quinta-feira, 27 de outubro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel - Episódio 13
Primeira Parte: O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Foi um tempo assustador. O próprio concurso ‘Limões e Biliões’ começou a ter quebras, por causa dos lapsos de memória que subitamente me invadiam. Lembro-me que me enchia de vontade, mas, quando as luzes se acendiam diante do meu rosto, confesso que só já descansava no fim, quando a música do genérico anunciava o termo do programa. Até então acontecia precisamente o contrário, porque, como é evidente, eu vivia com um gozo magistral aquelas cinco horas, entre as oito da noite e a uma da manhã. Sentia-me uma espécie de rei do firmamento e sentia-o com confiança, com convicção. Agora, de repente, tudo mudara.

Foi um tempo devastador. Em casa, durante as longas noites, a minha governanta assustava-se, entrava em pânico, tentava ajudar-me. Meio a dormir, meio acordado, dizia ela, eu deambulava pela casa e dizia coisas que nem lembravam ao diabo. Falava com a voz de outras pessoas, recitava de cor páginas de livros que nunca lera, imitava o som de animais exóticos. E, de manhã, quando acordava, lembro-me que o tecto do quarto parecia ficar avermelhado e, de imediato, eu era invadido por dores de cabeça monumentais, por visões de fogo e sobretudo por um estado de excesso que nem eu próprio era capaz de traduzir, de explicar, de compreender. Como o clochard Isaías disse, um dia, já mais tarde, eu era sempre o mesmo e um outro, e isso era coisa que se via nas olheiras, na curva dos olhos, na ponta dos dedos. Foi um tempo assustador, repito.

Até que me puseram a andar da televisão e o público, em massa, protestou nas ruas.
Fizessem o que fizessem, eu era de facto uma pessoa amada, querida mas solitária, furiosamente solitária, doente.
Eu era uma pessoa que me estava a dividir, que estava entrar em profunda metamorfose (se soubessem o resto!).

Júlia sorriu, nesse preciso instante, e disse, apontando para o ar, que era a Suite número 2 em D menor, BWV, 1008, prelúdio. O quê? Isto, ouçam, este violoncelo. É do Sebastião e é tão volátil e frágil como o nevoeiro, não é? O professor de comunicação abriu a boca toda, mostrou os caninos, o palato, o vestígio do caril a levitar na faringe e disse que não percebia qual era a relação. O nevoeiro apenas comunica a impaciência, respondeu Júlia a mexer no cabelo, nas trancinhas, no laço da blusa, enquanto Abel, alheio a músicas e a poesias dessas, continua ainda a lembrar-se, pela calada, que, naquele tempo, já não dizia coisa com coisa, nem recebia a filha, nem quase reconhecia a Luísa, se a visse.

E foi na manhã de hoje, sentado num banco do Campo Grande, que Abel pressentiu e percebeu tudo. Não, não era hoje ainda o DIA D; esse viria amanhã, ainda podia esperar. Não sabia como, mas era o que lhe dizia uma intuição profunda, escrita há muito na pele, no saber mais íntimo e, mesmo assim, indefinido. Foi essa espécie de estranha persuasão que terá conduzido Abel, perto do fim da tarde, à Rua do Alecrim e ao fortuito encontro com Zorba, numa esplanada recôndita. Era uma intuição que lhe advinha dos tempos mais difíceis, vividos em Banguecoque, Barcelona e mesmo em Lisboa. Abel não conseguia descrever o que lhe tinha acontecido entre tantas fronteiras e vidas, mas dispunha-se agora a ir até ao fim. Tinha a noite toda pela frente para o contar.

Até agora, limitara-se a começar a história.

Lisboa é uma cidade que se acalma nas vésperas dos grandes dias com este. Sempre assim foi. Abel tinha pela frente algumas horas, uma noite, e, talvez por isso, olhou em frente (com um misto de espanto e tranquilidade) para as luzes esfumadas de um comboio que dava agora mesmo entrada na grande gare quase vazia do Cais do Sodré.

Não, não tenho medo de o confessar, a verdade é que me transformei, sem mais, sem explicações, num homem doente, num monstro a que fora concedido o presságio ou o agoiro da metamorfose, da mudança inexplicável. Com efeito, eu sentia que algo estava em mutação acelarada dentro de mim. Na carne, nos fluidos, nos eflúvios, nos sentimentos e até nos repentes com que me maravilhava ou atemorizava fosse com o que fosse.

Sentia-me afligido por frequentes apertos nas costas, no peito, nos músculos. Corria pela casa, dizia coisas sem sentido e, durante a sesta, vagueava com ares de sonâmbulo e delirava, ensandecido, de manhã à noite. Foi um tempo assustador.

Assistia assim, na intimidade, ao destronar de um mito. O meu. E via-me, a pouco e pouco, lentamente, a cair, a cair, a cair, sem ajuda nenhuma de ninguém.

Foi um tempo de estupefacção. Tentei chamar a Arlete para junto de mim, mas já não a consegui sequer encontrar. Diziam-me - mas seria verdade? - que tinha abandonado a casa da Bica, de um momento para o outro. Mas com quem? Tê-la-iam levado para os Rebolares ou para os alternes de Espanha, ou do norte?

Como eu, às vezes, sentia saudades das tournées que tinha feito, há uns anos, como mero cantor pimba! Antes tivesse continuado a ser um bom fadista e um zeloso empregado dos Seguros!

E houve um dia em que soube que a Luísa tinha passado a viver com um tipo ligado à construção civil; uma espécie de pato bravo, um novo rico, mas que se serviu do meu dinheiro para levantar uma mansão em Cascais. Jurei vingar-me, mas era coisa vã, dita entre mim e os lençóis, entre o delírio e a raiva, entre o paradoxo e a memória às vezes um pouco perdida.

A neblina nocturna invade neste momento os vidros das carruagens. Continuam alinhadas, atrás umas das outras, até aos confins do poente nocturno. Um comboio chegou e outro acabou de partir para Oeiras. Saltam alguns passageiros e o antigo cinematógrafo podia reiniciar aqui a sua vida. Diante do grupo dos doze e de Abel.

E Abel voltou a olhar para os olhos de Isabel, como se navegasse em sangue do mesmo sangue, e repôs um ar carinhoso, oculto, condoído, talvez raro. A compaixão é, porventura, a incompleta tradução dessa saudade que é poder ser-se um outro, num momento de quase nitidez. Isabel tinha os olhos muito brilhantes, da cor do céu iluminado pelo estuário e pelas estrelas do oceano. Isabel queria saber. Isabel avançou ao lado de Lopamudra de Vidarbha, de sari flutuando no ar, e correu ao lado das carruagens vazias e alinhadas. Isabel parou e olhou para trás, sondando o grupo expectante, admirado. Voltou a sorrir, também a sós, e pensou que as respostas, fossem quais fossem, seriam sempre simples sonhos dos homens. E depois? O que aconteceu?

Abel olhou para o relógio, viu as horas e terá chegado a pensar que a noite era afinal breve. Como tudo na vida. Mas, de qualquer modo, estaria ainda toda por acontecer.

O que falta explicar é de longe o mais complicado. Será que me irão acreditar? E Isabel voltou a correr ao lado de Lopamudra de Vidarbha e perdeu-se por trás das carruagens vazias e alinhadas.

E Abel lembrou-se daquele dia em que a sua amante e amada catalã, a Sara, também correu, correu, correu, numa noite de calor escaldante, para nunca mais voltar.

Será que me vão acreditar?