terça-feira, 25 de outubro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 11
Primeira Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Foi já perto das luzes foscas do Corpo Santo que Abel terminou o relato desta sua súbita, monstruosa e ocultada solidão, como se fosse desterro, exílio ou coisa malévola tudo aquilo que sentia sempre que saía de cena, da ribalta viva, do manto pouco diáfano dos holofotes televisivos.

Talvez isso já fosse prenúncio de que algo muito grave estaria por acontecer. A minha avó que Deus tem, continuava Abel, sempre me avisou que eu nascera através de um parto invulgar, único, verdadeiramente predestinado a grandes feitos. Mas quais? Perguntava-me eu, naquele tempo, sempre que atravessava os longos corredores do meu palácio cheios de espelhos, móveis eclécticos, estuques dourados, jardins escarpados, piscinas de água quente, salas circulares e varandas que pareciam ser de marfim. E talvez porque a minha turva consciência me ditasse sentenças estranhas, decidi, um dia, doar à minha ex-mulher uma quantia de dinheiro exorbitante.

A partir desse momento, passei a ver a minha filha uma vez por semana, mas sentia como uma evidência total que não tinha qualquer vocação para pai. Perguntava-me porquê. Tudo isto me induzia à fatalidade, à perda de confiança, à descrença.

De repente, tudo deixou de ter brilho para mim. Nem mesmo a Arlete, vestida de plástico vermelho e azul e dando-me, ao de leve, com o chicote de linho ou de chita nas costas. Nem mesmo a Arlete, nos dias em que a mandava sentar toda nua no banco de jardim que tinha instalado na sala. Nem mesmo a Arlete com o espanador a tentar despertar-me para secretos e novos prazeres. Nada.

E os treze pararam, de repente, em silêncio absoluto, perto da esquina do antigo Hotel Atlântico. Pareciam estátuas consumidas pela erupção vulcânica, brancos na face, imóveis no gesto, chamejantes no olhar. Era como se uma bátega de água gelada tivesse caído no arco-íris mais belo e cintilante da confissão da vida. Uma desilusão profunda e logo visível: era o sapateiro Palmeirim, desapontado com as fraquezas desveladas por Abel; era Zorba, consternado, a abanar a cabeça e a acarinhar Isabel. Era Lopamudra de Vidarbha e o pai a evocarem, por mera consolação, a grande personagem de Dharmaputra que, no final do Mahabharata, se transfigura e passa a ser um verdadeiro Deus liberto do medo e da fúria. E era Abel, também imóvel, a tentar responder, a tentar explicar, a tentar argumentar, com voz húmida, que tudo isso acontecera noutro tempo, ou seja, quando os heróis e os deuses andavam de mão dada pela memória do mundo.

E Abel de repente riu muito alto e repetiu que eram coisas que já lá vão. Que já lá iam. Se soubessem o que depois se passou!

E Zorba, aflito, temerário, ao pressentir aquela mudança, aquela gargalhada enigmática e vazia, aquelas palavras repentinas (que irá ele agora dizer?)

Uns metros à frente, era outra televisão gigante a inundar o círculo de homens apeados sobre o passeio, sobre a calçada quente, expectantes, atentos à voz do locutor que repetia, em voz off, de modo enérgico, decidido e grave –

...que o médico legista tinha razão. Que o cidadão fugitivo não era mesmo deste mundo, que se confirmava, que se tratava de um indivíduo que tinha aparecido depois de morto por variadas vezes, que após a exumação tudo parecia dar certo com aquilo que os jornais do Cairo tinham descrito. Que... e agora?

Podia lá a gente imaginar que um pobre de um etíope, ainda por cima chamado Prestes, viesse agora dizer uma coisa daquelas a um jornal egípcio. Como se um português pudesse ser assim desmascarado, como se Portugal fosse um país das bananas ou de demónios fáceis; e assim continuavam, barrigudos de cerveja e de tradição, lado a lado, frente a frente, perto da igreja, a lucubrarem, a falarem alto com aquele sotaque cheio de sibilantes dilatadas e de deixas alfacinhas...

E Zorba ainda a auscultá-los, de longe, num rodopio indisfarçável e aflito.

Por fim, como se fosse coisa programada, o grupo dos treze deu entrada na Igreja do Corpo Santo para descansar um pouco, para retemperar energias; fora proposta de Abel.
Se há Igreja aberta a esta hora, só o é por velório - disse o Senhor Gouveia. Seja como for, nos bancos de trás, há imensos lugares livres. Mais à frente, desenha-se na escuridão um grupo de carpideiras do tempo antigo, quase descalças, a ciciarem breves murmúrios, sussurros e lengalengas que mais parecem fragatas ao vento a fazerem lembrar aqueles dias ancestrais em que o Tejo e Lisboa ainda eram carne da mesma carne, coração do mesmo corpo.

E foi então que Abel fechou os olhos muito lentamente, arrastando para o fundo das órbitas a visão daquelas mulheres dilaceradas, transformadas em animais míticos, deitadas na sua retina como frutos em relvado molhado, brilhante; a remoinharem, enrolando-se como a luz sobre um novelo de lã; refulgindo em bolas de gelo, novelos de velame, nuvens da foz do grande rio da saudade. Abel fechou de vez os olhos, encostou para trás a cabeça sem dar por isso, e, como todos os outros, dormiu; terá dormido a justa conta de duas horas. Sonho sobre sonho, na última noite da sua vida. E Abel viu cores avermelhadas, gigantes, rodeando uma sala oval, aberta para o espaço. Mas que espaço exíguo seria esse?

Era um espaço do tamanho de muitas constelações, imenso. De costas para si, sobre um lindíssimo monte-de-vénus, Abel parecia distinguir a silhueta negra de um corpo feminino que, depois, se despia lentamente. Era Sara, era Leonor, era Luísa, ou ninguém? Talvez apenas uma voz, vinda do vazio interestelar, a perguntar se era menino ou monstro. Monstro ou menina. O vulto ria alto, um riso de fortúnio e fortuna. Depois, num ápice de maldição, tudo aquilo se fez em chamas e, das cinzas, surgiu o tal prado muito verde, encostado a um rio brilhante e viscoso, na margem do qual um pastor ainda conseguia sorrir diante do trevo iluminado pelas três folhas. E disse-lhe o pastor: Tinham-te dado a ver, desde o início, essas três luzes; a primeira esfumou-se rapidamente em chamas muito altas; a segunda tinha-te possuído o corpo, mas não a aventura e, por fim, a terceira, quer queiras, quer não, há-de ter-te feito o corpo e a alma para sempre aziagos. Dito isto, o pastor desapareceu e, em seu lugar, ressurgiu o enorme lobo de dentes de marfim que, talvez, devido ao olhar fervoroso de Abel, logo se pôs em fuga através dos matos e arvoredos daquela campina inóspita perto de Barcelona. Naquele tempo, diz o feitiço do sonho, que se atravessava a campina até à praia do Tejo em três horas, sobre um arrolado de troncos e alguns panos de pele de Banguecoque. Foi por aí que Ulisses conheceu Abel e dele retirou o nome, sob o olhar matriarcal de Marieva, sua mãe, e Maria Alba, mulher fundadora e sua avó. Até que um ciclone e dois terramotos varreram a grandeza do estuário, por duas vezes, em cada sete mil anos. Mas a tribo subsistiu sempre. Virada para o oceano da vida e para o derradeiro rio do silêncio. Quando Abel parecia regressar à posição de feto, dentro de uma redoma fechada e iluminada por cores boreais, deu então um enorme grito que fez eco em toda a igreja do Corpo Santo.

Acordou assim Abel e, sem querer, pregou um imenso susto às velhas ovarinas que persistiam na sua continuada ladainha. Com o coro destas e com o protesto dos familiares do morto, todos os restantes doze acabaram por acordar e, de uma só leva, saíram para o exterior.

Iniciava-se agora a noite fechada e derradeira. E, mais acima, nas traseiras da Vítor Cordon, sobre um renque de janelas ogivais e sombrias, entre malvas, alecrins e manjeronas, o corvo negro voltou outra vez a pousar.