Um escritor em sentido
Eu leio pouco, ponto final.
Um escritor que o diga está a cometer uma heresia, uma traição. Pois é, eu sou um traidor e um apóstata consentido. Li bastante ficção em tempos, leio hoje esparsamente, mas nada comparado com o que deveria.
Sim: o dever.
Um dever é parecido com um guardanapo branco que se estende sobre o colo em refeição consular. Um dever é também um estilhaço desprevenido que vem ter com o mais incauto. Um dever é, sem sombra de dúvida, um reflexo de luz perdido ou um passeio ao fim da tarde mergulhado no ócio e na mais pura melancolia. Num dever há tudo isso, amalgamado: um belo guardanapo de linho espalmado e recolhido, uma manobra secreta mas algo involuntária e ainda um paso doble com o próprio destino. E quando um escritor não lê o que deveria ler, como parece ser o caso, o que é que lhe poderá acontecer?
Limpa a Vichyssoise com as costas da mão. Distraído, deixa cair no chão os talheres no meio da maior das ausências. Depois, há-de ver-se a olhar em volta, enfastiado, e afastando as moscas como se fosse de avião no meio de indescritível turbulência. Uma vida sem sentido.
Sinto-me assim há anos e anos e sempre em sofrido e recatado silêncio. É um sofrimento brando, mas lento. Uma espécie de dor de dentes a saber a preguiça. E o nervo anima ainda mais o fino fado das gengivas, sempre que me vejo comparado com os vínculos estatuídos por um Fio do Horizonte, pelos questionários mundanos e habituais do JL, pelas bibliofilias almofadadas de alguns blogues e pelas entrevistas aos jovens escritores que já conseguiram integrar a caravana VIP que se desloca, à conta do orçamento do estado, a todas as feiras culturais do planeta. É uma vida sem sentido.
Estamos todos a viver no seio de uma tradição obesa que reproduz, simula ou afirma com a boca, ou com a pena, que se lê obesamente. António Guerreiro escreveu-o, com outras palavras, é claro, no nosso semanário de etiqueta (impossível lincar), lamentando a terrível vaga globalizadora, a mesma que tem colocado a tricolor francesa nos cabos mais remotos do mundo. Lembro-me, a propósito, que, nas Mitologias barthesianas (daqui a dois anos cumprirão meio século), os escritores em férias eram demoradamente retratados como seres dotados de cachimbos pensantes. Liam tudo, liam como bravos, liam todos os clássicos. Liam como se fossem já e sempre, eles mesmos, clássicos. E depois diziam em coro que “Ceci n´est pas une pipe!”. Só não liam a hemorragia de livros-produto-light que hoje se dão à estampa de sete em sete minutos. Mas estou em crer que se hoje vivessem, esses escritores leriam tudo. Linha a linha, livro a livro, tal como qualquer respeitável comentador semanal ou cronista diário o faz serena e silenciosamente.
Caso contrário, tudo isto seria uma vida sem sentido.
Não é que eu leia assim tão pouco, mas jamais o suficiente. Li o José Gil, é certo, mas só li a entrada do Museu do Louvre do Dan Brown e os halos finais de S. Tomé pela letra de Miguel Sousa Tavares. Para além de ensaios geralmente obrigatórios (nem cito autores porque esses são de facto muitos), nos últimos meses, li Roth, Don DeLillo e algum belíssimo Oz, mas não levei até ao fim o último McEwan ou o já quase ilegível Lobo Antunes (e limitei-me a raspas no que diz respeito a Sebald, Baxter, Bobin, Hoagland, Appery, Cunningham, Nothomb, Wendel, Zuravleff, Delaroche, Pietrzyk, McGarry ou Slavin. Ena tantos!). Depois, confessemo-lo de Guiness na mão, é verdade que existem escritores como Rubem Fonseca ou Patrícia Melo de que jamais acabarei de ler um livro completo, não por enjoo ou sequer tédio, mas porque adoro mastigá-los a meio caminho, como se lhes sorvesse o ritmo, a delonga da intriga e as manobras da linguagem sem nada fazer. Quieto como um pinguim no pólo sul, ou como uma lagartixa no mais denso vórtice de Agosto. Terrível preguiça, a minha.
Pois é: uma vida, afinal, sem grande sentido.
Ou seja: em sentido diante da fúria ridícula e mascarada que manda fazer o que ninguém quase faz.