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O Hímen e o Eixo do Mal
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Ia a atravessar a Diagonal, em Barcelona, como quem vem da “Alta” para o “Fórum” e eis que, a certa altura, reparei na janela oval que unia o rés-do-chão às folhagens do plátano que acolhiam o resto da exuberante fachada. E dizia o meu amigo Jordi, engenheiro hidráulico e por isso conhecedor de raros equilíbrios poéticos, que aquela janela sempre o havia levado a imaginar que, do outro lado, se esconderia uma sala imensa onde se sentam à mesa todos os descobridores do mundo. Colombo, Pinto, Polo, Scott, Zarco, Rhodes, Gama e muitos outros ali se encontrariam fora do tempo, discutindo as curvaturas do planeta e as terras do nada que se entreabrem entre o que se diz e o que acontece.
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Quando aterrei em Lisboa, segui quase automaticamente para o novo interface dos sentidos que é, como se sabe, o sofá diante da televisão (para o homem medieval, esse interface teria o nome de uma qualquer oração). Era noite, estava cansado e dei comigo a ver o exaltado “Eixo do Mal” na SIC-Notícias. Reparei que, tal como na belíssima janela da Diagonal, havia por trás da exaltação dos comentadores o incontido ímpeto de falar acerca de acontecimentos que a semana portuguesa suscitara. Os personagens focados pela novela eram Menezes, Mendes, Lopes, Sócrates e alguns outros que, para mim, subitamente, pareceram navegar fora do tempo. Com efeito, depois dos dias em que me consegui escapar da paróquia, aqueles nomes tinham-se tornado tão irreais quanto os que Jordi ainda continua hoje a imaginar perto da fonte onde um grilo catalão serve água a uma ninfa de olhos vendados.
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A sensação de ver discutir sobre o que se passa num aquário fechado, embora aparentemente ilimitado, não é exclusivo de ninguém. A oração para o homem medieval cumpria precisamente a mesma função hermética. Só que, no seu caso, a água escorria na vertical, como acontece nas oclusas do Canal do Panamá, entre ele e uma omnipresente divindade. Enquanto que, no “Eixo do Mal”, as cinco vozes vivem do hímen que as prende às narrativas delicadas do nosso rectângulo, ainda que com a aparente certeza de que o que se diz dá a volta aos oceanos da Terra, à moda endiabrada do El Niño. É por isso, porventura, que os novos deuses são tão, ou mais invisíveis que os medievais: “enquanto fazem as contas” e aguçam os planos, já as coisas aconteceram. E já tudo sobre elas terá sido dito. E esgotado. Fica apenas um ruído ao longe. Como o dos ralos de Atenas. Deixei-me, pois, dormir. Que nem um menino. E fui logo para a cama. Mau feitio, o meu.
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Mas o Jordi, o Colombo, o Pinto, o Polo, o Scott, o Zarco, o Rhodes e o Gama lá continuam ainda, como se nada fosse, no número 422 da Diagonal.
Ia a atravessar a Diagonal, em Barcelona, como quem vem da “Alta” para o “Fórum” e eis que, a certa altura, reparei na janela oval que unia o rés-do-chão às folhagens do plátano que acolhiam o resto da exuberante fachada. E dizia o meu amigo Jordi, engenheiro hidráulico e por isso conhecedor de raros equilíbrios poéticos, que aquela janela sempre o havia levado a imaginar que, do outro lado, se esconderia uma sala imensa onde se sentam à mesa todos os descobridores do mundo. Colombo, Pinto, Polo, Scott, Zarco, Rhodes, Gama e muitos outros ali se encontrariam fora do tempo, discutindo as curvaturas do planeta e as terras do nada que se entreabrem entre o que se diz e o que acontece.
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Quando aterrei em Lisboa, segui quase automaticamente para o novo interface dos sentidos que é, como se sabe, o sofá diante da televisão (para o homem medieval, esse interface teria o nome de uma qualquer oração). Era noite, estava cansado e dei comigo a ver o exaltado “Eixo do Mal” na SIC-Notícias. Reparei que, tal como na belíssima janela da Diagonal, havia por trás da exaltação dos comentadores o incontido ímpeto de falar acerca de acontecimentos que a semana portuguesa suscitara. Os personagens focados pela novela eram Menezes, Mendes, Lopes, Sócrates e alguns outros que, para mim, subitamente, pareceram navegar fora do tempo. Com efeito, depois dos dias em que me consegui escapar da paróquia, aqueles nomes tinham-se tornado tão irreais quanto os que Jordi ainda continua hoje a imaginar perto da fonte onde um grilo catalão serve água a uma ninfa de olhos vendados.
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A sensação de ver discutir sobre o que se passa num aquário fechado, embora aparentemente ilimitado, não é exclusivo de ninguém. A oração para o homem medieval cumpria precisamente a mesma função hermética. Só que, no seu caso, a água escorria na vertical, como acontece nas oclusas do Canal do Panamá, entre ele e uma omnipresente divindade. Enquanto que, no “Eixo do Mal”, as cinco vozes vivem do hímen que as prende às narrativas delicadas do nosso rectângulo, ainda que com a aparente certeza de que o que se diz dá a volta aos oceanos da Terra, à moda endiabrada do El Niño. É por isso, porventura, que os novos deuses são tão, ou mais invisíveis que os medievais: “enquanto fazem as contas” e aguçam os planos, já as coisas aconteceram. E já tudo sobre elas terá sido dito. E esgotado. Fica apenas um ruído ao longe. Como o dos ralos de Atenas. Deixei-me, pois, dormir. Que nem um menino. E fui logo para a cama. Mau feitio, o meu.
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Mas o Jordi, o Colombo, o Pinto, o Polo, o Scott, o Zarco, o Rhodes e o Gama lá continuam ainda, como se nada fosse, no número 422 da Diagonal.