quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Repto aos nossos jornalistas

O editor de ciência da Folha de S. Paulo e um repórter do mesmo jornal decidiram criar uma igreja. Fé? Não, nada disso. O objectivo dos jornalistas nada teve que ver com predilecções proféticas, nem como fragilidades existenciais, muito menos com pagamento de promessas. Não, o que Cláudio Ângelo e Rafael Garcia quiseram questionar, ao criar a sua própria igreja (designada “Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio” – assim mesmo), foi a razoabilidade da isenção de impostos às igrejas e o sentido da existência de “tantas regalias a grupos religiosos”.

É de salientar a grande facilidade com que uma ‘manobra’ destas pode ser realizada no Brasil. Burocracias à parte, é um facto que a lei não coloca condições de ordem teológica, nem tão-pouco exige a prova de um dado número mínimo de fiéis. De qualquer modo, com o registo da novíssima igreja, os jornalistas da Folha ficaram livres de um inusitado número de “Is” – para utilizar a económica expressão de Hélio Schwartsman (IR, IOF, IPVA, IPTU, ISS, ITR, etc.) – e os seus sacerdotes, logo que “ungidos”, se alguma vez o forem, ficarão automaticamente livres do serviço militar e sujeitos a requisitos penais especiais.

Em Portugal, a regulamentação da Concordata que data de 2004 parece (o verbo adequa-se) ter terminado com a isenção generalizada de impostos e de segurança social. De qualquer modo, o Artigo 26 (nº 3) da Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa fixa algumas isenções (imposto de selo, impostos sobre a transmissão de alguns bens, actos de instituição de fundações ou ainda, entre outras, actividades de solidariedade social e educação).

Já o artigo 27, na sua ambiguidade críptica, refere (no nº 1) que a “Conferência Episcopal Portuguesa pode exercer o direito de incluir a Igreja Católica no sistema de percepção de receitas fiscais previsto no direito português”, especificando-se, na continuação (no nº 2), que a “inclusão da Igreja Católica no sistema referido no número anterior pode ser objecto de acordo entre os competentes órgãos da República e as autoridades eclesiásticas competentes”.

Nada me move contra a igreja, como é evidente. A liberdade deve comandar o barco do novo século. Acima de todos os valores. Vai mesmo ser muito curioso ver as comemorações da República a falarem dos receituários de ouro, da ética maior e das ‘nobres’ ideias, porventura obliterando aquilo que foi o apanágio menor – ou mesmo rarefeito – do sistema: a liberdade.

Contudo, não deixa de ser curioso como, entre a abertura infinita à isenção, caso do Brasil, e a enigmática ‘quadratura do círculo’ tão habitual na Lusitânia, a fiscalidade se torna, deste modo, em tema tabu. Ou quase. Entendendo-se por tabu tudo aquilo que carece de explicação ou de sentido e que, por isso mesmo, é, por natureza, dir-se-á, avesso à inquirição, à pesquisa e à definição. É tabu o que vale por si próprio sem regra que o possa descrever, decifrar ou tecer. E sem que dele se deva falar.

É como se as religiões navegassem num mundo para além do ‘vil metal’, embora nele se funde muito do que alimenta as múltiplas actividades que levam a cabo. Acredito que uma aventura, como a de Cláudio Ângelo e Rafael Garcia, mas agora protagonizada, entre nós, por dois jornalistas do Expresso teria outros efeitos. Com toda a certeza interessantes. Fica o repto. Até porque é nos interstícios do sistema que ele melhor nos ilumina.

Fontes:
Folha:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/helioschwartsman/ult510u660688.shtml
Concordata:
http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?id=8896