domingo, 20 de novembro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 37
Terceira Parte – O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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Dei boleia à Leonor. Era a segunda vez que vinha a Lisboa desde que a vida me fez ser Abel. Levei-a ao Campo Santana e, depois de a deixar do lado do Patriarcado, dei a volta ao jardim e estacionei. Do outro lado, a uns cinquenta metros de distância, vi o corpo talvez mais esbelto e alto de Luísa. Vinha com saltos muito altos e uma espécie de vestido azul-escuro com rendas claras ao longo dos ombros. Luísa, a abandonada, a falsa viúva rica. Deu-me vontade de rir ao revê-la, ali, pela primeira vez, ao fim de tanto tempo. Eu tirava e punha os óculos escuros, baixava e subia as palas do carro, agitado que estava com estas coincidências destemperadas. A Luísa. Descia comigo pelas escadas rolantes do Rossio, ouvia-me cantar com voz de tenor nas caves de Linda-a-Velha, voava dentro das ondas como uma sereia. A Luísa. E agora estava ali, sentada mesmo ao lado de Leonor, a antiga filha do solstício. Se as duas soubessem, se imaginassem!
Do outro lado do jardim, frente a frente, esboçavam sorrisos, gestos e uma conversaria de arrazoados sem fim. O amor é como o sabor a ostras, uma impressão desalmada que arrebata qualquer um. De barba mal feita, mão no queixo e riso desenfreado, contido, Abel pôs de novo o carro a trabalhar e desceu à avenida. Que saudades de Lisboa, outra vez! Por que tenho eu a mania de que me possam reconhecer, se no tempo do Caim isso não acontecia? Intuições, meu nitrato de sódio, intuições, dizia-me a Arlete com a sua voz batida, trilhada. A desgraçada veio das brenhas e teve azar. Onde morará hoje? Parece que foi agora que entrei na casa da Bica e ela queria pôr fogo naquilo tudo, chegou a encostar o isqueiro à cortina e depois à toalha junto do fogão. Tive que andar com o cobertor na mão a apagar o perigo. Dizia que eu não lhe ligava, que não lhe passava cartão, que no fundo se sentia apenas uma boa puta de alterne. Tudo isso foi já no tempo do ‘Limões e Biliões’. E como ela tinha razão.
Belos tempos, belos tempos, dizia Abel diante dos semáforos dos Restauradores, do Avenida Palace, da Estação do Rossio. E, de longe, a acenarem com lascívia, aqueles lábios muito vermelhos, encorpados, atiçando murmúrios e sons; gestos depois reunidos em palavras, meio acabadas e articuladas com demorada languidez: Leonor, Luísa, amor, - diria o meu fado. E deste modo o fui cantando pela 24 de Julho, olhos postos no sol e na mais remota lembrança, mergulhado que ia também no saber do acaso e na doutrina dos desacertos, senão mesmo na instrução perdida da felicidade:


Leonor Luísa Amor
Pelo vosso coração
Canta a minha dor
As rosas desta visão

Leonor e Sara Amor
Pela vossa felicidade
Canta este meu ardor
A flor de lis da cidade.


Passei Alcântara e, de repente, decidi seguir ao largo das águas. Vi a foz do rio, Algés, o Bugio, Oeiras, Estoril. Pena é que a minha voz de Adão se tenha quase perdido, depois da primeira operação. Pena é esta ruína que eu sou. E vi Carcavelos, S.Pedro e o azul sempre azul. E vi fados nesta cor de mar, de que foi feita a excitação das minhas vidas e também o furor deste momento de súbita felicidade. Vi coisas que não cabem em quadras e vi vontades audaciosas de ser outro, outra vez e sempre; fosse quem fosse que não eu mesmo, Adão, Caim ou Abel. Por dentro, sentia que morria e vivia sem nexo, mas, nesse bate bate, nesse alarme bizarro, era absorvido pela mesma canção, pela mesma intimidade e pelo desejo. Sabor a ostras, a amazonas perfeitas, a seios de ouro dominando-me o destino. Até que apareceu S.Pedro, Estoril e Cascais. estaciono, paro, procuro uma lista telefónica e descubro por fim o verme do apelido da viúva rica, a Luísa infiel, a Luísa maldita. Afinal, é mesmo ao lado da Praça de touros. Circulo e, de novo, me advém a rebentação, a areia, o céu, a natureza em rocha e o mar fundidos para sempre. É como se na minha frente surgisses e tivesses os lábios sempre vermelhos, encorpados, ateando sussurros, sons e acenos reunidos em palavras articuladas com demorada lascívia; são palavras líquidas, arrastadas até ao meu ouvido que já não ouve e apenas te olha. Mas eu não te vejo o rosto, nem o apelo que me lançarias. Onde estarás? Tão longe. De onde virás? Leonor, Luísa, estou perdido entre vidas vividas, cruzadas e tanta memória trocada, truncada!
Paro o meu táxi estrategicamente e espreito para a grande casa onde mora Luísa. Não estarás, Luísa, eu sei, mas vejo uma empregada a limpar os vidros; vejo cães que ladram atrás dos portões e das grades; vejo sebes densas e a cor rosa clara que faz esquadria às portadas das janelas; vejo antenas, câmaras de segurança, telhas com clarabóia e o alarido do vento do Guincho. Vejo tudo subitamente. É como se conhecesse de cor o leme da felicidade e nunca o tivesse partilhado. Vejo a vida toda, subitamente. Onde estás? Tão longe. De onde virás? Leonor, Luísa, estou perdido e rio-me alto, muito alto. Rio-me de todos os cenários que a vida, hoje mesmo, me deu a ver, a conhecer. Sim, onde estarás? Pergunto eu e a mulher, impassível, continua a limpar os vidros com mãos de ovareira, e as sebes a ondular na brisa e, por cima, a clarabóia a reflectir a antiga luz desse mar tenebroso e belo que me faz lembrar Banguecoque, Djibouti, Colombo, o Pireu. Ó alma incendiada, por que não consigo saciar tanto desejo, sem nome, sem corpo, sem destino? Onde estás? Donde virás, neste final de dia sem qualquer história? Que me acontecerá no termo de mais uma vida? Por que perco eu, afinal, o próprio amor pela vida? Porquê? Por que trevo de quantas folhas?
Estou de novo na marginal e vou pelo Guincho, Cabo da Roca, Colares, Sintra; vou pelas montanhas do início do mundo. São elas que protegeram, há muito, o labor indómito de Ulisses. São elas que me deram pousada e horizonte nesta terceira vida. Para onde irei? Era como se chegasse ao palco, os holofotes já acesos, as bancadas cheias de uma multidão incinerada e eu a correr, a correr; pouco depois, apareço frente às câmaras; pisco os olho às produtoras, belisco o rabo à anotadora, abro a boca, os braços, os olhos e puf puf puf, em directo para o país todo, são vinte horas certinhas; e hoje, amigos, depois das notícias do mundo, o tempo e a música; o ritmo e o movimento; você já sabe que não é apenas espectador, é sim o meu maior e melhor amigo; amigo íntimo, companheiro de jornada, luz desta luz que não é palco, nem fingimento; é vida! Sim, sim, a sua vida é a minha vida. Eu sou a sua vida aí em casa, na sua casa e você está aqui como se a sua vida fosse este show! Eu sou a empatia e a simpatia que é só sua, afinal, aqui e hoje, neste ‘Limões e Biliões’! Hoje, meus amigos, sorteamos quase cem mil contos e dois BMW... da série que você vai, desde já, adivinhar. Depois das onze horas, virá o desporto, a entrevista, o universo VIP e a carolice do Hertzan-BIC para que haja riso, riso, riso. Curva à esquerda, curva à direita, e o carro a subir à vila velha; bons tempos em que o eléctrico funcionava e tu, Leonor, dançavas com os teus lábios nos meus, por cima desta névoa rasteira até ao Palácio da Pena, ao céu. Onde estás, donde virás? Diz-me. Porquê eu?
Diz-me. Silêncio, o doutor avançou até mim e disse-me como se fosse pecado - São dois corações, senhor Adão. Sim, é melhor tirar um, nunca vi nada assim. O homem tinha a bata branca congestionada, manchada de sangue escuro, mas estava branco como o deserto e olhava para mim com cara de terrorista, saqueador de bruxedos ou de impropérios à solta. Eu, José Adão Ulisses Ferreira, sujeito a isto tudo? Ó senhor doutor, desculpe lá, mas por que é que a enfermeira ficou mal disposta? Não, não se pode dizer ao país. Quer perder o emprego, quer? Veja lá. Portugal não pode passar sem si, sabe? Você sabe isso muito bem. Mas porquê esse ar de carniceiro, será que me tornei em tuberculoso sem cura? Terei peste suína ou outra qualquer? Avance-se com a operação. Claro. Claro. Para a faca. Porquê eu?
Fiquei ao longe, muito ao longe, era a anestesia. Maus augúrios, fios lentos desligando-me de vocês os dois, vermelhos, sim muito vermelhos e cheios de batom; esses lábios vermelhos, encorpados, ateando sussurros, sons e acenos reunidos em palavras já sem sentido, articuladas com demorada lascívia. Eram palavras líquidas, arrastadas até ao meu ouvido anestesiado que já não ouvia nem escutava. E depois? Acordei, é cedo, muito cedo ainda. A vida está por um fio. Está? Está? Ninguém responde. Tento telefonar para Barcelona e ninguém atende. Hei-de conseguir, hei-de conseguir. Chego a Sintra e viro na direcção de Belas. Vou aproveitar para descansar. Sinto-me atordoado, a transbordar de memória, de mim. Farto da vida. Segue-se Pero Pinheiro, passo pelo campo de golf, pelo Sabugo e dirijo-me finalmente a casa. Subo as escadas, atravesso a malfadada cozinha e vejo-me a correr, desvairado, até às águas-furtadas. Parece que nunca saí daqui em toda a minha vida. Não, a Leonor hoje regressará da visita à Luísa, não da escola. Não te enganes Abel, Adão, Caim. Não te enganes, vê lá no que te metes. A vida talvez esteja mesmo por um fio. Onde estás? Estás Longe? O que me terá hoje acontecido?
A quem é que tu perguntas isso tudo? Não sei. Deixem-me mas é olhar pelas vidraças das águas-furtadas e sonhar.
Ao menos isso, sonhar.