sábado, 20 de outubro de 2007

Episódios e Meteoros - 53

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O PSD e a ambiguidade do ornitorrinco
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(crónica publicada desde anteontem no Expresso Online)
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Há pouco mais de dez anos, parece que foi hoje, comprei em Roma um livro que se debatia com o problema do ornitorrinco. Um problema que deu dores de cabeça aos investigadores europeus, a partir de 1799, quando confrontados com um animal que encerrava em si uma mistura estranhíssima de géneros: mamífero que põe ovos e que vê o leite escorrer ao longo do corpo peludo, apoiado ainda por cima, imagine-se, em patas que atrás têm esporões e à frente umas asinhas. Um quebra-cabeças do diabo capaz de ameaçar regras estáveis, paradigmas conhecidos e imagens experimentadas. Um panorama próprio dos prodígios de Boaistuau e das monstruosidades de Ravenna. O livro que comprei naquele belo verão romano era, de facto, um tratado de Umberto Eco - Kant e o Ornitorrinco - que viria a ser mais tarde traduzido para Português (em 1999) por José Colaço Barreiros.
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A grande conclusão da obra (à parte as reflexões semióticas) é a de que, confrontados com coisas desconhecidas, todos nós somos invariavelmente levados a integrá-las em modelos já antes experimentados. O exemplo do cavalo nas civilizações pré-colombianas é, neste caso, semelhante ao do ornitorrinco na Europa sete e oitocentista. E o exemplo do PSD outonal de 2007 não deixa de ter as suas semelhanças com o modo de compreender o ornitorrinco, na medida em que a tentação de se reduzir Menezes a Santana - este último já todos conhecemos - evidencia idêntico e apressado raciocínio. É, pois, natural que
José Pacheco Pereira tenha escolhido a metáfora do ornitorrinco para se apresentar, ainda que de modo interposto e virtual, ao recente congresso de Torres Vedras do partido laranja.
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Há, com efeito, em
Pacheco Pereira uma visão do partido político à imagem da perfeição cívica, facto que mais se aproxima do modelo de José Régio, quanto, na Confissão de um homem religioso, contrapôs o "deus dos filósofos" ao "deus da fé". É que o primeiro correspondia a qualquer coisa que podia ser reflectida, equacionada e ponderada. Enquanto o "deus da fé" apenas podia ser vivido como desígnio puro e espiritual. O verdadeiro PSD, que os amantes do ornitorrinco inevitavelmente designam por "populista", é um partido de fé, não discutível e profundamente profano ao nível da sacristia do aparelho. O PSD da reflexão, o de Pacheco Pereira , é como o "deus dos filósofos" que poucos entenderão: um pouco ao sabor da ideia platónica de cavalo que nada tem que ver com cada cavalo em concreto, revisto na sua crina incerta, na sua vitalidade selvagem e no seu destemido fôlego de trote.
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A razão tê-la-á
Pacheco . Como Sócrates, o antigo. Enquanto Menezes começa a fazer da imagem ambígua do ornitorrinco a sua própria marca. Veremos se o embaraço que Menezes já está a criar se pode comparar ao dos investigadores ingleses de 1799, diante desse "exemplo fantástico de adaptação ambiental", como escreveu Eco, "que permitiu a um mamífero sobreviver e prosperar nos rios".