quarta-feira, 2 de maio de 2007

Folhetim - 7

VANITAS
51, AVENUE D´IÉNA

por Almeida Faria

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«Aqueles fulgores de frutos e flores onde perversamente aparece a pétala fanada, a polpa murcha, o podre; aquelas riquezas da Terra onde de súbito surge o bolor e o verme; os moluscos e insectos carregados de recados, a mosca simbolizando talvez o demónio ou o mal, o caracol cuja casca alude, segundo alguns, ao vazio da fortuna, ao oco tambor da vanglória e da fama. Quanto me esforcei por obter uma dessas maravilhas! Mas as boas não apareciam no mercado, quem as tinha não as largava, ou estão nos museus, no Louvre, em Berlim e Viena, e nas grandes colecções dos holandeses. Fui de propósito a Estrasburgo ver A Grande Vaidade, do Stoskopf. Não a conhece? Não perca. Lá está a ampulheta, a caveira, o mundo enquanto teatro – uma gravura na parede representa não me lembro já que arlequinada. Vale a pena a viagem, e olhe que quem lhe fala deu muita volta aos melhores museus mundiais. Infelizmente não fui na minha vida anterior à América porque, quando pretendi ir, veio a guerra. Como adivinhei que aprecia obras destas? Então não acha extraordinário que eu não o interrompesse enquanto lia esse tal Herbert?»
Só um espírito saberia o que eu fizera antes de adormecer! Lia, com efeito, algumas páginas de Zbigniev Herbert sobre Simon van de Beeck, que se autocaracterizou assinando Torrentius e foi admirado no seu tempo como mestre da mais perfeita imitação da vida visível, esquecido depois durante três séculos e recentemente redescoberto. Pintor enigmático e semiclandestino que me faria companhia nesta mansão onde vou expor As Lágrimas de Eros, que não imaginei em ambiente tão solene. Quando me convidaram a apresentar toda a série e acentuaram a palavra toda, aceitei sem hesitar porque me apetecia vir a Paris e passar dias inteiros no Louvre. A pintura obceca-me tanto que a qualidade das cidades depende dos seus museus de belas-artes. Há anos que Paris para mim principiava diante de certas telas do Louvre e terminava minutos antes do encerramento do museu, quando zelosos funcionários corriam comigo de uma dessas salas onde sempre me faltava rever algo. Salas que me faziam levitar, justificando só por si toda a viagem, e que ainda mais atraentes se tornaram desde que de algumas delas se descobre, da janela, o jogo entre a ligeireza das pirâmides de vidro, os efeitos do vento na água dos tanques triangulares e a compacta exuberância das fachadas do pátio outrora real. Agora movia-me também o desafio do contraste entre os meus desenhos escandalosos, nunca expostos, e a sóbria seriedade do vestíbulo do pequeno olimpo da avenue d´Iéna, cujas normas e pormenores a governanta me explicara à chegada, à medida que o envidraçado elevador Art Déco, de madeira, ferro forjado e banco almofadado, nos conduzia pouco apressado ao segundo andar.
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(continua)
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Próximo episódio: “Tínhamos em comum esse respeito pelo concreto. Os estudos de mineralogia, de geologia, de ornitologia, sobretudo das aves marinhas, a sua prática de navegar, aliados aos seus talentos, fizeram dele um cantor do cosmos, do mundo imemorial, dos mitos, do ar, do mar, dos elementos olhados como se acabassem de nascer.”