A crise do ensino
O meu colega Eduardo Esperança enviou-me um artigo da autoria de Pierre Jourde (professor da Universidade Stendhal, Grenoble III) que faz eco da grande crise por que passa a universidade em França, mas não só. Num mundo cada vez mais comprimido não podemos continuar a pensar que "com o mal dos outros podemos bem". Ou seja, se o 11 de Setembro se está a passar em todo o mundo, se a questão do Iraque é obrigatoriamente uma questão do nosso bairro global, também os grandes problemas da justiça planetária ou do ensino têm que necessariamente dizer respeito a todos, em cada momento. Leiamos, pois, alguns extractos do texto de Pierre Jourde para reflexão. Penso que, infelizmente, grandes partes dos males decsritos também se revelam por cá. Às vezes, hiperbolicamente:
A universidade francesa morreu. Morreu como universidade, ou seja, como comunidade científica em que a investigação se associa a um ensino especializado de alto nível. Sobram alguns estabelecimentos pedagógicos pós-ensino secundário. Mas a universidade foi morta pela mediocridade.
Postos de trabalho “secundarizados"
Pensa-se que a universidade emprega os melhores professores. Isso já foi verdade, mas é-o cada vez menos. A especialização desaparece em proveito de uma docência pedagógica ou didáctica. Neste âmbito, o ano de 2003 será memorável: em letras, não foi houve qualquer novo posto de trabalho na área da investigação com a categoria de "maître de conférences" em literatura do século XIX, ao mesmo tempo que houve uma vaga de colocações em "técnicas de expressão". Trocado por miúdos: a universidade não passa de uma espécie de liceu onde os professores têm de esforçar-se por ensinar os alunos a saber construir uma frase. Muitas matérias para as quais não há nenhum docente universitário titular são entregues a professores provisórios pedidos de empréstimo aos liceus. Ou então recrutam-se professores agregados, escravos da universidade que têm de assegurar o dobro de horas pelo mesmo salário, que andam sempre cheios de trabalho e não têm tempo nenhum para se dedicarem à investigação.
Carências do recrutamento
Quando se abre concurso para um verdadeiro posto de trabalho, o "localismo" galopante implica que ele seja atribuído, não à pessoa mais meritória, mas àquela que já lá está e que previamente foi prevista para o ocupar. Os concursos tendem assim a tornar-se falsos concursos. Os candidatos bem podem enviar dossiês volumosos, atravessar o país de lés a lés, cheios de esperança e de angústia, porque acabam por fazer mera figuração democrática num espectáculo em que tudo está antecipadamente decidido. 0 título do posto de trabalho corresponde de modo muito preciso à tese do candidato local. Um reitor formado em electrotécnica pode muito bem meter-se numa comissão de literatura para que o candidato local seja eleito. Um conselho de administração pode perfeitamente anular a eleição de um candidato que não é do sítio. Quem manda pode fazer eleger a mulher, o filho, o cunhado, ou o filho do farmacêutico local, sem ter em conta as qualidades do respectivo currículo - porque, se o candidato não for pessoa conhecida, não poderá ser o melhor aspirante. A reforma do antigo ministro da Educação Claude Allègre facilitou uma tal evolução. Antes disso, todos os professores eram membros de pleno direito das comissões de recrutamento, um sistema simples, eficaz e que limitava os riscos de ruptura. Os serviços da Educação Nacional têm o génio da complicação. Actualmente, estas comissões são eleitas a partir de listas, coisa que as reduz muito e facilita o domínio que uns quantos indivíduos podem exercer sobre os recrutamentos. 0 projecto de descentralização só fará agravar as coisas.
Pobreza das instalações
Qualquer pessoa que tenha frequentado as universidades italianas ou inglesas pode avaliar a que ponto a maioria dos professores e dos estudantes vivem em França num ambiente de fealdade quotidiana. Edifícios hediondos, vetustos, cinzentos; salas de aulas e escritórios em número insuficiente, patibulares e a abarrotar; míseras bibliotecas; campus sinistros, imundos, semelhantes a bairros periféricos, afastados dos centros das cidades, sem vida fora das aulas. Ao que parece, a urgência consistiria em alinharmo-nos pela Europa na organização dos estudos. E se imitássemos a Europa no tocante à qualidade das instalações universitárias?
Mesquinhez financeira
Os colóquios representam um elemento importante da vida universitária e da difusão dos saberes. Mas já não há dinheiro para isso. A organização de tais iniciativas e a publicação das actas tornou-se, para os professores que por isso se responsabilizam, uma esgotante caça ao subsídio, um exercício de preenchimento de quilos de dossiês. Os organismos municipais ainda vão concedendo algumas subvenções, com a condição de o tema ser local. Se alguém quiser organizar um encontro internacional sobre um assunto internacional numa universidade de província, será obrigado a apelar a muita imaginação e esperança. Se o conseguir, terá de receber os congressistas num parque de campismo ou em hotéis manhosos. Deverá, além disso, exigir o pagamento de inscrições aos seus convidados, os quais, por conseguinte, terão de pagar para trabalhar. Para um conferencista, o regulamento prevê um máximo de 38 euros no tocante ao alojamento (incluindo o pequeno almoço) e de 15 euros quanto a despesas de alimentação. A mais simples deslocação, para se participar num júri de tese ou numa comissão, implica o preenchimento de documentos tão variados como numerosos, ficando o interessado à espera do reembolso durante semanas ou meses. Alguns, cansados de tais coisas, acabam por renunciar.
Reformas ininterruptas
A universidade parece-se com uma casa cujas obras nunca acabam. Todos os anos ou de dois em dois anos as obras recomeçam, arranca-se a alcatifa, atira-se uma parede abaixo, acrescenta-se aqui mais uma torre, acolá um anexo, um andar noutro sítio, de tal jeito que em vez de ficarmos com um edifício funcional e habitável, vivemos num inominável mamarracho, sempre perante riscos de desmoronamento, a tropeçar no cascalho das demolições. Cada novo ministro ou cada novo conselheiro de ministro acrescenta uma nova disposição legal, inventa uma comissão suplementar, concebe a sua reformazinha pessoal, tudo coisas que vão implicar mais reuniões, assembleias, circulares, relatórios, resumos, avaliações, interpretações e glosas dos textos sagrados mas anfigúricos publicados no Diário da República. Uma vez tudo isso terminado, desfaz-se o que foi feito e recomeça-se. Ainda mal as pessoas tiveram tempo de compreender os meandros da nova reforma, já outra vai ter de as ocupar, num incessante e monstruoso dispêndio de energias.
Burocratização
Doravante, ser professor universitário significa sobretudo ser um burocrata. Duas coisas obcecam a administração central: o controlo e a invenção de novas estruturas. Com tanto bizantinismo e tantas contorções, a organização dos estudos, dos exames e das notas tornou-se de tal maneira confusa que os estudantes não entendem patavina - e às vezes os próprios docentes só com esforço percebem. Chegamos assim ao seguinte paradoxo: os responsáveis, a pretexto de facilitar os estudos, tornam-nos opacos. Deste modo, os meios substituem quase inteiramente os fins. A organização de tudo pelas normas europeias justifica agora toda a espécie de reformas. Mas na particularidade do sistema francês não se toca, ou seja, no seu triplo ensino superior: Universidade, Grandes Escolas, Instituto Universitário de Formação de Professores do Ensino Básico e Secundário (IUFM). As grandes escolas permitem que as elites fujam da mediocridade universitária; os IUFM caricaturam os defeitos da universidade, tendo-se tornado enormes e ruinosas fábricas burocráticas onde a maior parte da energia se perde em reuniões, processos e relatórios, onde os estudantes se queixam regularmente (mas em vão) de ter de suportar matérias muitas vezes ineptas, demagógicas e sem utilidade real.
Obrigações de trabalho acrescentadas
Desde 1981, quando de uma só pe- nada foram aumentadas 50 por cento as obrigações de ensino, os docentes universitários submeteram-se à vaga das reformas, à multiplicação do número de alunos, à lenta degradação das suas condições de trabalho. Agora, na maior parte dos casos, o docente tem de ensinar, preparar as aulas, corrigir os testes, receber os alunos, participar nos júris de fim de semestre, em toda a espécie de reuniões; tem de se informar sobre a nova reforma em curso e de tentar aplicá-la, de participar em comissões de especialidades (relatórios, dossiês, reuniões), em diversas comissões nacionais (idem), na orientação de teses ou de mestrados (por vezes às dezenas), de participar nos respectivos júris, de preencher processos verbais, relatórios, dossiês a respeito de tudo e de nada, de assumir tarefas administrativas - dirigir o ano lectivo, o departamento, a unidade de formação e investigação, a universidade, os conselhos científicos ou de administração, o conselho de estudos e da vida universitária, fazer peritagem de exames e dossiês, presidir júris de fim do ensino secundário, dirigir centros de investigação, revistas, colecções (e portanto examinar manuscritos), assistir a seminários e colóquios, e talvez ocupar-se da respectiva organização, e enfim, se lhe restar algum tempo, ser investigador, ou seja, ir a bibliotecas, escrever livros ou artigos. 0 professor universitário vê-se assim muitas vezes perante duas hipóteses: ou renuncia a toda e qualquer investigação para se dedicar ao ensino e à burocracia, ou elimina a sua vida privada. O sistema já não concebe que o professor do ensino secundário ou universitário tenha tempo. Já nem sequer concebe o ingrediente necessário à reflexão, a liberdade. Um investigador já não pode fazer investigação sozinho ou com colegas escolhidos, tem de integrar-se em equipas (que são mais umas pequenas máquinas administrativas), bem como nos seus programas de investigação; ou faz isso ou morre. E normal que lho proponham, mas que isso se torne uma obrigação é absurdo. Nada melhor para eliminar radicalmente qualquer possível originalidade. Assim sendo, por falta de tempo livre para dedicar à reflexão e ao trabalho a longo prazo, por falta de simples liberdade, há uma categoria da sociedade francesa que está a desaparecer: o intelectual. Quem poderá fazer aquilo que a administração não previu nem planificou que ele fizesse? Quem poderá ainda dedicar-se à escrita de um grande romance, de um ensaio importante? A proliferação burocrática está a substituir o intelectual ou o criador pelo pedagogo ou pelo funcionário. Vamos ter a vida cultural que as reformas do ensino nos prepararam.
Diplomas desvalorizados
Com o enorme aumento dos seus efectivos, a universidade foi confrontada com o insucesso maciço que ocorre no 1° ano. Os reformadores recusam-se a admitir que este insucesso se deve a lacunas profundas dos estudantes, herdadas do ensino primário e secundário, e que todo o sistema está em causa. Não afirmamos com isto que "o nível baixa" nem que os estudantes são globalmente incompetentes. Mas qualquer professor do ensino superior sabe perfeitamente que as universidades tiveram de receber massas de estudantes incapazes de acompanhar uma aula rudimentar, de redigir um texto simples ou de o compreender. Os responsáveis agiram de maneira a que pudessem terminar o ensino secundário estudantes cujo nível de incultura é de pasmar, que não dominam a sintaxe, a ortografia, o vocabulário. Segundo as autoridades, de que muitos jornalistas especializados se fazem eco, a solução consistiria em reorganizar os exames, as disciplinas e as práticas de ensino. Primeiro exigiu-se que os docentes universitários se mostrassem mais pedagogos. Coisa que corresponde, por obsessão pedagógica de princípio, a ignorar a realidade do ensino. 0 mandarim que debita o seu discurso sem procurar fazer-se entender tornou-se ave rara. Há muito tempo que os universitários explicam e simplificam. Mas ultrapassando-se um certo grau de simplificação, aquilo que se quer ensinar deixa de ter conteúdo e significação. Depois os primeiros ciclos universitários foram desprovidos de quase toda a especialização, sendo os exames organizados de tal forma que as más notas pudessem ser compensadas ao máximo. Actualmente, um estudante de letras que apesar de todos os esforços "pedagógicos" não sabe conjugar um verbo do terceiro grupo, que ignora os rudimentos de qualquer cultura literária, que confunde Victor Hugo e Zola, a Revolução Francesa e o surrealismo, poderá obter um diploma de estudo universitário geral (DEUG) de letras juntamente com informática, desporto, técnicas de expressão e uma opção de cinema. Posteriormente considerou-se - mais uma ideia genial - que o insucesso escolar resultava de uma má orientação. As autoridades tiveram mais uma vez de fazer habilidades com os horários e a organização dos estudos para prever trocas de cursos e passagens de uma faculdade para a outra. Tudo porém evidencia que o insucesso de massas provém das lacunas de base, as quais revelam os mesmos problemas em geografia, filosofia, inglês ou psicologia. Para se conformarem com o molde europeu, os estudos foram "semestrializados" (ou seja, foram duplicados os períodos de exame). Por outras palavras, jovens que saem do secundário, que não sabem nada da universidade, dispõem de doze sessões de aulas, em vez de vinte e quatro, antes de passarem o exame. E fácil imaginar a que ponto pode também semelhante medida reduzir a percentagem de insucesso...
Ilusão Demagógica
O insucesso escolar suscitou em grande parte uma espécie de assistência social. É preciso recomeçar tudo pela base: saber como tomar notas, como utilizar uma biblioteca, como construir uma frase, como fazer concordar um particípio. Multiplicam-se as muletas, os amparos, os exames de recuperação, as aulas de metodologia. Evita-se ao máximo ensinar a disciplina propriamente dita. Todos os anos se inventam novos truques com vista a melhorar as estatísticas. Os resultados destas permanentes contorções para a todo o transe se obterem boas percentagens de êxito escolar consistem na criação duma gigantesca ilusão. Todo o sistema escolar, desde o ensino básico, confunde qualidade e quantidade. As pessoas regozijam-se com um melhoramento puramente estatístico, que não corresponde a competências reais. Cada vez mais jovens prolongam os seus estudos numa universidade que já não tem saídas profissionais a oferecer-lhes. Os diplomas são desvalorizados pela demagogia que tende a excluir toda e qualquer selecção, oferecendo poucas perspectivas profissionais claras, pelo menos nos sectores generalistas. Restam os concursos. Mas nestes a selecção mantém-se, obviamente. E as grandes escolas obtêm a maior parte. De maneira que muitos jovens terão assim sido encaminhados para becos sem saída. Quanto aos referidos IUFM, estes oferecem a muitos estudantes a perspectiva de se tomarem professores de escolas primárias ou do primeiro ciclo do secundário, se tiverem êxito no concurso. Mas nesta instituição de formação acentua-se cada vez mais a teoria do ensino em detrimento dos conteúdos das matérias. Este sistema, portanto, formará professores primários repletos de didáctica e de psicologia infantil. Mas não formará melhores pedagogos; criará docentes aptos a fazer trabalho de animação e a perpetuar o embuste que articula todo o sistema, mas que serão desgraçadamente incultos. E tudo recomeçará, desde o princípio.
De facto, a reflectir...