sexta-feira, 21 de outubro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 7
Primeira Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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A tragédia, às vezes, faz rir.

Em frente, sobre azulejos obsessivos, deslizam flores, rosas, azevinhos; parecem ondas levemente azuladas a dormir sobre o estuque branco onde, um dia, mãos delicadas souberam moldar as últimas varandas de ferro forjado. De tais prédios lúgubres e quase iguais, desprende-se um aroma a frutos saloios e alecrim. Tudo esfumado, diluído; erva-doce, nostálgica, no sopé das ruínas. A tragédia faz rir. Fará? Em Lisboa, a herança diz que o riso foi exportado para além-mar e que, por cá, apenas foi ficando o espectro de romeiros, desejados e cavaleiros heterónimos. Há muito. E a verdade é que, entre todas as cidades que Abel conheceu, Lisboa é a que lhe vai deixar mais saudades, quando amanhã partir deste mundo.

Isabel alheia-se dessas coisas mais pesadas e secretas, continua a sorrir, abre os lábios em câmara lenta e ouve a própria voz a dizer, a perguntar com toda leveza - E, por essa altura, quando assinou o contrato com a BT Pública, ia ainda visitar a sua mulher e a sua filha? Não tinha saudades delas? Isabel ainda a inquirir, como se fosse uma lufada de ar fresco a invadir os agoiros e maus presságios iminentes, neste dia de metamorfoses irreais.

Apenas a paixão pode consolar esta verdade antiga que levou uma cidade inteira a nascer para apenas se ocupar de todo o universo. Um mar de histórias e lendas silenciosas por contar. Passamos pelo ajardinado que bordeja a parte inferior da D. Carlos, berço de antiga praias; o fio dos eléctricos balbucia, tine, evoca antigos sons e pregões de amoladores e morangueiros e ovarinas. Lisboa é uma minúcia. Lisboa pertence aos olhares ainda despercebidos; aos detalhes filigrânicos, ao teor amarelado ou rosa das fachadas onde deslizam janelas estreitas, emolduradas por calcários e minúsculos vasos com tímidos jarros e malvas e alecrins. Às vezes, às vezes, continua Abel, para ser franco, ia até à creche. Gostava de pegar a criança ao colo. Sentir-lhe a verdade. Sempre era minha filha. Talvez fosse isso.

Isabel não entendeu lá muito bem as palavras de Abel, mas, talvez por compaixão, ainda continuou a fixar os seus olhos nos olhos muito vermelhos e cansados do acossado.

No outro lado da rua, o quiosque - a antiga tabacaria - fecha as portas. O dono aparece à porta e Dona Joana sorri encantada com a boa nova. Mas é o Sr. Gouveia, o pai da Tília! Ó avó, então eu vou lá chamá-lo, é que não estava a reconhecê-lo. Olha, Júlia, conta-lhe tudo e trá-lo, está bem? Como? Sim, sim, isso mesmo, trá-lo até aqui. Abençoado dia, abençoado dia, este! Continuou Dona Joana a balbuciar, no seu silêncio de suspiros e murmúrios longínquos.
Um amor, pensou Isabel.

E aquela primeira frase, como é possível uma coisa daquelas! De onde é que, afinal de contas, virá este Abel?

Júlia e o senhor Gouveia atravessam a rua, lentamente. O serão e depois a noite são ainda uma espera, uma vida inteira. É cedo. Haverá mesmo perigo? Pelo olhar de Isabel, a existência continua doce, dir-se-ia perpétua. O futuro é como se fosse hoje. De repente, Zorba olha em volta e conta-nos, um a um, para que não haja enganos. E já somos seis, meia dúzia perfeita.

Até que o eléctrico, amarelo quanto o açafrão puro das margens do deserto, desceu a rua e fez vibrar a campainha mitológica. Júlia entrevê os raquíticos dentes de ouro do condutor e ri-se sozinha, sem partilhar com mais ninguém a imagem, o circo, o breve espectáculo. A vida é essa ocultação.

Depois, o eléctrico há-de ter prosseguido o seu caminho até aos Prazeres. Aos Prazeres? Sim, aos Prazeres, e foi aí que o Senhor Gouveia disse, também entre dentes, que Abel lhe fazia lembrar o perigoso Caim da Rua das Flores. Pode lá agora ser uma coisa dessas! Zorba bate com as mãos nas costas de Abel e sorri. Pode lá agora ser! E é Isabel quem volta a olhar para os telhados, para os beirais. Para nada. Para disfarçar, talvez.

Não longe do Parlamento, ouvem-se já os carros da polícia. O medo invadiu de vez a cidade, tudo é possível hoje à noite. Dizem que vai ser uma noite terrível. E Zorba talvez a querer disfarçar o pânico, a leviandade de tudo o que subitamente parece já ter entendido. Mas com uma vida dessas, Abel, como é que a sua memória consegue ainda funcionar? De repente, o vento fustiga e a copa dos plátanos quase sugere a agitação em que Lisboa hoje mergulhou, após o noticiário das oito. Como se a natureza não quisesse calar a água, a brisa e o sangue ou até o temor de diabolismo que se respira na capital.

Zorba, entretanto, segreda mil coisas ao ouvido do senhor Gouveia que, solícito, retribui a gravidade com a sua testa comprida e com as suas mãos aveludadas de jesuíta barroco. Como se todas as histórias fossem uma viagem onde o que importa é o fim. Apenas o fim. Não, não é a vida que é trágica, é a vida transformada em viagem que o é, há-de Isabel pensar um dia. Mas falta ainda muito.

Antes de começar a descer a Rua de S. Bento, Abel pára e responde finalmente, de modo pausado, a Inês. A memória é sempre uma coisa estranha. Um labirinto sem direcções. Tantas vezes que eu misturo as minhas várias vidas! Mas há coisas que, para falar verdade, não sei ainda lá muito bem explicar. Foi tudo muito rápido, demasiadamente rápido. Vá lá, não tenham medo de me acompanhar nesta minha última confissão!

E Isabel a seguir com os olhos a insistência de tanta rapidez. É assim a empatia.

Quem sabe se, para Abel, o mundo é um bem?
Quem sabe se, para Abel, esta confissão, despojada e aberta, para além de sacrifício, não é antes um fruto desejado?

Interrogou ainda Isabel, em silêncio.
E quanto tempo terá ainda Abel para contar a sua história até ao fim? Quanto?