sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Crónica sobre o regicídio

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EPISÓDIOS E METEOROS
- 69 –
(crónica extraordinária, hoje editada no dossiê do Expresso Online sobre o regicídio)
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O regicídio foi hoje
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A minha família é toda de Vila-Viçosa e, embora, tenha nascido e crescido na vetusta Évora, a verdade é que a maior parte da infância, rodopiada entre ecos, brados e segredos de tempos áureos, foi toda calipolense. As tias, as amigas das tias, as vizinhas e as mil personagens que tinham conhecido por dentro a família Espanca, os parentes de Henrique Pousão ou os passos secretos de Bento de Jesus Caraça sabiam tudo sobre a vida do palácio, sobre as aias da rainha e sobre as manchas de sangue do rei assassinado (que, em criança, vi e revi várias vezes à moda de um animatógrafo real), como lucubravam sobre as desventuras arquitectónicas do então jovem Nuno Portas, sobre as aparições de fantasmas nas muralhas do castelo ou sobre as mortes nas ainda incipientes pedreiras de mármore.
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O regicídio era, entre essas lendas e narrativas de fôlego, o tema tabu, mas também o mais rebuscado e tentador. Não havia ainda televisão e, na sala-de-estar da minha Tia Guiomar (uma mulher fabulosa que administrava uma fábrica e representava vários bancos na terra), havia quem tocasse violino, quem jogasse às cartas ou se entregasse aos rumores do chá da meia-noite. Eu abria os olhos e resistia ao sono, mas sem deixar de escutar os desvarios sobre o espiritismo e sobre as freiras fugidas à guerra civil espanhola que amiúde se misturavam com a tragédia real. De facto, a certa altura, as vozes segredavam e evocavam os inúmeros agoiros que haviam precedido a última viagem de D. Carlos entre Vila-Viçosa e o perigoso Terreiro do Paço lisboeta.
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Ainda hoje essas vozes têm condão monárquico, mas apenas por causa da intemporalidade com que se fazem sentir: como num limbo já fora do tempo, mas tão parecido com o abandonado caminho de ferro da vila que se esvai por olivais em direcção às vinhas de Borba, aos mármores de Estremoz, à silhueta de Évora e à mancha esventrada onde submergirá o Barreiro. Hoje, a intemporalidade saiu de cena. E o que ficou em vez dela foi a palavra ´República´ e a palavra ´Monarquia´. Mas não o essencial. Como se um mundo perdido não fizesse, de qualquer modo, parte íntima e intrínseca de todos nós. Como se a máscara teimasse em ser o que não é. Nem nunca será. Porque o regicídio voltou a ser hoje. Mesmo que os pretensos donos da ´História´ pensem que tudo isso é matéria já devorada, expurgada e passada de vez.