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O sorriso do arquivo no tempo da rede
O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Paulo Tunhas)
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"Lourenço e Al Barran*
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"Lourenço e Al Barran*
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A invasão do Kuwait pelo Iraque poderia ter suscitado algumas reflexões sobre o racismo por parte da vasta legião de vozes que se dedica a comentar, entre nós, a matéria. Não aconteceu. E não aconteceu, provavelmente, por duas razões. Primeiro, porque os aspectos mais imediatamente políticos da crise consequente concentraram as atenções. Segundo, porque o racismo é, diga-se o que se disser, um assunto tabu: na alma, muito mais do que nas palavras.
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E, no entanto, ele está no centro de tudo, como se verifica perfeitamente no próprio cuidado com que é ocultado por quem tem escrito sobre esta crise. Um bom exemplo é o artigo que o Dr. Eduardo Lourenço publicou no «Público» de 23/8/90. O Dr. Eduardo Lourenço, é verdade, escreve sempre por alturas destas umas redacções em estilo sibilino e cardinalício destinadas a convencerem os predispostos a isso que vê o mundo a partir de Sírius. E a originalidade da pretensão, acrescida da perfeita nulidade do resultado, deveria aparentemente inibir a intenção de o considerar paradigmático. Mas é um pudor desnecessário, porque — estilo à parte —as suas reflexões estão, moral e ideologicamente, ao nível exacto da opinião esclarecida comum.
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Estão logo desde o princípio. O medo de parecer racista e etnocêntrico obriga-o a escrever um artigo inteiro a descrever o conflito como se este revelasse fundamentalmente uma oposição entre os Estados Unidos e a Europa. Contam-se pelos dedos as palavras dedicadas a Saddam Hussein e aos árabes em geral. Destes apenas se tem o cuidado de dizer que se encontram «partilhados entre a natural reivindicação da sua dignidade e o ressentimento», o que está certamente longe de iluminar por pouco que seja a natureza do seu comportamento. Em contrapartida, as causas que determinam, na sequência da crise do Golfo, uma «subalternização» da Europa pelos Estados Unidos, são exploradas até mais não, como se se tratasse da matéria principal de preocupação. E é espantoso o cuidado posto na autoflagelação europeia: a Europa não vai «morrer pelo Kuwait», porque «a Europa morre nas estradas por conta própria»; tanto mais espantoso quanto sublinhado por um exemplo contraditório do primeiro: a guerra das Falklands foi «absurda». A Europa, pelos vistos, morra ela por conta própria ou por conta alheia, não parece ter a mínima probabilidade de se comportar decentemente. Mas manda a verdade que se diga que os Estados Unidos, apesar de «subalternizarem» a Europa, não são por isso mais dignos de louvor. Fazem-no porque pertencem a um «país sem memória», movidos apenas pelos mais baixos interesses económicos que os seus «boys» servem. Além das potências ocidentais que se digladiam entre si, existem os árabes, divididos, como se viu, «entre a natural reivindicação da sua dignidade e o ressentimento». É louvável que Eduardo Lourenço não os julgue capazes de confundirem as duas paixões. São criaturas que têm uma razão «natural» para a primeira, e outra, supõe-se, «cultural» para a segunda: a velha humilhação que o Ocidente (entidade ambígua que tanto se divide como se une, consoante as circunstâncias) faz sobre elas pesar. Saddam Hussein não pode ser levado particularmente a mal: o seu tempo é um «tempo longo» que nós, estúpidos europeus e ainda mais estúpidos americanos, não podemos perceber; seria pura estultícia medir os seus comportamentos pelos nossos padrões; etc. O segredo do mundo visto de Sírius é então o seguinte: cupidez, divisão e cobardia a Ocidente; e inocência, aspiração à dignidade e (não sei como evitar) heroísmo do lado «muçulmano».
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É propriamente inconcebível, neste caldo de pensamento, julgar Saddam Hussein (ou, para o efeito é o mesmo, as lutas entre xhosas e zulus) um sinal da barbárie. É impossível vê-lo como um criminoso, alguém para quem a vida humana literalmente não conta. Isso são coisas de quem tem o péssimo hábito de pesar as coisas neste planeta. Mas— é um aspecto importante — não quer isto dizer que este sistema conduza a uma profissão de fé no fundamentalismo islâmico. De modo algum. A conclusão até é inversa e só aparentemente paradoxal. Porque é no Ocidente que se pode partir para Sírius e observar os animais justos na sua maior pureza. Só o amor à distância é o amor da razão e o mau cheiro dos mortos e dos vivos não perturba assim a lucidez. O verdadeiro racismo revela-se aqui encapotado debaixo da autoflagelação ocidental. O seu objecto são aqueles que se decidiu não poderem ser culpados. Em psicanálise chama-se «o retorno do recalcado».
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Um proficiente e inesperado discípulo do Dr. Eduardo Lourenço é o jornalista Artur Albarran. Mas, não se sabe se por se encontrar na Jordânia, perto da zona do conflito e, portanto, sujeito a pressões empíricas, este decidiu-se mais abertamente pela sua causa. Mergulhado no meio de árabes, Albarran anda visivelmente emocionado com o seu espírito. Quando chegar a Portugal há-de ter mudado nome para Al Barran. É mesmo provável que, à semelhança de Saddam Hussein, que, depois de ter descoberto ser descendente do Profeta, começou a tratar o rei Hussein por «primo», Al Barran dentro de dois telejornais o trate por «tio». Pela forma entusiástica como descreve o apego dos jordanos à causa iraquiana, não há-de faltar muito. Nem o rei — que deve andar desesperadamente à procura de uma maneira de se salvar desta situação — escapou aos seus arrebatamentos líricos: parece que está dividido entre a antiga amizade com os Estados Unidos e o seu amor «de corpo e alma» pelos «irmãos iraquianos». Pode ser só parvoíce; pode ser, como me sugeriram, uma manifestação do «síndroma de Estocolmo». Mas o mais provável é ser mesmo racismo: Al Barran descobriu que os habitantes da zona se encontram, por definição, isentos de responsabilidade, e anda por lá feliz no meio dos seus inocentes e guerreiros júbilos. Como o Dr. Eduardo Lourenço, também não percebeu que a forma mais perversa de racismo consiste em julgar o outro, por razões rácicas ou culturais, radicalmente insusceptível de culpa.
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E chega-se assim ao essencial. Não é o racismo enquanto atitude espontânea e natural que é condenável. Há sem dúvida um nível em que o racismo é universal. O que é condenável são as formas segundas de racismo que se instituem a partir desse racismo natural. Elas são múltiplas e, por vezes, contraditórias. Tanto se podem manifestar na afirmação da superioridade de certas raças sobre outras raças como, paradoxalmente, na proclamação da equivalência de todas as culturas. Esta última é uma forma contemporânea e relativista de racismo. É um racismo desenvolvido e ocidental. Não parece ter germinado em nenhum outro lugar do mundo. Impede que se reconheça a superioridade efectiva dos nossos padrões civilizacionais, impede que se chame criminoso a Saddam Hussein, impede que o fanatismo islâmico receba os nomes que merece, impede que se fale dos combates entre xhosas e zulus no tom certo e impede que se reflicta honestamente sobre a responsabilidade dos povos do chamado terceiro mundo na sua situação actual. O racismo, não o racismo natural mas o racismo elaborado, é o que não deixa ver a realidade. O racismo do Dr. Eduardo Lourenço e o do jornalista Albarran também são assim."
eA invasão do Kuwait pelo Iraque poderia ter suscitado algumas reflexões sobre o racismo por parte da vasta legião de vozes que se dedica a comentar, entre nós, a matéria. Não aconteceu. E não aconteceu, provavelmente, por duas razões. Primeiro, porque os aspectos mais imediatamente políticos da crise consequente concentraram as atenções. Segundo, porque o racismo é, diga-se o que se disser, um assunto tabu: na alma, muito mais do que nas palavras.
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E, no entanto, ele está no centro de tudo, como se verifica perfeitamente no próprio cuidado com que é ocultado por quem tem escrito sobre esta crise. Um bom exemplo é o artigo que o Dr. Eduardo Lourenço publicou no «Público» de 23/8/90. O Dr. Eduardo Lourenço, é verdade, escreve sempre por alturas destas umas redacções em estilo sibilino e cardinalício destinadas a convencerem os predispostos a isso que vê o mundo a partir de Sírius. E a originalidade da pretensão, acrescida da perfeita nulidade do resultado, deveria aparentemente inibir a intenção de o considerar paradigmático. Mas é um pudor desnecessário, porque — estilo à parte —as suas reflexões estão, moral e ideologicamente, ao nível exacto da opinião esclarecida comum.
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Estão logo desde o princípio. O medo de parecer racista e etnocêntrico obriga-o a escrever um artigo inteiro a descrever o conflito como se este revelasse fundamentalmente uma oposição entre os Estados Unidos e a Europa. Contam-se pelos dedos as palavras dedicadas a Saddam Hussein e aos árabes em geral. Destes apenas se tem o cuidado de dizer que se encontram «partilhados entre a natural reivindicação da sua dignidade e o ressentimento», o que está certamente longe de iluminar por pouco que seja a natureza do seu comportamento. Em contrapartida, as causas que determinam, na sequência da crise do Golfo, uma «subalternização» da Europa pelos Estados Unidos, são exploradas até mais não, como se se tratasse da matéria principal de preocupação. E é espantoso o cuidado posto na autoflagelação europeia: a Europa não vai «morrer pelo Kuwait», porque «a Europa morre nas estradas por conta própria»; tanto mais espantoso quanto sublinhado por um exemplo contraditório do primeiro: a guerra das Falklands foi «absurda». A Europa, pelos vistos, morra ela por conta própria ou por conta alheia, não parece ter a mínima probabilidade de se comportar decentemente. Mas manda a verdade que se diga que os Estados Unidos, apesar de «subalternizarem» a Europa, não são por isso mais dignos de louvor. Fazem-no porque pertencem a um «país sem memória», movidos apenas pelos mais baixos interesses económicos que os seus «boys» servem. Além das potências ocidentais que se digladiam entre si, existem os árabes, divididos, como se viu, «entre a natural reivindicação da sua dignidade e o ressentimento». É louvável que Eduardo Lourenço não os julgue capazes de confundirem as duas paixões. São criaturas que têm uma razão «natural» para a primeira, e outra, supõe-se, «cultural» para a segunda: a velha humilhação que o Ocidente (entidade ambígua que tanto se divide como se une, consoante as circunstâncias) faz sobre elas pesar. Saddam Hussein não pode ser levado particularmente a mal: o seu tempo é um «tempo longo» que nós, estúpidos europeus e ainda mais estúpidos americanos, não podemos perceber; seria pura estultícia medir os seus comportamentos pelos nossos padrões; etc. O segredo do mundo visto de Sírius é então o seguinte: cupidez, divisão e cobardia a Ocidente; e inocência, aspiração à dignidade e (não sei como evitar) heroísmo do lado «muçulmano».
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É propriamente inconcebível, neste caldo de pensamento, julgar Saddam Hussein (ou, para o efeito é o mesmo, as lutas entre xhosas e zulus) um sinal da barbárie. É impossível vê-lo como um criminoso, alguém para quem a vida humana literalmente não conta. Isso são coisas de quem tem o péssimo hábito de pesar as coisas neste planeta. Mas— é um aspecto importante — não quer isto dizer que este sistema conduza a uma profissão de fé no fundamentalismo islâmico. De modo algum. A conclusão até é inversa e só aparentemente paradoxal. Porque é no Ocidente que se pode partir para Sírius e observar os animais justos na sua maior pureza. Só o amor à distância é o amor da razão e o mau cheiro dos mortos e dos vivos não perturba assim a lucidez. O verdadeiro racismo revela-se aqui encapotado debaixo da autoflagelação ocidental. O seu objecto são aqueles que se decidiu não poderem ser culpados. Em psicanálise chama-se «o retorno do recalcado».
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Um proficiente e inesperado discípulo do Dr. Eduardo Lourenço é o jornalista Artur Albarran. Mas, não se sabe se por se encontrar na Jordânia, perto da zona do conflito e, portanto, sujeito a pressões empíricas, este decidiu-se mais abertamente pela sua causa. Mergulhado no meio de árabes, Albarran anda visivelmente emocionado com o seu espírito. Quando chegar a Portugal há-de ter mudado nome para Al Barran. É mesmo provável que, à semelhança de Saddam Hussein, que, depois de ter descoberto ser descendente do Profeta, começou a tratar o rei Hussein por «primo», Al Barran dentro de dois telejornais o trate por «tio». Pela forma entusiástica como descreve o apego dos jordanos à causa iraquiana, não há-de faltar muito. Nem o rei — que deve andar desesperadamente à procura de uma maneira de se salvar desta situação — escapou aos seus arrebatamentos líricos: parece que está dividido entre a antiga amizade com os Estados Unidos e o seu amor «de corpo e alma» pelos «irmãos iraquianos». Pode ser só parvoíce; pode ser, como me sugeriram, uma manifestação do «síndroma de Estocolmo». Mas o mais provável é ser mesmo racismo: Al Barran descobriu que os habitantes da zona se encontram, por definição, isentos de responsabilidade, e anda por lá feliz no meio dos seus inocentes e guerreiros júbilos. Como o Dr. Eduardo Lourenço, também não percebeu que a forma mais perversa de racismo consiste em julgar o outro, por razões rácicas ou culturais, radicalmente insusceptível de culpa.
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E chega-se assim ao essencial. Não é o racismo enquanto atitude espontânea e natural que é condenável. Há sem dúvida um nível em que o racismo é universal. O que é condenável são as formas segundas de racismo que se instituem a partir desse racismo natural. Elas são múltiplas e, por vezes, contraditórias. Tanto se podem manifestar na afirmação da superioridade de certas raças sobre outras raças como, paradoxalmente, na proclamação da equivalência de todas as culturas. Esta última é uma forma contemporânea e relativista de racismo. É um racismo desenvolvido e ocidental. Não parece ter germinado em nenhum outro lugar do mundo. Impede que se reconheça a superioridade efectiva dos nossos padrões civilizacionais, impede que se chame criminoso a Saddam Hussein, impede que o fanatismo islâmico receba os nomes que merece, impede que se fale dos combates entre xhosas e zulus no tom certo e impede que se reflicta honestamente sobre a responsabilidade dos povos do chamado terceiro mundo na sua situação actual. O racismo, não o racismo natural mas o racismo elaborado, é o que não deixa ver a realidade. O racismo do Dr. Eduardo Lourenço e o do jornalista Albarran também são assim."
*(O Primeiro de Janeiro, 2 de Setembro de 1990)
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)
Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)