O que está hoje a acontecer?
A aceleração das imagens, a coexistência do imponderável e até do incategorizável, a mobilidade como novíssima modelização do mundo, a inevitável agregação do que ainda há vinte anos podia ser visto em separado, a presença excessiva da faixa-imagem informativa e mundializada, o definhamento dos proteccionismos e das soberanias e culturas apenas territoriais, a crescente invisibilidade ética e as novas procuras do sentido, a prática de fluxos subsumida aos aparelhamentos instantanistas (jogos, viagens, cyborguização, consumo fantasmático e escrita nivelada digitalmente), a esteticização generalizada do globo, a progressiva amálgama entre público e privado e entre real e ficcional, as heterodoxias simuladas do tempo real, a tendência para uma espécie de culto que salvaguarde o presente e que não se fixe no cenário ilusório de um futuro perfectível.
Por outras palavras, a globalização é um termo que surge por ratio difficilis, como escrevi no final de Anjos e Meteoros, e que acaba por traduzir a deriva com que observamos estes sintomas reais de ruptura (como se tentássemos definir um modo ou um olhar específico que nos permitisse entender um iceberg continental que, de um momento para o outro, tivesse encetado um caminho irreversível e de consequências arrasadoras e ainda imprevisíveis).
Eu creio que a nova era para que caminhamos pode ser uma era notável. Não redentora, mas notável. Tudo o que nos aproxime dela deixa-me feliz, sobretudo porque nos afasta do ostracismo esquemático que nos construiu milenarmente através do paradigma axial (fosse escatológico, salvífico, ideológico e modernamente político). Mas concordo, no entanto, que os edifícios que herdámos e que nos garantem o conforto da civilidade e, em primeiro lugar, a respiração da liberdade (e sobretudo a democracia, criada e inventada no Ocidente para a salvaguardar) deverão ser defendidos feericamente, e deverão constituir-se como alvos de uma das duas únicas utopias que ainda considero existir. A outra diz necessariamente respeito aos cenários do próprio Globário em que e para que vivemos. Mas, uma e outra, decididamente apostadas numa guerra contra a arbitrariedade do hiperterrorismo e contra os anátemas autofágicos que percorrem suicidariamente o Ocidente.
(as verdades "sociais" da modernidade estão, hoje em dia e cada vez mais, a tornar-se num problema e não num horizonte propício a soluções. Como dizia Teresa de Sousa, há dias:
"O que é que os franceses querem? Uma Europa onde seja possível preservar o mito do 'modelo social europeu', num mundo virado de pernas para o ar pela mundialização e pela concorrência? Uma Europa em que a PAC seja eterna e as 'deslocalizações' proibidas? Uma Europa sem China, sem Índia, sem Estados Unidos a entrar pela "porta do cavalo" - com têxteis ou com 'guerras', pouco importa.")
Faltará uma nova racionalidade.
Faltará um novo enunciado que consiga dar conta do que hoje ainda aparece como deriva, como sintomatologia dispersa, ou como emanação aleatória de manifestações (já que todas elas aparecem como se não existisse uma hierarquia na faixa de hiperfactos que hoje ocupa a visibilidade mediática contemporânea).
Essa racionalidade, próxima provavelmente de uma nova "cidade cosmopolítica" (de que nos falou, há alguns anos, Virilio) é, quer se queira quer não, uma necessidade que acabará por se converter naquilo que o pragmático Peirce designou por "crença".
É das questões éticas associadas à inevitabilidade desta nova e futura racionalidade que se ocupa o meu novo ensaio que sairá, nos primeiros dias de Maio, nas Publicações Europa-América (modifiquei-lhe o nome para "A Viragem Profética Contemporânea", entendendo o "profético", entre outras componentes, como o conjunto de modalidades que instituem o controlo do futuro).