quinta-feira, 24 de novembro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel - Episódio 41
Terceira Parte: O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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Passei uma noite péssima. Leonor, felizmente, decidiu tomar comprimidos para dormir e não deu por nada. De manhã, levantei-me mais tarde do que o normal e fui lentamente, a sós, para o duche como que a imaginar saídas possíveis para isto tudo. Só me vinha à ideia o mordomo catalão, uma qualquer fuga aparatosa e sempre, sempre... o diabo do Porfírio. O cerco à minha volta apertava-se. Pensei em fazer a mala, telefonar para Barcelona, desaparecer.
Subitamente, sem razão nenhuma para tal, enchi o peito e vi-me a cantar muito alto, sob os auspícios da água quente do duche: “Leonor Luísa Amor/ Pelo vosso coração/ Canta a minha dor/As rosas desta visão”. Maravilha! Quase rejubilei. Vinda do nada, talvez do gravitas da alma, era outra vez a voz de Adão, potente e bela, ressurgida como que por milagre. Que maravilha! Era como se as cordas vocais tivessem sabiamente regressado ao seu paraíso primeiro e inicial. E... porquê agora?
Entretanto, no rés-do-chão, Leonor abriu lentamente a porta e subiu alguns degraus. Não foi preciso mais para ficar apavorada diante daquela voz televisiva, clara e nítida, que conhecia como ninguém. Parou ainda no cimo das escadas e, já trémula de palavra e espírito, ainda teve forças para gritar - Abel, estás em casa? Sem resposta, Leonor desceu a escadaria rapidamente, em pânico, veloz, com a boca presa, os olhos muito abertos, a respiração quase em suspenso, parada, irada. Abel, nu em flor, apercebendo-se do tremendo descuido, do repentino dom, do indomável susto, desceu até ao hall do primeiro andar e ainda gritou - Querida, estou aqui, o que é, o que se passa? Nessa altura, já Leonor tinha batido com a porta e fugido, fugido.
Sem tempo sequer para pensar, vesti-me num ápice e - continua Abel - segui pela esquina de cima. Passei pelo ‘Ano Zero’, a loja de cerâmica da vizinhança, e meti-me depois no táxi, uns metros mais à frente. Contei o dinheiro, acelerei, evitei a praça e, em poucos minutos, dei comigo em plena estrada de Pero Pinheiro. Atravessei então bermas de eucaliptos, nuvens baixas e carregadas e soube, por fim, que era este o termo da minha fase de Belas. Agora, já não podia voltar para trás. Depois do cantor, o chulo e agora o pacóvio, o pateta alegre! Ri-me de tanto fantasma, de tanta história insuportável, de mim mesmo, juro. Acelerei e voltei a cantar muito alto, alto, alto... e senti, a dada altura, que estava a ensandecer ou a tresloucar-me. Segui pela CREL, cigarro atrás de cigarro, lento, concentrado. Até que decidi o que fazer. Eureca.
Leonor correu até à praça, entrou no Centro de saúde e pediu para falar com o médico. O médico? Mas... o senhor doutor agora está muito ocupado, é quase hora de almoço, é uma hora muito má! Por favor, diga-lhe que é a Leonor, é muito urgente. É coisa de vida ou de morte, a sério... é isso mesmo, de vida ou morte. O médico entretanto apareceu com a bata branca a envolver-lhe o espanto, a ousadia do momento, a dúvida. Mas o que é que se passa, Leonor? Senhor doutor, ontem o senhor, afinal, tinha toda a razão. O morto-vivo está mesmo na minha casa! Ouvi-o a cantar muito alto e garanto que era ele, sem engano, sem hipótese alguma de me enganar. É que eu segui, durante anos e anos, o programa dele e conheço-lhe a voz, juro sr. Doutor, conheço-lhe a voz como conheço as minhas mãos. Mas não é apenas isso. É também o corpo... primeiro era aquela articulação do cotovelo, o osso, a forma do braço, depois as coxas ao andar, o pescoço, mas não só. Sabe, é que ele, já lho tinha dito uma vez, foi meu namorado, há muitos, muitos anos! Leonor fala, balbucia, hesita, parece tremer. Veja lá Leonor, está tão nervosa! Mas há mais, repare sr. Doutor, aquelas costuras atrás das orelhas devem ter sido plásticas que ele fez... para ocultar a identidade ou coisa do género e nunca por causa de qualquer acidente que tenha sofrido. Sempre desconfiei disso porque, pelo menos umas duas vezes, ele me trocou as estradas e até os sítios onde tudo se terá passado. Ó sr. Doutor, desculpe-me, deixe-me falar, eu sei que não estou nada bem, mas há uma última coisa que quero dizer. Aquele nome não existe no Arquivo, ou antes, deverá corresponder a alguém que já… morreu. Em vez de ir à escola, hoje de manhã, fui aos Arquivos Centrais e confirmei isso. É verdade, sr. Doutor, tem toda a razão, eu devia ter desafiado o homem cara à cara... mas reconheço que fiquei apavorada, tive medo; não estava à espera de ouvir aquela voz de defunto a cantar. Parecia uma coincidência do diabo, vou ao arquivo, falto à escola e reencontro um morto! Foi demais para mim e foi por isso que tive que vir até aqui a correr, desculpe sr. Doutor...
O médico agarrou então no pulso de Leonor e disse com voz muito decidida - Venha, vamos daí, vamos lá à sua casa, depressa. Subiram os dois pela Cândido Reis, entraram no hall, depois na cozinha; examinaram a sala, os quartos, passaram pelas águas-furtadas e ninguém, nada, vazio total. No entanto, o ar de casa subitamente abandonada falava por si: marcas de duche deixado a meio, roupa no chão, flocos e notas espalhados na bancada da cozinha, o armário aberto com peças de roupa a menos. Não mexa, não mexa em nada, vê-se mesmo que o tipo fugiu a correr; aqui há realmente marosca e da grossa! Dê cá o telefone, dê cá. Eu falo, eu falo, esteja quieta e tome mas é este comprimido, vá lá. Está? Está? É da polícia? olhe, venha num instante à Cândido dos Reis, 68, sim, sim, aqui em Belas. É melhor virem com toda a velocidade, porque a história parece apontar para coisa perigosa. Muito obrigado, até já. Em pouco tempo, duas viaturas da PSP estacionaram em frente à casa cor de cereja e, na hora que se seguiu, Leonor depôs o que pôde, o que sabia e do que, já há algum tempo, desconfiava.
Minutos depois, Dona Olga, espreitando de frente e no fundo dos olhos do médico, desabafava: Mas isto... é o verdadeiro diabo entre nós! Punha e voltava a pôr as mãos à volta da cabeça, suava e repetia, repetia - O perigo que a nossa Leonorzinha deve ter passado! - É verdade, é verdade. Seja como for, ela está agora ali na Casa de saúde a compor-se com uns calmantes e eu vou lá passar outra vez daqui a um bocado. Aproveitei para vir aqui à esplanada, porque vi, através dos vidros, que estava sozinha... posso tratá-la por tu? Só entre nós, claro. Claro. Então, diz-me... a tua mulher continua com as febres? E o médico, mexendo o café, abrindo os dedos cheios de alianças, a sorrir com ar adolescente e malandro, circunspecto... a fazer-se à resposta com alguma avidez demorada, lenta - Está mas é com febres de malta! Não, era tudo treta minha. Sabe, fiz com que ela, ontem, não saísse de casa; há lá umas pinturas a fazer e isso dava-me mais tempo para ir buscar uma ou outra tangerinazinha ao seu quintal, já está a perceber? - Seu madraço, seu brejeiro, como te atreves! Vou-me já calar, Olga, porque estou a ver a tua irmã do outro lado da Praça. - Pois é, e vem para cá, já deve ter sabido tudo acerca da Leonorzinha. - Mas antes de me calar, queria dizer-te ainda isto: eu agora não quero outra coisa senão os gomos sumarentos das tangerinas, entendes? E Olga, efusiva, exultante, a ranger entre dentes - Seu madraço, seu castigador, se não fosse ali a minha mana, dava-te com a mala nesse sítio. Quem te vê e quem te viu! Cuidado, olha que em Belas sabe-se tudo, tudo, e onde é que andará aquele bandido do Abel?
O que ouvi no noticiário a meio da tarde fez-me, de imediato, abandonar o carro numa colina isolada a norte de Alverca. De seguida, contornei a colina, segui a pé pela parte debaixo da auto-estrada a rebentar de trânsito e, depois, sem qualquer norte, sem direcção ou rumo, corri entre estradas velhas, atalhos, barracas, prédios de quinze andares no meio da lama; acampamentos de ciganos, quiosques, armazéns clandestinos, gráficas; oficinas de recauchutagem de pneus, casas saloias, tascas cheias de ferroviários, viadutos e alguns passeios esventrados. Na feira do relógio, comprei um casaco e novos óculos escuros. Deambulei pela Avenida do Brasil, pelos lagos do Campo Grande e só me vinha à mente os olhos de Sara, os gestos de Leonor; Luísa a saltar as grandes ondas de Porto Covo. Advinham-me imagens coloridas das ruas de Banguecoque, da tromba de água do Índico, das casas brancas de Djibouti; via diante de mim as meninas de Porto Brandão, os aplausos sem fim do ‘Tostões e Biliões’, a minha desconhecida filha, ou os olhos ávidos da Dona Olga; revia o Porfírio gigante e cheio de tatuagens, o Maremagnum catalão, o mordomo; enfim, tudo aquilo era eu, perdido de sentidos, na Estrela ou no Jardim do Paço do Lumiar a contemplar um céu avermelhado e sem qualquer explicação. Senti-me tonto, fraco, frágil e sem forças. Sentei-me num dos bancos de jardim do Campo Grande e pensei - Já chega! Já chega. Chega de fugas, de fingimentos, de duplos. Chega de desventuras. Serei assim tão anormal? Não será possível contar toda esta minha história a alguém e ser ouvido? Poderei alguma vez vir a ser perdoado? Mas perdoado pelo quê?
A todo o momento, a polícia pode cercar-me, levar-me, ou interrogar-me. Antes isso. Estou aqui no Campo Grande, a sós, livre de querer e de ser, mas, seja como for, à vossa disposição, de todos. Pensei. E pela cabeça passava-me tudo, tudo: era o funeral da Estrela, os cartazes ostentando o meu rosto de Adão hilariante, o antigo fadista dos seguros, a Arlete a dançar à noite nos jardins de Belém; as belas putas do Pireu, o aeroporto de Dubai, as águas-furtadas de Barcelona e Sara e eu num sonho de Verão, em Cascais. Foi então que, sem medo de nada, de rigorosamente nada, me meti no metro. Fosse o que fosse. Circulei, estação após estação, até ao Marquês de Pombal e daí até à Baixa-Chiado. Talvez a secreta notoriedade do nome do Chiado, boémio de gema, homem de perdição, me tivesse atraído. Mas a quê?