomar os comprimidos e, sobre o avantajado selim de cetim, sentaram-se, uma a uma, sobre o membro de plástico rijo, fazendo o motor de roldanas andar o dito volume cilíndrico até às profundezas do gomo líquido, que é a janela do corpo das putas como eu que Deus pariu. E assim me olhava o rei e os próprios meninos de Java que tinham, todos eles, largos montículos, fortes cômoros e tufos descomunais por cima dos tomates, para que eu me deitasse e depois fugisse no caso de ele - aquele masmajão, aquele estrajacão, aquele biberlão - se vir à pressa, a correr, como não aconselham e ditam as leis dos santos mandamentos que vi escritas na glande que paira em frente da minha janela catalã. Era o Gaudí, era o gato selvagem e gordo, eram as pedras redondinhas, molhadas em caldo de galinha e em água do mar coberta de leite, ou do secreto líquido da lava incolor e quente, quem seria então? Era a glande pendurada das nuvens, feita de sândalo e por que não de cânhamo, tanto faz, desde que entre e prima até ao fim a doce flor líquida de Marte, a combatente, a resistente, a desejada até pelos paneleiros da Rambla. Quando os via de olhos quase verdes e pele macerada, eu fugia em camisa de dormir e corria, corria, corria. Quilómetros e quilómetros. Contra tudo e contra nada, pois apenas queria vir-me e até nem é por acaso que me chamam Stone, a bela, a luzidia, a maior de todas; a rainha das putas, das luzes e das sereias. E agora, será que ele aguenta?, Perguntei ao meu espelho da glande suspensa face à janela catalã; e ele, o dito espelho fálico e amigo respondeu: são ursinhos, são ursinhos com o dedo no cu.
E Caim sonhou, nessa noite de Verão, na ruela de Porto Brandão:
A cauda do imenso felino deu a volta ao corredor do Hotel Oriente e eu, a sós, depois de sair da tumba, levantando voo com óculos espelhados, enormes, cheios de alergia aos bichos verdes escuros semeados no pelo da cauda desmedida do felino que, ao colo, do mordomo viril e déspota, me impunha silêncio e complacência diante da grande fada Luísa com cara de baleeira azulada; no momento em que, por trás dos óculos espelhados, ela surgiu toda nua para me tramar a cirurgia, o sexo, a noite e as putas que me pôs à volta e por dentro do frasco de tinta-da-china onde passei a viver, perto de Almada, entre cacilheiros e cheiros a estorvo, grelos e espinhos do Mercado da Ribeira, lugar aliás preferido da minha avó Alba que era a chefa e da minha mãe desconhecida que era a sereia desejada e agora irreconhecível no fim da manhã deserta; qual céu suave e largo sobre a pradaria do sul, cheia de cactos e coqueiros, onde a aurora boreal, um dia, reflectiu sangue da guerra do Kosovo e, por isso mesmo, os pássaros cantaram durante horas na gaiola de Barcelona. E se eu voltar a morrer, será que vivo sempre e sempre outra vez, como Deus? E se eu entrar na minha mulher Baleeira Luísa e Arlete será que já não me venho sempre e sempre outra vez como aconteceu agora na Califórnia divina onde os Deuses, de tanga e sem calcinhas, tomam banho depois de fazer surf sobre as caudas dos felinos majestosos que pertencem ao médico-chefe da PSP? E se em Monsanto me mataram como vou eu sonhar o mar, após o espanto da vida vivida pela segunda vez em segredo estreito, tabu, ou não será que, um dia, eu não terei de contar isto tudo, sem papas na língua, a um auditório inteiro via CNN? E o que é que vai acontecer dentro da banca de cabeceira, quando a cabeça das russas me aparecerem, ainda frescas, dentro do bacio, apenas porque eu não paguei os impostos ao sistema? E se eu fugir de comboio até Madrid para mudar de cara dentro de um graal de ouro, parecido ao do broche da Sharon Stone que adoptei com os boxeurs, o que é que acontecerá ao punk do Maremagnum e ao uruguaio desdentado do Peñarol, digam lá? Eu não sei responder, mas quando pensei terrivelmente acordado que não sabia responder, quem me apareceu a bater à porta foi um senhor de batina negra que, depois de sorrir por compaixão, logo abriu a portinhola e me mostrou um pepino gratinado em vez de pixa, um papo-seco sem miolos em vez de pau, um ramo de esteva e pó em vez de verga, um rol de papiro cilíndrico em vez do sardo, um manso fole de plástico insuflado em vez de tronco, um feixe de centelhas chispas e ginjas em vez do gargalo de aço, um arrumo de argila estilo zepelim em vez da rija vara, um jornal enrolado em vez do bolo finto de carne tesa, um pendura mole e débil em vez de um caralho de jeito, um ratinho puído e domesticado em vez de uma estaca robusta e de gume, enfim, uma amostra de sexo em vez do menir estriado e duro que o felino tinha dependurado sobre os céus e a terra, ámen.