O Trevo de Abel – Episódio 8
Primeira Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Primeira Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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No cruzamento com a Rua dos Poiais, Zorba acabou por convidar o grupo a entrar no restaurante indiano. O cheiro a lagosta com molho de caril inunda a entrada. É um pó de cor ocre amarelada, lasso, moído, envolvido por especiarias e dotes aventurosos. Os olhares afrodisíacos confundem-se com as finas transparências dos saris e com a visão celeste e púrpura que preenche o envidraçado do restaurante e uma música de laudas agudas e lentas.
Abel volta a beber chá (como fazia em Belas) e conta a quem o quiser ouvir, agora sem qualquer medo, que o concurso da BTP, o ‘Limões e Biliões’, fora exclusiva criação sua. Por cima, dizia - deixando os indianos atónitos e perplexos -, mandei sobrevoar o estúdio com um autêntico mar caleidoscópico de holofotes. Luz, muita luz, apenas luz. Depois, as bancadas tinham que comportar umas três mil pessoas de pé, efusivas, sempre aos saltos. Em frente das bancadas, surgiam os três palcos móveis que deslizavam sobre monocarris de aço. E Abel entusiasmado, mesmo desinibido, perdido por cem perdido por mil, a atropelar a voz, a denunciar-se:
Eu corria de palco em palco, tomava conhecimento em segundos do voto das audiências e, sempre a sorrir, espontaneamente, ia dizendo o que era imprevisível, mas adequado, mágico. E juro que não havia quase nada que não fosse previamente combinado. Fora sempre assim. Durante o programa, mudava de roupa umas sete vezes e, tal como um foguete - sempre adorei foguetes e fogos de artifícios - tinha que dar a impressão de ser um personagem ubíquo, omnipresente, uma espécie de divindade dividida entre vários corpos e um só espírito.
Por trás de mim, as imagens reais e virtuais faziam confluir dançarinas a levitar nos sete céus, nos cinco continentes do mundo e nas várias civilizações da história universal. Um primor. Perto do final, como consagração, eu cantava durante uma meia hora, na pele de Ezequiel, ou de Cesário Leme. A partir da terceira edição do concurso, passei a encarnar um terceiro heterónimo, o Areonte, que era uma espécie de cantor de Zarzuela à portuguesa, misturando a batida pimba com ritmos electrónicos, vestígios futuros de hip hop e alguns ecos líricos.
Quando o ‘Limões e Biliões’ fez seis meses - lembram-se? - passei eu mesmo a dar as notícias e acabaram com o telejornal das oito. Pode parecer absurdo, mas na altura não foi. As audiências eram já tão elevadas que foi mesmo necessário suprimir o noticiário. Deste modo, eu próprio me tornei no locutor, no jornalista, no meteorologista, no culturista, no desportista e assim por aí adiante. Eu próprio me tornei na imagem mágica da noite televisiva a entrar em quase todos os lares portugueses, ao mesmo tempo. Foi uma verdadeira maravilha, um prodígio, um milagre, lembram-se ainda? E Zorba a bater com a perna, nervoso, a reconhecer a trama e o perigo, o salmo e a sorte.
Não, ninguém telefonará para a polícia, porque o deslumbre é capaz de cegar o pânico, assim como espanto é capaz de cegar o assombro e o tremor, garanto. À saída do restaurante, fosse das mesas acólitas ou do balcão, fosse por fascínio ou talvez por contagiante feitiço, a verdade é que mais seis pessoas acabaram por se juntar à procissão confessional de Abel, o magno.
Eram eles um deputado alto e de pêra esbranquiçada, um professor de Comunicação do ISTPE; um casal de brasileiros arrebatados com a explanação e, por fim, dois dos indianos do próprio restaurante, o dono e a filha, arrastando-se num imenso sari.
Na rota do Boqueirão dos Duros, o destino traçou algumas das mais apertadas ruas de Lisboa. De braços abertos, é possível tocar nas duas fachadas opostas que sobem, como Babel, até à única memória comum que habitou estes lugares - a praia, as marés, o sobressalto; o vaivém da distância tornada legenda, fantasia, sereia em terra encarnada pelo olhar dos homens. O mar. Uma só linguagem, embora oclusa, esquecida, praticada apenas pelos poetas malditos; esses seres que enchem as últimas tabernas, ou que se encostam às paredes vulcânicas da Rua das Gaivotas, auscultando apenas o mistério; ou essas pitonisas vestidas de negro, de cabelos desgrenhados que, penduradas das janelas, sondam os seus demónios e anjos, tecendo acordes perfeitos e ínvios entre o bem e o mal, e doando a beleza perdida do corpo ao devir dos nautas. O mar. O prazer. A poção ancestral das cordas. Auroras boreais antigas. Um primor de bairro. O brilho da luz entornada entre o casario escuro, rosa castanho chocolate e a expectação e a maravilha e a intriga dos que decidiram, um dia, nesta Lisboa doutros tempos, escutar um homem efabulador e perigoso chamado Abel.
Mas, como é que era mesmo capaz de se desdobrar entre tantas personagens, fosse o Ezequiel, o Cesário Leme, ou o Areonte? Júlia sorri, enquanto dá largas ao timbre mais inaudito, à voz, como que a procurar o eco daquelas paredes tão próximas. Parecia um guincho, choro de gaivota, dedo de Ulisses a deslizar no vidro de uma sibila esférica da memória de Delfos.
Um som que patina entre janelas falantes e que depois sobe até ao brilho da tal estrela que brilha no fundo de um túnel de viagens míticas. À voz altiva do deputado, a menina indiana de sete braços, de nome Lopamudra, volta a insistir: e não confundia o que, às vezes, dizia? Zorba olhou para a filha e sorriu. Como é bela esta minha filha e como veio tão tarde, depois de tudo ter já acontecido. Dona Joana e o senhor Gouveia discutem os números do totoloto à porta da loja do portal azul bebé. Lá dentro, vende-se tudo, televisões em segunda mão, gravatas, bancas de cabeceira em mogno, lapidárias, borrachas, tudo. E Abel falou:
Acho que essa tendência de me multiplicar em muita coisa já nasceu comigo. Será coisa desta cidade? É verdade que confundo muitas das coisas que digo. Aliás, enquanto ainda aqui estou, juro que tento não confundir o que sou com o que digo. Se soubessem tudo aquilo por que passei nas últimas vinte e quatro horas!
Lá chegarei. Lá chegarei.
Dêem tempo ao tempo.
E a rádio ainda a dizer que o governo mandou a polícia intervir. E que tudo pode agora acontecer.
Há sirenes ao longe. Ameaças que andam no ar.
O mistério tem que desvendar-se. Até amanhã.
Abel volta a beber chá (como fazia em Belas) e conta a quem o quiser ouvir, agora sem qualquer medo, que o concurso da BTP, o ‘Limões e Biliões’, fora exclusiva criação sua. Por cima, dizia - deixando os indianos atónitos e perplexos -, mandei sobrevoar o estúdio com um autêntico mar caleidoscópico de holofotes. Luz, muita luz, apenas luz. Depois, as bancadas tinham que comportar umas três mil pessoas de pé, efusivas, sempre aos saltos. Em frente das bancadas, surgiam os três palcos móveis que deslizavam sobre monocarris de aço. E Abel entusiasmado, mesmo desinibido, perdido por cem perdido por mil, a atropelar a voz, a denunciar-se:
Eu corria de palco em palco, tomava conhecimento em segundos do voto das audiências e, sempre a sorrir, espontaneamente, ia dizendo o que era imprevisível, mas adequado, mágico. E juro que não havia quase nada que não fosse previamente combinado. Fora sempre assim. Durante o programa, mudava de roupa umas sete vezes e, tal como um foguete - sempre adorei foguetes e fogos de artifícios - tinha que dar a impressão de ser um personagem ubíquo, omnipresente, uma espécie de divindade dividida entre vários corpos e um só espírito.
Por trás de mim, as imagens reais e virtuais faziam confluir dançarinas a levitar nos sete céus, nos cinco continentes do mundo e nas várias civilizações da história universal. Um primor. Perto do final, como consagração, eu cantava durante uma meia hora, na pele de Ezequiel, ou de Cesário Leme. A partir da terceira edição do concurso, passei a encarnar um terceiro heterónimo, o Areonte, que era uma espécie de cantor de Zarzuela à portuguesa, misturando a batida pimba com ritmos electrónicos, vestígios futuros de hip hop e alguns ecos líricos.
Quando o ‘Limões e Biliões’ fez seis meses - lembram-se? - passei eu mesmo a dar as notícias e acabaram com o telejornal das oito. Pode parecer absurdo, mas na altura não foi. As audiências eram já tão elevadas que foi mesmo necessário suprimir o noticiário. Deste modo, eu próprio me tornei no locutor, no jornalista, no meteorologista, no culturista, no desportista e assim por aí adiante. Eu próprio me tornei na imagem mágica da noite televisiva a entrar em quase todos os lares portugueses, ao mesmo tempo. Foi uma verdadeira maravilha, um prodígio, um milagre, lembram-se ainda? E Zorba a bater com a perna, nervoso, a reconhecer a trama e o perigo, o salmo e a sorte.
Não, ninguém telefonará para a polícia, porque o deslumbre é capaz de cegar o pânico, assim como espanto é capaz de cegar o assombro e o tremor, garanto. À saída do restaurante, fosse das mesas acólitas ou do balcão, fosse por fascínio ou talvez por contagiante feitiço, a verdade é que mais seis pessoas acabaram por se juntar à procissão confessional de Abel, o magno.
Eram eles um deputado alto e de pêra esbranquiçada, um professor de Comunicação do ISTPE; um casal de brasileiros arrebatados com a explanação e, por fim, dois dos indianos do próprio restaurante, o dono e a filha, arrastando-se num imenso sari.
Na rota do Boqueirão dos Duros, o destino traçou algumas das mais apertadas ruas de Lisboa. De braços abertos, é possível tocar nas duas fachadas opostas que sobem, como Babel, até à única memória comum que habitou estes lugares - a praia, as marés, o sobressalto; o vaivém da distância tornada legenda, fantasia, sereia em terra encarnada pelo olhar dos homens. O mar. Uma só linguagem, embora oclusa, esquecida, praticada apenas pelos poetas malditos; esses seres que enchem as últimas tabernas, ou que se encostam às paredes vulcânicas da Rua das Gaivotas, auscultando apenas o mistério; ou essas pitonisas vestidas de negro, de cabelos desgrenhados que, penduradas das janelas, sondam os seus demónios e anjos, tecendo acordes perfeitos e ínvios entre o bem e o mal, e doando a beleza perdida do corpo ao devir dos nautas. O mar. O prazer. A poção ancestral das cordas. Auroras boreais antigas. Um primor de bairro. O brilho da luz entornada entre o casario escuro, rosa castanho chocolate e a expectação e a maravilha e a intriga dos que decidiram, um dia, nesta Lisboa doutros tempos, escutar um homem efabulador e perigoso chamado Abel.
Mas, como é que era mesmo capaz de se desdobrar entre tantas personagens, fosse o Ezequiel, o Cesário Leme, ou o Areonte? Júlia sorri, enquanto dá largas ao timbre mais inaudito, à voz, como que a procurar o eco daquelas paredes tão próximas. Parecia um guincho, choro de gaivota, dedo de Ulisses a deslizar no vidro de uma sibila esférica da memória de Delfos.
Um som que patina entre janelas falantes e que depois sobe até ao brilho da tal estrela que brilha no fundo de um túnel de viagens míticas. À voz altiva do deputado, a menina indiana de sete braços, de nome Lopamudra, volta a insistir: e não confundia o que, às vezes, dizia? Zorba olhou para a filha e sorriu. Como é bela esta minha filha e como veio tão tarde, depois de tudo ter já acontecido. Dona Joana e o senhor Gouveia discutem os números do totoloto à porta da loja do portal azul bebé. Lá dentro, vende-se tudo, televisões em segunda mão, gravatas, bancas de cabeceira em mogno, lapidárias, borrachas, tudo. E Abel falou:
Acho que essa tendência de me multiplicar em muita coisa já nasceu comigo. Será coisa desta cidade? É verdade que confundo muitas das coisas que digo. Aliás, enquanto ainda aqui estou, juro que tento não confundir o que sou com o que digo. Se soubessem tudo aquilo por que passei nas últimas vinte e quatro horas!
Lá chegarei. Lá chegarei.
Dêem tempo ao tempo.
E a rádio ainda a dizer que o governo mandou a polícia intervir. E que tudo pode agora acontecer.
Há sirenes ao longe. Ameaças que andam no ar.
O mistério tem que desvendar-se. Até amanhã.