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O sorriso do arquivo no tempo da rede
O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Paulo Tunhas*)
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Morreu o programa? Viva o programa!*
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(O Primeiro de Janeiro, 14 de Outubro de 1990.
(O Primeiro de Janeiro, 14 de Outubro de 1990.
Ver referência do autor, escrita hoje no blogue Atlântico, sobre este artigo)
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Terminou recentemente, ao modo exemplar do balão estourado, o debate mais ou menos público sobre o projecto de programa de Filosofia para o ensino dito secundário. O processo do balão estourado governa-se por regras simples. Primeiro, arranja-se alguém com fôlego suficiente para encher o balão; depois, é fatal como o destino, quem enche o balão exorbita do fôlego e fica com o nariz em situação perigosa; finalmente, numa atitude ao mesmo tempo caridosa e malévola (a natureza humana é dada a estes paradoxos), um espinho, tornado invisível pelo balão demasiado inchado, surge de repente e estoura tudo. O divertimento tem como consequência o não ter praticamente consequências, excepto uns orgulhos feridos, uns ódios amestrados e umas vaidades recompostas. A substância que estava dentro do balão, a natureza do espinho e as razões que motivaram tão grácil duelo caem no esquecimento a velocidade prodigiosa, na pressuposição ousada de alguma vez alguém as ter sequer suspeitado. Passada uma semana, é necessário um verdadeiro talento arqueológico para as imaginar.
Terminou recentemente, ao modo exemplar do balão estourado, o debate mais ou menos público sobre o projecto de programa de Filosofia para o ensino dito secundário. O processo do balão estourado governa-se por regras simples. Primeiro, arranja-se alguém com fôlego suficiente para encher o balão; depois, é fatal como o destino, quem enche o balão exorbita do fôlego e fica com o nariz em situação perigosa; finalmente, numa atitude ao mesmo tempo caridosa e malévola (a natureza humana é dada a estes paradoxos), um espinho, tornado invisível pelo balão demasiado inchado, surge de repente e estoura tudo. O divertimento tem como consequência o não ter praticamente consequências, excepto uns orgulhos feridos, uns ódios amestrados e umas vaidades recompostas. A substância que estava dentro do balão, a natureza do espinho e as razões que motivaram tão grácil duelo caem no esquecimento a velocidade prodigiosa, na pressuposição ousada de alguma vez alguém as ter sequer suspeitado. Passada uma semana, é necessário um verdadeiro talento arqueológico para as imaginar.
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Por motivos puramente jornalísticos, talvez valha a pena fazer, neste caso, um pequeno esforço. Comecemos pelo ar do balão, isto é, o projecto de programa agora rejeitado. Era um disparate puro e simples. Um disparate cuidado e esmerado, mas um disparate. Em primeiro lugar, porque insusceptível de realização, o que é um defeito, apesar de tudo, considerável. O programa pressupunha, ou melhor, ostentava a pressuposição de uma familiaridade com a tradição analítica anglo-saxónica por parte dos professores de Filosofia do liceu. Ora, seria sem dúvida belo e prometedor para o futuro da Filosofia em Portugal que a intimidade com Austin, Hare, Ryle, Strawson e Dummett fosse coisa certa e segura entre as gentes que, de Chaves a Faro, ensinam Filosofia. Infelizmente, nada há mais longínquo da verdade; os professores de Filosofia que acabam o seu curso nas nossas universidades (o melhor é passar por cima da questão das universidades) são, na esmagadora maioria, almas ignaras e inermes, capazes de ler apenas umas poucas linhas em francês, sem recursos pessoais ou institucionais de espécie alguma e única e compreensivelmente preocupados em resolver os mais imediatos problemas de sobrevivência a que uma lamentável indecisão vocacional os conduziu. Nunca ouviram falar de nenhum daqueles nomes nem a sua miserável situação profissional ou a fatídica ausência de entusiasmo filosófico lhes estimula a mais remota curiosidade para tal. Mais depressa se tornarão delegados sindicais, carreira que promove depressa e notoriamente exige menos aptidões intelectuais, se é que exige algumas.
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Em segundo lugar, modernité oblige, o projecto de programa descurava (como certamente o seu substituto irá fazer) qualquer perspectiva histórica. Alguém deveria explicar a alguém que grande parte dos alunos dos liceus portugueses não fazem a mais remota ideia se a fundação da nacionalidade portuguesa é anterior ou posterior à invenção da salsicha enlatada ou às Demoiselles d'Avignon, e isto não por qualquer tara congénita ou motivos semelhantes, mas porque, pura e simplesmente, os programas liceais estão estruturados de modo a que qualquer curiosidade em matérias desse teor se desvaneça à primeira aula. O único programa de Filosofia decente seria aquele que, não descuidando elucidações conceptuais e cruzamentos com outras disciplinas, indicasse sobretudo um (mesmo que discutível) fio histórico entre as doutrinas. Os adolescentes, ainda que principalmente interessados em dramas que julgam sem qualquer possível relação com os dos seus antepassados e em furores e melancolias amorosas, são capazes de maravilhamento pela História. Não têm culpa nenhuma de lhes ensinarem coisas decididas por gente que vive na ressaca de historicismos, ou que se comporta como tal. Não têm culpa que o respeito e o encantamento pela História pareça pecado mortal aos olhos de quem escolhe o que vai aparecer nos manuais que vão utilizar.
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Em terceiro e último e rápido lugar, o projecto rejeitado sofria de uma desproporção essencial, fruto da falta de respeito anteriormente referida. Por muito importantes — e actuais, como se diz — que as questões postas pela tradição analítica anglo-saxónica sejam, elas só ganham o seu pleno sentido contra o pano de fundo de tradições anteriores. Quem quer que tenha estudado em Inglaterra (onde, de resto, não se ensina Filosofia no «secundário») sabe perfeitamente que é assim. Ora Duns Escoto, Ockham e Pascal (para escolher um trio variado) não são respeitados neste programa. O programa de Manuel Maria Carrilho — cujas virtudes aqui omito, já que não pretendo fazer dele uma apreciação exaustiva — é de um novo-riquismo filosófico patético. Exceptuando poucas áreas — as da Filosofia Política, por exemplo —, incha de modernidade. E estoura. É um mistério como pode alguém com dois dedos de cabeça cair numa coisa destas. Quase que nem precisava do espinho para rebentar. O bom senso deve ser a coisa pior distribuída do mundo.
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Mas o espinho, nesta edificante história, estava lá. Arrebitou-se em reuniões que misturavam gente mais ou menos séria e honesta, gente que mais ou menos procurava defender os seus lugares e as respectivas incompetências, e gente que mais ou menos tem fé em Deus ou no curso da História e acha a concordância com essas fés a pedra de toque da verdade. É o que se chama um espinho de respeito. Tanto mais que, ao que se diz, por detrás das «Associações de Pais», que eram, por assim dizer, o «espinho visível», altíssimos e espirituais poderes manobravam, orientando o curso do mundo. E o Ministério foi obrigado a renegar o promissor e espevitado filhote.
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Resta saber o que vai agora acontecer. Na mais plena boa vontade, e sem lugares ou fés para defender, talvez valha a pena fazer um aviso modesto e muito geral. Vale para todos os programas de todas as disciplinas, desde Filosofia a Matemática. Consiste na elucidação seguinte: as mais exigentes, as mais edificantes, as mais atentas reformas hão-de sempre revelar-se de uma total inconsequência enquanto o ensino do Português for a vergonha que se sabe que é. Particularmente na Filosofia, enquanto os alunos chegarem ao décimo ano do liceu desconhecendo completamente qualquer regra gramatical; enquanto o sujeito e o predicado continuarem, nos testes dos alunos, a formar frases-Frankenstein; enquanto cada palavra, da mais simples à mais complexa, for um enigma resolvido a martelo — não há nada a fazer. Esqueçam-se, por favor, do programa de Filosofia e dos outros todos. Olhem para o de Português. Percebam que se no primeiro ano do ciclo um aluno passa o tempo todo a ser esclarecido sobre a natureza do «signo», não pode nunca jamais em tempo algum fazer a mínima ideia do que é a gramática; sobretudo se, passado o tempo escolar obrigatório, vai sachar os campos dos pais. Percebam que se procurarem remediar essas coisas, os professores de Filosofia (e os outros todos), mesmo ignaros e mal pagos, vão ter maior sucesso na sua delicada e brutal tarefa. Percebam que o que se passa nos inumeráveis liceus deste país é, antes de tudo o mais, a dramática tentativa de administração de conhecimentos vários sem um meio eficaz (a língua portuguesa) de transmissão. Percebam que isto é a única coisa urgente a resolver. Tentem perceber. Mas se não perceberem, pelo amor do Céu, não façam programa nenhum.
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Ou então, bem vistas as coisas, façam. Desde pelo menos 1975, sexta-feira 11 de Julho, dia em que o Diário da República, lª série, nº 158, regista a aprovação, pelo Conselho da Revolução, do Decreto-Lei nº 363/75, sobre as bases programáticas para a reforma do ensino superior, até aos nossos dias, em que o Eng. Roberto Carneiro lança, perante a passividade geral, uma coisa obscena chamada «Escola Cultural», tudo é possível. Das universidades do Conselho da Revolução, «lugares de trabalho efectivo de professores e estudantes, lugares em que o ócio, o oportunismo, a indisciplina e outras formas condenáveis de individualismo» são «denunciadas como contra-revolucionárias e definitivamente banidas» até à «Escola Cultural» do Engº Carneiro, que tem como principais objectivos «promover a capacidade de distinguir entre o ter e o ser e de preferir o ser ao ter», «criar condições de satisfação e felicidade aos actores do drama escolar» e fomentar o aparecimento de «professores culturais» (sic), com o «diâmetro» superior ao dos professores «curriculares», o que muda é apenas o estilo da parvoíce, não o seu universal fulgor. Que mal pode vir ao mundo, nestas condições, de um programa de Filosofia mal feito, incompreensível para professores e alunos, enviesado, pouco criterioso e disparatado? Que mal pode suscitar o singelo facto de a esmagadora maioria dos alunos não aprender gramática portuguesa no liceu? Nenhum. Graças a Deus, nenhum. Qualquer coisa manifestamente serve.
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Morreu o programa? Viva o programa!
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Em segundo lugar, modernité oblige, o projecto de programa descurava (como certamente o seu substituto irá fazer) qualquer perspectiva histórica. Alguém deveria explicar a alguém que grande parte dos alunos dos liceus portugueses não fazem a mais remota ideia se a fundação da nacionalidade portuguesa é anterior ou posterior à invenção da salsicha enlatada ou às Demoiselles d'Avignon, e isto não por qualquer tara congénita ou motivos semelhantes, mas porque, pura e simplesmente, os programas liceais estão estruturados de modo a que qualquer curiosidade em matérias desse teor se desvaneça à primeira aula. O único programa de Filosofia decente seria aquele que, não descuidando elucidações conceptuais e cruzamentos com outras disciplinas, indicasse sobretudo um (mesmo que discutível) fio histórico entre as doutrinas. Os adolescentes, ainda que principalmente interessados em dramas que julgam sem qualquer possível relação com os dos seus antepassados e em furores e melancolias amorosas, são capazes de maravilhamento pela História. Não têm culpa nenhuma de lhes ensinarem coisas decididas por gente que vive na ressaca de historicismos, ou que se comporta como tal. Não têm culpa que o respeito e o encantamento pela História pareça pecado mortal aos olhos de quem escolhe o que vai aparecer nos manuais que vão utilizar.
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Em terceiro e último e rápido lugar, o projecto rejeitado sofria de uma desproporção essencial, fruto da falta de respeito anteriormente referida. Por muito importantes — e actuais, como se diz — que as questões postas pela tradição analítica anglo-saxónica sejam, elas só ganham o seu pleno sentido contra o pano de fundo de tradições anteriores. Quem quer que tenha estudado em Inglaterra (onde, de resto, não se ensina Filosofia no «secundário») sabe perfeitamente que é assim. Ora Duns Escoto, Ockham e Pascal (para escolher um trio variado) não são respeitados neste programa. O programa de Manuel Maria Carrilho — cujas virtudes aqui omito, já que não pretendo fazer dele uma apreciação exaustiva — é de um novo-riquismo filosófico patético. Exceptuando poucas áreas — as da Filosofia Política, por exemplo —, incha de modernidade. E estoura. É um mistério como pode alguém com dois dedos de cabeça cair numa coisa destas. Quase que nem precisava do espinho para rebentar. O bom senso deve ser a coisa pior distribuída do mundo.
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Mas o espinho, nesta edificante história, estava lá. Arrebitou-se em reuniões que misturavam gente mais ou menos séria e honesta, gente que mais ou menos procurava defender os seus lugares e as respectivas incompetências, e gente que mais ou menos tem fé em Deus ou no curso da História e acha a concordância com essas fés a pedra de toque da verdade. É o que se chama um espinho de respeito. Tanto mais que, ao que se diz, por detrás das «Associações de Pais», que eram, por assim dizer, o «espinho visível», altíssimos e espirituais poderes manobravam, orientando o curso do mundo. E o Ministério foi obrigado a renegar o promissor e espevitado filhote.
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Resta saber o que vai agora acontecer. Na mais plena boa vontade, e sem lugares ou fés para defender, talvez valha a pena fazer um aviso modesto e muito geral. Vale para todos os programas de todas as disciplinas, desde Filosofia a Matemática. Consiste na elucidação seguinte: as mais exigentes, as mais edificantes, as mais atentas reformas hão-de sempre revelar-se de uma total inconsequência enquanto o ensino do Português for a vergonha que se sabe que é. Particularmente na Filosofia, enquanto os alunos chegarem ao décimo ano do liceu desconhecendo completamente qualquer regra gramatical; enquanto o sujeito e o predicado continuarem, nos testes dos alunos, a formar frases-Frankenstein; enquanto cada palavra, da mais simples à mais complexa, for um enigma resolvido a martelo — não há nada a fazer. Esqueçam-se, por favor, do programa de Filosofia e dos outros todos. Olhem para o de Português. Percebam que se no primeiro ano do ciclo um aluno passa o tempo todo a ser esclarecido sobre a natureza do «signo», não pode nunca jamais em tempo algum fazer a mínima ideia do que é a gramática; sobretudo se, passado o tempo escolar obrigatório, vai sachar os campos dos pais. Percebam que se procurarem remediar essas coisas, os professores de Filosofia (e os outros todos), mesmo ignaros e mal pagos, vão ter maior sucesso na sua delicada e brutal tarefa. Percebam que o que se passa nos inumeráveis liceus deste país é, antes de tudo o mais, a dramática tentativa de administração de conhecimentos vários sem um meio eficaz (a língua portuguesa) de transmissão. Percebam que isto é a única coisa urgente a resolver. Tentem perceber. Mas se não perceberem, pelo amor do Céu, não façam programa nenhum.
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Ou então, bem vistas as coisas, façam. Desde pelo menos 1975, sexta-feira 11 de Julho, dia em que o Diário da República, lª série, nº 158, regista a aprovação, pelo Conselho da Revolução, do Decreto-Lei nº 363/75, sobre as bases programáticas para a reforma do ensino superior, até aos nossos dias, em que o Eng. Roberto Carneiro lança, perante a passividade geral, uma coisa obscena chamada «Escola Cultural», tudo é possível. Das universidades do Conselho da Revolução, «lugares de trabalho efectivo de professores e estudantes, lugares em que o ócio, o oportunismo, a indisciplina e outras formas condenáveis de individualismo» são «denunciadas como contra-revolucionárias e definitivamente banidas» até à «Escola Cultural» do Engº Carneiro, que tem como principais objectivos «promover a capacidade de distinguir entre o ter e o ser e de preferir o ser ao ter», «criar condições de satisfação e felicidade aos actores do drama escolar» e fomentar o aparecimento de «professores culturais» (sic), com o «diâmetro» superior ao dos professores «curriculares», o que muda é apenas o estilo da parvoíce, não o seu universal fulgor. Que mal pode vir ao mundo, nestas condições, de um programa de Filosofia mal feito, incompreensível para professores e alunos, enviesado, pouco criterioso e disparatado? Que mal pode suscitar o singelo facto de a esmagadora maioria dos alunos não aprender gramática portuguesa no liceu? Nenhum. Graças a Deus, nenhum. Qualquer coisa manifestamente serve.
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Morreu o programa? Viva o programa!