quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Pré-publicações - 73

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António Brito, Olhos de caçador, Sextante Editora, Lisboa, 2007.
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Pré-publicação:
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"Aquele que um dia foi soldado"
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"Passou muito tempo desde que matei um homem pela primeira vez. Na minha cabeça embotada pelo vinho e pelo peso dos anos, recordo com uma ponta de vaidade o destemor do meu golpe, o ar de espanto, a incredulidade do filho da puta em que enterrei a navalha varando-lhe as tripas. Com o impulso dessa naifada o corpo resvalou para o chão, dele brotando soluços de sangue como numa torneira avariada.
Nessa época tinha a cabeça cheia de certezas e matar alguém era um acto viril, um gesto de atrevimento que nenhuma lei me impedia de executar. Tão diferente dos dias de hoje, em que qualquer sopro de vento ou bandalho de quinze anos é suficiente para me derrubar e atirar aos cães.
[…]
Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que as mazelas da idade só as conhecia por ouvir os outros queixarem-se delas. Ignorava-as por não me dizerem respeito. Desprezava-as por indiciarem fraqueza.
Sou uma sombra daquele gajo descarado e atrevido, rufião e fura-vidas que aos vinte e tal anos foi atirado para dentro dum navio e despejado no sertão africano. Naquele tempo de ousadia e violência, fui soldado, contrariado desde o dia em que me gritaram as primeiras ordens.
[…]
Recordo os dias em que fazia contrabando para Espanha como forma de vida, uma iniciação para nós, os rapazes mais velhos. Recordo a guerra em África, uma saída para o mundo que nos havia de devorar, como aos velhos soldados já esquecidos, só recordados nas lápides frias dos cemitérios.
Mas hoje, antes que a senhora da gadanha afiada decida vir buscar-me, recordarei pela última vez como tudo começou, quando me atiraram para dentro do navio e a África me tragou com o seu apetite voraz.
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Do contrabando à mobilização
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Com a aproximação do equador na segunda semana de viagem, o anoitecer encontrou-me de novo lá em baixo no calor abafado do porão, com os soldados a viajar amontoados naquele ambiente fechado, fedendo a óleo de motor, comida azeda, peidos e fumo dos cigarros. Os porões de carga nas catacumbas do Niassa tinham sido transformados em camaratas para alojar todo o contingente. Viajávamos deitados em centenas de tarimbas estreitas, suados, vomitando com o enjoo, sem podermos dormir ou descansar tranquilos.
Atordoado e em desequilíbrio pelas sacudidelas do mar, arrastei-me do beliche para o chão, e caminhei para a porta através de uma névoa de fumo que empastava a respiração.
– Zé Fraga, aonde vais? – perguntou lá do fundo Cu de Chumbo, o padeiro da Companhia.
– Apanhar ar, antes que desmaie no meio desta merda – respondi-lhe, agoniado.
Subi as escadas aos tropeções e saí para o fresco da noite. Encostei-me ao varandim exterior do navio e urinei para o mar toda a cerveja e uísque das últimas horas. Foi um esguicho curvo, empurrado pelo vento, que borrifou as janelas dos níveis inferiores.
A deslocação das ondas acentuava o desassossego que me ia no estômago. Vomitei de novo, num jorro longo, libertando das entranhas o álcool que fermentava e me mantinha num permanente estado de embriaguez. Com a cabeça à roda, sentei-me numa cadeira e acendi um cigarro. Em baixo as ondas batiam no casco à medida que o Niassa avançava descendo o Atlântico para o Sul da África. A minha bebedeira avançava com o barco. Desde a partida de Lisboa que vinha esvaziando garrafa após garrafa compradas no bar com o dinheiro ganho à lerpa e ao abafa, no casino do porão. A noite estava amena. O firmamento palpitava com o cintilar das estrelas. Mas eu seguia num desassossego.
[…]"
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.