terça-feira, 11 de março de 2008

O texto que a Isabela não leu

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Eu também concordo, Isabela, que perdemos uma boa ocasião para dizer alguma coisa sobre o que o meu livro pretendia abrir (sim, um livro pode ser uma faca sem lâmina que abre um envelope sem fim). Por isso, deixo aqui o belo texto da Isabela que não foi - infelizmente - revelado na Casa Fernando Pessoa, na passada quinta-feira:
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"As linguagens seculares estão em declínio. Penso que o fenómeno reflecte, inapelavelmente, o tempo pouco rigoroso que atravessamos e atravessaremos. As linguagens seculares carregam o peso da erudição, de um discurso nem sempre fácil, reclamando concentração, e os tempos são outros: o leitor procura, na literatura, como no resto, o fácil e o rápido, conclusão a que chego sem censura: também estou cansada de certos discursos seculares, os quais, frequentemente, pouco me dizem. Os blogues têm sabido responder a esta procura, com texto curto, inteligente e satírico, cuja leitura não exige acurada atenção. Por outro lado, usando as linguagens não textuais, como a "caderneta de cromos", ou seja o fotoblogue, e a praga do You Tube. O You Tube fala pelo bloguista. Exige-lhe menos trabalho, e satisfaz por igual o leitor, confrontando-o com informação nova e inesperada. A questão da autoria é alheia ao leitor do blogue. Não lhe interessa quem produziu o que lê ou vê, mas a emoção produzida.
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Este é o estado das linguagens seculares, e é assim porque o mundo mudou, nós mudámos, a cultura mudou. Deseja-se interacção, imediatismo e intensidade. A ficção tem dificuldade em superar a intensidade da vida real. O carácter excessivo da vida real colide com o pudor da ficção. Como ficcionar a realidade sem a tornar inverosímil, sem a transformar numa novela das 7? A ficção perdeu pathos. A grande literatura perdeu pathos. Os leitores emocionam-se com o big brother, por excelência a novela da vida real, e é nesse aspecto que o blogue de quotidiano, diarístico, confessional, entra, e funciona. O blogue torna-se uma espécie de big brother que o autor manipula a gosto, seleccionando as imagens do seu real que quer passar. E passando-as, escolhe a música de fundo com que pretende que sejam visionadas. A vantagem do blogue no qual se insere O Mundo Perfeito, e o seu sucesso, está neste equilíbrio inconfessado, nunca verdadeiramente declarado, entre o real e o ficcional. Por vezes não interessa nada ao leitor que aquele poste seja a realidade. Por vezes, só consegue lê-lo como autobiografia em estado puro. Para mim, enquanto bloguista, tanto faz. O texto postado é para o leitor aquilo que o leitor precisar de ler nele. Nisto, o blogue revela uma plasticidade insuperável, e é um meio de comunicação absolutamente surpreendente.
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A actual tendência para a uma literatura rápida, curta, confessional, regista visível crescimento a nível editorial. Não me lembro de as livrarias exibirem tantas novidades editoriais na área do memorialismo, do texto biográfico e autobiográfico bem como irónico, auto-irónico. Os leitores procuram a confissão, o documento: mais uma vez, o pathos da vida real que tão bem serve o blogue-diário. N' O Mundo Perfeito, por exemplo, os leitores preferem as aventuras pseudo-verídicas da Isabela, operária suburbana, solteirona, com excesso de peso, uma mãe, duas cadelas, que trabalha numa fábrica de parafusos, e evidencia uma certa má relação com os homens e o sexo. A Isabela tem um passado de vivências exóticas e intensas, sonha um futuro qualquer que há-de vir, e narra as aventuras da sua vida solitária e social, os amores e desamores, traumas, medos, caprichos, incoerências, revelando uma humanidade tão chã quanto nobre, com a qual o leitor vulgar se pode identificar. "A Isabela é perfeita, mas a Isabela não é perfeita. A Isabela é como eu ou a Isabela é tudo o que desprezo. Amo-a. Odeio-a." Escreva a Isabela bloguista o que escrever, o que até poderá ser a fórmula química da vacina contra a sida, e os leitores não recusarão ler e comentar, mas o que vende, o que aqui se procura, é a personalidade amorosa, mas brutal, contraditória, radical, teimosa, idealista, bastante romântica e vagamente fora de moda e contracultura da Isabela, que se pode amar e odiar livremente, a quem podemos deixar declarações de amor ou insultos, coisa que não podemos fazer relativamente à Clara Ferreira Alves ou outras "personagens" pelas quais sentimos igual paixão. As linguagens seculares pouco entram neste insuperável trânsito de pathos. Desprezam o confessionalismo, olham-no tão de lado quanto possível, mesmo que se declare contaminado."
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"Isto seria o que eventualmente teria dito sobre o tema "O modo como as linguagens seculares (que aprendemos sem ter em conta a rede) se moldam, hoje em dia, à rede e mais concretamente aos blogues", caso esta conversa tivesse ocorrido na Casa Fernando Pessoa, no passado dia 6. Como não aconteceu, deixo aqui a minha participação. Para a próxima, por favor, convidem-me a participar via net, e assim posso vir logo para casa vestir o pijama e meter-me debaixo do aquecedor enquanto vejo o telejornal."