quarta-feira, 26 de novembro de 2003

Portugal: inércias e reacções e brilhos

Depois do último post, houve já quem me contactasse para protestar. Pena é que não desse a face para uma discussão aberta sobre o tema. Quando falo de "inércia" como sendo o referente essencial das esquerdas não é meu objectivo "atacar" seja quem for. Podia ir mais longe e afirmar que esse facto é apenas o contraponto ou o correlato de um desajuste mais geral, no seio do qual a nossa direita é sempre o outro lado da moeda. Clarifiquemos:
Portugal tem uma esquerda defensiva que sabe, a nível profundo, que as suas causas e genealogias oitocentistas andam há algum tempo à deriva no meio da rede omnipolitana do mundo contemporâneo onde as referências pesadas de outrora deixaram de mobilizar as "massas". A vocação das esquerdas, mesmo das que tentam situar-se na actualidade, é sempre tendencialmente contra-cultural e filha de fantasmas anti-qualquer coisa (capitalismo, americanismo, globalização). Esse binarismo arrasta-a, às vezes, de modo subliminar e porventura involuntário, até aos limiares de algum anti-semitismo, quando não a conduz a confundir mesmo a defesa necessária das práticas democráticas com quixotismos fantasmáticos de alegado cariz anti-imperial. A reformatação da tradição iluminista das esquerdas está quase toda por fazer-se. É a minha opinião.
Por outro lado, a nossa direita é quase inexistente enquanto tal. O regime anterior não deixou semente e continuidade, como aconteceu em Espanha (e ainda bem), e, por outro lado, uma certa inteligência de direita (jovem e algo ecléctica, aliás com alguma presença na blogosfera) é sobretudo reactiva. Reage à dimensão institucional que se estatuiu nos últimos trinta anos no nosso país. Querendo ser direita, diz-se no entanto liberal; tentando ser mais papista do que o papa e fazendo da sua elegia retórica pura, não consegue dispor de um poder de afirmação que, por exemplo, já se reconheceu entre nós, com marca genuína e a título de excepção, num Sá Carneiro.
O que domina o nosso país, hoje em dia, é sobretudo um acacianismo entre o pacóvio e o fugazmente correcto, mais localista do que cosmopolita. Quando o nosso poder acena à esquerda, tem sempre o peso maior colocado ao centro; e quando acena à direita, continua a ter o peso mais pesado sempre colocado ao centro. Esta centripticidade morna e pouco criativa está longe da inércia das esquerdas e da simulação retórica das novas direitas. É sobretudo um centro que se reflecte a si próprio e que bloqueia e resiste à capacidade mais radical de inovar (veja-se a tragédia da nossa administração pública!).
A virtude de Portugal está nas linhas de fuga virtuosistas que iluminam o nosso espectro social por vezes de modo surpreendente. No meio da penumbra do amplo centro, de facto, às vezes, há momentos de brilho verdadeiramente inexplicáveis (que não se prevêem e que não têm continuidade). Esta mais-valia lusa não tem dedo de direita, nem de esquerda. É o vislumbre profundo, expontâneo e subitamente genial que, de quando em quando, de modo pontual, se afasta radicalmente do edifício de todos nós em direcção a outra galáxia. Nesta medida, Portugal é o país mais corrosivamente deleuzeano que conheço.