Convivência global e convivência doméstica (actualizado)
O diário holandês Volkskrant publicou, no Sábado passado, um artigo assinado por Janny Groen sobre a cada vez mais estranha relação entre pais e filhos de origem marroquina que moram na Holanda. Na abordagem de Groen, o que está em causa já não são as clássicas segunda e terceiras gerações, mas sim o caso da mais recente primeira geração, muito marcada, na sua juventude, pelo impacto do 11 de Setembro. Se, no Ocidente, o vórtice criado pelo dia das torres gémeas continua a ser visto como o início de um processo que, de um modo ou doutro, veio alterar radicalmente os paradigmas habituais de análise política e social, este caso, pelo seu lado, permite-nos confirmar esse mesmo quadro, mas agora no mais íntimo e impensado reverso da medalha.
O mais curioso no artigo de Groen - e sobretudo no que é nele subjacente - é o modo como os jovens de origem marroquina apreendem, hoje em dia, o que é o Islão. Em vez de se sustentar nos seus pilares escriturais e da tradição (hadith), o Islão acaba antes por ser moldado, por estes jovens, de acordo com um modo de desabrida e radical oposição a todos os elementos simbólicos do mundo ocidental. Quer isto dizer que, para muitos adolescentes de origem marroquina que moram na Holanda, o Islão acaba por basear-se numa interiorização caricatural, fantasmática e, portanto, diagramática.
Um “teólogo” muçulmano - o termo é, não posso deixar de sublinhá-lo, muito ocidental - da província do Brabante, de nome Mohammed Ajouaou, relata, no artigo de Groen, o que se está de facto a passar, neste momento, na Holanda. Ouçamo-lo:
"(...) tudo começa com o interiorizar de um estilo de vida adoptado por um filho e, aqui e ali, também, por uma, por uma filha. O filho entra na sala e tem sempre um comentário na ponta da língua acerca das cortinas que estão abertas. Tal pode fazer com que gente estranha veja as mulheres que estão dentro da sala. E isso não pode, de modo nenhum, acontecer. (...) Noutras situações, faz-se sentir uma pressão quase hostil sobre as mães e as irmãs para que usem o véu. A televisão também deve permanecer fechada, já que a música que dela sai não é islâmica. Numa fase seguinte, os filhos chegam a separar os pais e as mães na própria casa, sempre que há visitas."
Groen termina o artigo com esta comparação assustadora:
"Segundo Ajouau, em muitas famílias marroquinas sofre-se em silêncio. Tal como os pais de drogados compulsivos, também os pais marroquinos já não conseguem, hoje em dia, evitar a entrada do radicalismo dos filhos na sua própria casa”.
Esta conclusão revela-nos uma novíssima história acerca dos pais marroquinos que se sentem domesticamente reféns dos seus filhos e, no fundo, devido ao facto de estes respirarem um súbito fascínio pelos agenciamentos de violência global anti-ocidentais que, como se sabe, adquiriram uma nitidez muito especial na Holanda dos últimos meses. Os efeitos de contracultura já eram poderosamente conhecidos no Ocidente, pelo menos desde os anos sessenta, mas com outras cores, naturezas e devires. É por isso interessantíssima a comparação que Ajouau faz entre os pais ocidentais confrontados com o flagelo da droga e seus derivados, por exemplo, e os pais marroquinos, hoje abruptamente comprimidos pelo esquematismo pseudo-religioso.
A verdade é que, no contexto da progressiva diluição entre esfera pública e privada, que é uma das características-chave do nosso mundo contemporâneo, a situação descrita por Groen ameaça pôr drasticamente em causa a tradicional política de integração a que países como a Holanda se entregaram há umas três décadas. Este estado de coisas era inimaginável há uns vinte anos, até porque a família marroquina era então um reduto férreo e uno que, apesar das diferenças e dos traumas, não se alheava dos processos estatais que visavam intensa e honorariamente a integração das “minorias”.
Hoje em dia, o 11 de Setembro está em curso em todo o lado. Mesmo na mais aprazível sala de um apartamento de Amesterdão. Nos tempos que correm, as fronteiras entre culturas, alteridades, modos de agir e violências possíveis pulverizaram-se. E, às vezes, parecem mesmo anular-se. E ainda há quem discuta a questão da Turquia com tanto receio e impaciência!