sexta-feira, 25 de novembro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel – (último) Episódio 42
Terceira Parte: O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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A escada rolante da estação de Baixa-Chiado é imensa, branca e bela. Sai-se à superfície como se se tivesse saído de uma visão luminosa do inferno de Dante. Segue-se a Brasileira, a estátua do poeta, o Camões em obras e depois a mais autêntica via de Lisboa, a Rua do Alecrim. Por ela, o destino da cidade se une ao Tejo, o que geralmente é coisa ofuscada, diluída, que se encontra velada pela suave roupagem das colinas da cidade. Enquanto desce a rua, Abel relembra, por secretos augúrios da memória, a cor avermelhada dos céus da noite. A aurora boreal do longínquo dia em que nasceu, como lho contara a avó Maria Alba, e os outros dois céus inauditos que o fizeram ser, por sortilégio, primeiro Caim e agora Abel.
Febril, nervoso e quase já esquecido da súbita reminiscência, Abel quedou-se subitamente imóvel, por instantes, nesse momento preciso em que acabava de descer o plano inclinado e luminoso Rua do Alecrim. E agora? Pela frente, apenas o Tejo e nada mais. Nada mais me resta. Tudo o mais é desaire e esquecimento, talvez assombro. Abel sentiu então uma desmedida vontade de juntar o seu destino às águas do Tejo e nelas desaparecer, cruzando o seu caminho com as tentações de Lisboa, de Santo António e dos seus fados de vaticínio irreal. Mas os passos venceram a contenda e Abel voltou a andar. Como um autómato, desceu a rua com leveza até quase se abeirar do Cais do Sodré. Povoado por sinais contrários, mergulhado em desejo e terror, Abel tanto se sentia acossado como herói. Por segundos, voltou a encarar o panorama, os vultos a silhueta de bronze do Duque da Terceira e, para além do rico empedrado da praça, o próprio rio, as suas margens, a maresia, a incerta névoa fluvial.
Abel terá percebido nesses segundos o que o poeta quereria dizer, ao contemplar dali, sem passado nem futuro, toda esta urbe esfumada num autêntico desejo absurdo de sofrer. Confrontado com tais sombras e bulícios interiores, Abel contornou os quiosques dos jornais, passou pela agência de viagens, atravessou a avenida e acercou-se da estação. Que fazer? Abel encolheu os ombros e, sem medir rumo e leme, acabou por se sentar na última das esplanadas ribeirinhas onde o destino, sempre ínvio, ainda permite que se visione o que resta da antiga e nostálgica Doca de Abrigo.
Daqui já partiram os vapores ditos lisbonenses e, na minúscula doca, recolhiam-se, em tempos que já lá vão, embarcações de pesca de mastro branco e altíssimo, ateadas por cordas, correntes de metal e deslumbradas memórias. De todo esse espectáculo, Abel apenas descortinou, ao longe, sobre o pontão, um par de namorados que continua a abraçar-se sob a ligeira neblina que envolve, ao longe, a Lisnave, os braços dos guindastes, o arcaboiço metálico e escuro das ancestrais naves de sonho. Depois, chegou a imperial bem tirada e, ao mesmo tempo, aportava na gare marítima um cacilheiro carregado de pneus cor-de-laranja que mais pareciam globos armilares do antigo império. E foi nesse momento, após um último olhar para a outra margem, que Abel sentiu uma desmesurada necessidade de falar, de contar, de se expor fosse a quem fosse.
Na mesa ao lado, estava já sentado o desconhecido senhor Zorba, entretido que estava com o seu silêncio e com a textura negra da Guiness. A conversa iniciar-se-ia pouco depois e foi então que Abel sentenciou a sua primeira frase. A tal frase. Disse Abel: “Não tenha medo, mas o que está à sua frente é um homem que já viveu várias vidas e que agora se transforma em luz”. Zorba intrigou-se, mas ouviu; percorreu com Abel o percurso da 24 de Julho até às Janelas Verdes. Aí apareceu Isabel, depois a Júlia e a Dona Joana já em Santos-o-Velho. O resto é conhecido, pois o grupo foi-se alargando e, com ele, a própria história; surgiu o senhor Gouveia na D. Carlos e, perto da Rua Nova de S. Bento, todos os restantes: o senhor deputado, o senhor professor de comunicação - o mais sisudo e calado - Lopamudra de Vidarbha, Chico e Sara de Belém e o sr. Brihadratha. O sapateiro Palmeirim, como todos se lembram, só se juntaria ao grupo na Rua da Boavista, perto do Conde Barão.

- E agora aqui estamos, já o sol nasceu e a noite passou. Desde o meio da tarde de ontem que venho contando toda esta longa história, e confesso que me sinto agora mais aliviado, menos misterioso. Ainda ontem, a esta hora, estava a entrar no fatídico duche e cantava, cantava, miraculosamente cantava. Era como se a voz de Adão me tivesse de novo visitado. Eis-me, portanto, aqui, entregue a vós, sem mais nada para dizer. Eu que sou Adão, Caim e Abel, ao mesmo tempo. E agora? Gritou Isabel, gritou Zorba, gritou Lopamudra de Vidarbha. Não tenham medo, o que está à vossa frente é um homem que se transforma em luz. A frase, a tal frase. E o senhor Gouveia apontou com fúria para baixo e disse: Venham, venham por aqui, vamos para os baixos do Jardim de S. Pedro de Alcântara; lá... sempre estamos mais recatados, escondidos. E depois... logo se vê, haveremos de decidir o que fazer. E o grupo desceu pela Rua de S. Pedro, entrou no jardim e aí viu nascer a manhã.
E o sol levantou-se dos lados do Castelo, da Graça, de S. José e nós os treze, entre canteiros, passeando pelos bustos de Ulisses, Vénus e Minerva, evocando a idade de ouro, a bonança do vazio e a terrível aflição do momento. Até que, por volta das onze da manhã apareceram helicópteros, viaturas, buzinas, sirenes, comandos; o cerco era total. Em cima, o jardim foi praticamente fechado e Abel, diante de tal aparato, recuou até ao tronco do imenso limoeiro, sobre o abismo, encostado a nada, ao fim. Os doze ficaram um pouco mais atrás, encostados à cerca de metal, aflitos, brancos de rosto, impávidos, esperando a voz, o alento, o sinal decisivo de Abel. E o nosso homem gritou, gritou, gritou muito alto para que o ouvissem - Tenho uma granada comigo e estas doze pessoas são minhas reféns. Tudo o que quero é... esperar aqui neste sítio, até ao pôr-do-sol. Depois disso entrego-me, desde que me deixem contar tudo o que tenho a dizer. - Ao crepúsculo? Mas o homem está maluco. O que vamos fazer, comissário? Tenham calma, não vêem que ele tem reféns e está armado? Nada de avançar, para já, com os comandos. Vamos esperar até ao pôr-do-sol, vigilantes, até porque esta espera pode não agoirar nada de bom. À volta, por toda a Lisboa, uma multidão imensa rodeou o local e ouve quem gritasse em coro: canta, canta, canta Adão! Mas o silêncio de Abel manteve-se. Perdurou.
Passaram algumas horas e os doze mantinham-se aquietos, hirtos, dominados por uma qualquer grandeza sem nome. Por cima, as hostes amotinavam-se, iam-se agitando a pouco e pouco e, apoiados às grades, Luísa, Leonor, Arlete, Dona Olga, o médico, Porfírio, algumas russas de Porto Brandão e gente e mais gente sem fim contradiziam-se nas implorações, impropérios e lisonjas. Um caudal de gritos, alaridos, brados e ecos ressoando entre as fileiras da polícia e o cheiro a limão que envolvia a aparente calma de Abel. Nos telhados e sótãos dos prédios vizinhos, sobre estruturas improvisadas, as televisões transmitiam já em directo todo o folclore, a espera, o semblante enigmático e longínquo de Abel. A tarde ia caindo, lenta, preguiçosa e, com ela, aumentava a expectativa, o temor, o tremor, a grande questão afinal: porquê o crepúsculo? Perto do pôr-do-sol, o comissário falou com o ministro e tudo foi decidido acerca da manobra. Os comandos avançariam por baixo e igualmente pelo ar, de helicóptero, tentando assim salvar os reféns e, ao mesmo tempo, não dando oportunidade a Abel para deflagrar a granada ou qualquer outro explosivo. A multidão estava ao rubro, a excitação polvilhara a capital, o jardim começava a escurecer.
E foi quando Abel ouviu ao longe o ruído dos helicópteros e o vasculhar das sebes no acesso ao jardim que, sem mais, correu subitamente para o meio dos doze e disse: abram um círculo à minha volta, protejam-me. A cidade estava em suspenso, parecia calada; as sombras dos helicópteros a percorrerem telhados, uivos de cão ao longe; as cordas lançadas às grades, os comandos escalando por baixo do Jardim de S. Pedro de Alcântara. Quase ao mesmo tempo, a polícia de choque interveio à bastonada para evitar a histeria colectiva que se formara. Um atrito, uma espessa nuvem de gestos, sonidos de violoncelo, corpos por terra, uivos de cão ao longe e Abel entre os doze, de braços abertos, rindo muito alto, unindo os pés e lembrando-se como nunca de Alonso, o pirotécnico, o nómada fogueteiro de Trujillo.
De repente, mal caiu o sol, Abel ficou com a pele toda macerada, em tons lilases, depois parecia vermelha, mais do que corada, quase em fogo. Passados alguns segundos, já os comandos saltavam as grades e os helicópteros apareciam sobre a Rua de S. Pedro, de súbito, sem que nada o fizesse esperar, Abel ficou incandescente como uma pira de lenho a arder e o seu corpo, agora longilíneo, afunilava-se como se o tronco, os membros e a cabeça se tornassem, de repente, numa vara muito alta em cor e em forma de fogo. E mais se parecendo com um gigante fio-de-prumo de brasas virado para as nuvens, Abel subiu pelos céus de Lisboa como se fosse o pau, o simples pau de um magnífico foguete e, ao atingir a calote ainda azulada da esfera pelos últimos raios de sol; ao atingir a curvatura celeste reflectida nas águas avermelhadas do grande Tejo; ao atingir de par a par o arco perfeito da atmosfera das Tágides, este foguete que fora Adão, Caim e Abel transformou-se num colossal fogo de artifício que fez regressar Lisboa à lembrança da sua última aurora boreal. E Zorba, espantado, quase destruído, sentiu uma estranha irritação nesse seu sinal paterno em forma de serpente com duas cabeças. O pasmo era total e, por cima, expandia-se o clamor, a beleza da frágua vermelha; seguiram-se explosões e mais explosões na indolência dos ares, dos eflúvios de lume, luz e brilho que se expandiam em forma de trevo de três fogos. Foi assim durante mais de meia hora.
Foi assim, em Lisboa, num dia de fortunas e luminárias.