domingo, 16 de outubro de 2005

O Trevo de Abel - Episódio 2
Primeira Parte: O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
e

Abel pára, hesita, por vezes retém apenas o fôlego da deslumbrada corrida que ali o havia trazido. Tudo pode agora acontecer. Passaram minutos e Abel caminha agora ao lado do homem, a par de vagarosos gestos e prestidigitações, a par da lembrança talvez ainda um pouco turva. É um mundo inteiro por contar. É um dia de tudo ou nada, mas disso só Abel sabe e mais ninguém. Pelo menos, por enquanto.

E o homem disse que normalmente o tratavam por Zorba e que estava decidido a ouvir toda a história de Abel até ao fim.

No início, já se sabe, parece tudo sempre muito harmonioso. Falta-nos ainda aquela perspectiva que nos permite enquadrar as coisas; por outras palavras, vivíamos felizes porque ainda não conseguíamos sentir o horizonte, o futuro, está a ver ? E foi tudo há tanto tempo... trabalhava eu nos Seguros e a Luísa vinha ter comigo ao fim da tarde. Casadinhos de fresco, deslizávamos pelas montras do Chiado, bebíamos laranjada ou café, íamos ao cinema, comprávamos pequenas coisas para a casa, enfim, fazíamos de tudo isso uma espécie de bênção juvenil a dois.

Nunca conheci o meu pai. Dele só soube que tinha um sinal nas costas, disse-mo a minha avó, Maria Alba - que Deus tenha !
Era um sinal parecido com uma serpente de duas cabeças. E a minha mãe, imagine, depois do seu segundo casamento, foi viver para fora, para os Estados Unidos, e só de anos a anos a vejo.

Uns meses depois, a Luísa ficou grávida. Era uma menina. Foi a maior alegria da minha vida. Uma espécie de luz ou de aurora de dedos cor-de-rosa, como diria a Deusa Atena.

Nestas evocações preliminares, íamos lado a lado, eu e o desconhecido senhor Zorba. Para trás, ficava a frontaria do Mercado da Ribeira e, por cima, a flutuar no ar das maresias, levantava-se o varandim em círculo sobre o arco principal. Era o mundo a pairar, líquido, errante. E a meu lado o senhor Zorba parecia cativado, preso às minhas palavras fugazes, ainda a balbuciarem, a titubearem, a duvidarem. Quantas horas de vida me restariam ?

De qualquer modo, a minha primeira frase fora definitiva, arrebatadora, arrasadora. Através dela parecia ter confessado tudo, embora sem nada dizer.

No centro da Praça de D. Luís, os dois leões meio adormecidos ladeiam a estátua e parecem gemer na direcção da musa. O ar adensa-se sobre o estandarte de bronze, onde pousam pombos e também os nossos olhares que oscilam lentamente sobre os canteiros de relva molhada. Na colina, como se fosse cenário, Lisboa terá escalado por janelas venturosas, fachadas geométricas e varandas que abraçam, por cima, os prédios esguios e luminosos que o Adamastor, do seu jardim, contempla. E nós a cadenciarmos as minhas próprias palavras, as esperas delongadas, os silêncios de ocasião. Que saudades eu tive subitamente da Sara catalã e dos cheiros de Djibouti !

E o medo, de vez em quando, a fazer-me olhar para trás ou para os lados.

A partir de certa altura, a vida passou-se a repetir todos os dias. Abel parecia agora pronto para o pior. De repente, o tempo apareceu e estancou a voragem, a paixão. Parece que me estou a ver a correr pelas escadas rolantes da Estação do Rossio e, à noite, longe já do paraíso, Luísa, carregada de sacos e mais sacos, ainda a tentar sorrir para mim. Com dificuldade. Todos os dias descíamos e subíamos as escadas do Carmo e passávamos depois pela esquina do Americano. Encontrávamo-nos no Rossio e esquecíamo-nos já de pequenos rituais, do desleixo, da cor das paredes, das varandas, das obras, do descanso adiado, da fonte da vida. Todos os dias passámos a ir e a vir no comboio de Sintra, essa lata de salsichas comprimida, concentrada, e, à noite, a miúda chorava horas e horas a fio. Um desastre. A vida tornava-se estúpida, sem qualquer paz, apeada da sorte que nos tinha fadado, um dia, a origem. De repente, aconteceu tudo isto. Há muito, muito tempo. Um autêntico e súbito desencanto, depois de tanta paixão. Valia-nos ir ao hipermercado, no fim de semana; valia-nos fazer uns piqueniques no Guincho, quando havia paciência para tanto. Valia-nos ir à janela e respirar fundo.

Mas havia um segredo por revelar. É que eu cantava.
Sim, sempre cantei, desde pequeno. Era uma espécie de voz muito húmida que saía cá de dentro e que me extravasava.
E que me extravasa, digo. Começou por ser fado, depois música a que, na altura, chamavam ligeira, depois. Sim, depois. Isso já foi muito depois. Temos que apressar o passo, ou não chegamos a tempo à Cruz Vermelha. É a sua filha que trabalha lá ? A que horas é que ela sai ?

Não sei porquê, mas, por um segundo, reconheci algo de muito próximo nesse piscar de olhos. Pensou Zorba. Pensou também Abel.

E verdade seja dita, Lisboa parecia, às vezes, querer falar entre nós.
E diria, de si para si, que é uma cidade que não se fecha em concha, em círculo, ou em hélice. Pelo contrário, desce, aberta e narcísica, sobre o rio também aberto e frondoso. Com ele, Lisboa desenha a folha larga de uma árvore da vida que, em espiral generosa, se dá ao oceano; no espaço das hecatombes e das maravilhas; no turbilhão de destinos enfeitiçados e sempre e ainda por cumprir.

Florida, feminina talvez, distante como a água do seu próprio verbo.