LC
e
O sorriso do arquivo no tempo da rede
O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: João Pereira Coutinho)
e
Manual de conservação
e
Não é fácil ser um conservador. Tem as suas vantagens: interessados em viver o presente, deixamos o passado e o futuro para reaccionários e revolucionários de todas as cores e idades. Isto proporciona uma certa diversão, como dizia Mr. Bennet à filha Elizabeth em momento de inusitada confissão: rimos dos nossos vizinhos até ao dia em que eles se riem de nós. Mas depois alguém pede um manual para conhecer o ideário e o pânico instala-se. É como o noivo que no momento sacramental se esqueceu das alianças em casa.
Um conservador não tem manual. E grande parte da sua atitude assenta, precisamente, no ataque a qualquer manual. Caricatura, eu sei. Também li o meu Burke. O meu Disraeli. O meu Oakeshott, o meu Scruton. E criaturas menores, como Quintin Hogg ou o lendário Duque de Cambridge, que era menos reaccionário do que o pintam e menos conservador do que eu gosto. Mas quando me encostam entre a espada e a parede, dou por mim a pensar alto. A pensar longe. A pensar caro. E se os diamantes são os melhores amigos das mulheres, os relógios Patek Philippe são os melhores amigos dos conservadores.
Uma questão de preço? Por favor, não sejam filistinos: o dinheiro não é conversa de cavalheiros. E as linhas clássicas do relógio não encerram a discussão: um conservador não é peça de museu, como Che Guevara ou qualquer lunático que se preze. Falo de outras linhas. As promocionais. Duas frases que resumem quilos e quilos de filosofia dispersa. «You never actually own a Patek Philippe. You merely take care of it for the next generation». Precisamente. Não somos donos de. Tomamos apenas conta para. E, na imagem que acompanha o produto, pai e filho jogam xadrez num banco de jardim. Xeque-mate!
E xeque-mate porque em duas frases está a essência do que somos e não tanto do que pensamos. Sim, é possível dissertar longamente sobre as vantagens da tradição, da hierarquia, da autoridade. Perante gente civilizada, é até possível mergulhar na sabedoria do «preconceito», entendido sem preconceitos como a velha gaveta onde procuramos a foto com o rosto esquecido, ou quase, que então relembramos para sossego da alma. Gratos, muito gratos. Mas um conservador não se faz nem se desfaz. Acontece. Dizem que é doença. Talvez seja: a doença própria de quem vive o mundo sem procurar destruí-lo ou reconstruí-lo com os caprichos próprios de uma criança.
Não ser dono do mundo implica não ser dono dos nossos semelhantes. Implica não os manipular ou arrasar de acordo com a nossa própria vontade. Só um selvagem desmonta um Patek Philippe para saber como ele funciona. A um conservador bastará saber que o relógio funciona. E quando houver atrasos de um minuto, ou dois, ou três, o conservador não vai buscar um martelo. Prefere mãos cuidadas e prudentes, que acertam o parafuso em falta. Ou nem isso: um conservador tenderá a aceitar a imperfeição das coisas e a adaptar-se pacificamente a elas. Um minuto a menos significa um minuto a mais: de tolerância e concessão. Às onze e cinquenta e nove da noite, saberemos, enfim, que um novo dia começou. Se o relógio diz o contrário, nós sabemos que ele diz o tempo certo. E está certo.
Talvez seja pessimismo a mais. Para um conservador, será sempre pessimismo a menos. Porque qualquer conservador viverá a vida com a certeza da sua própria morte. Não que essa promessa final se converta em desistência final. Pelo contrário: é a promessa final que valoriza os entretantos. Mas nunca demasiado. A vaidade humana será motivo de riso porque em cada gesto haverá sempre uma caveira. A arrogância humana será motivo de temor porque em cada gesto haverá também outra caveira. Neste caso, a nossa. A vossa. A dos que ficaram para trás.
Mas nós continuamos. Não que exista um mapa, uma rota, um porto determinado que orienta a nossa navegação. Existe apenas a certeza do barco e a necessidade de o manter a flutuar. É pouco? É o suficiente. Para que um dia as águas que hoje cruzamos possam ser experimentadas pelos viajantes que acabarão por chegar.
eNão é fácil ser um conservador. Tem as suas vantagens: interessados em viver o presente, deixamos o passado e o futuro para reaccionários e revolucionários de todas as cores e idades. Isto proporciona uma certa diversão, como dizia Mr. Bennet à filha Elizabeth em momento de inusitada confissão: rimos dos nossos vizinhos até ao dia em que eles se riem de nós. Mas depois alguém pede um manual para conhecer o ideário e o pânico instala-se. É como o noivo que no momento sacramental se esqueceu das alianças em casa.
Um conservador não tem manual. E grande parte da sua atitude assenta, precisamente, no ataque a qualquer manual. Caricatura, eu sei. Também li o meu Burke. O meu Disraeli. O meu Oakeshott, o meu Scruton. E criaturas menores, como Quintin Hogg ou o lendário Duque de Cambridge, que era menos reaccionário do que o pintam e menos conservador do que eu gosto. Mas quando me encostam entre a espada e a parede, dou por mim a pensar alto. A pensar longe. A pensar caro. E se os diamantes são os melhores amigos das mulheres, os relógios Patek Philippe são os melhores amigos dos conservadores.
Uma questão de preço? Por favor, não sejam filistinos: o dinheiro não é conversa de cavalheiros. E as linhas clássicas do relógio não encerram a discussão: um conservador não é peça de museu, como Che Guevara ou qualquer lunático que se preze. Falo de outras linhas. As promocionais. Duas frases que resumem quilos e quilos de filosofia dispersa. «You never actually own a Patek Philippe. You merely take care of it for the next generation». Precisamente. Não somos donos de. Tomamos apenas conta para. E, na imagem que acompanha o produto, pai e filho jogam xadrez num banco de jardim. Xeque-mate!
E xeque-mate porque em duas frases está a essência do que somos e não tanto do que pensamos. Sim, é possível dissertar longamente sobre as vantagens da tradição, da hierarquia, da autoridade. Perante gente civilizada, é até possível mergulhar na sabedoria do «preconceito», entendido sem preconceitos como a velha gaveta onde procuramos a foto com o rosto esquecido, ou quase, que então relembramos para sossego da alma. Gratos, muito gratos. Mas um conservador não se faz nem se desfaz. Acontece. Dizem que é doença. Talvez seja: a doença própria de quem vive o mundo sem procurar destruí-lo ou reconstruí-lo com os caprichos próprios de uma criança.
Não ser dono do mundo implica não ser dono dos nossos semelhantes. Implica não os manipular ou arrasar de acordo com a nossa própria vontade. Só um selvagem desmonta um Patek Philippe para saber como ele funciona. A um conservador bastará saber que o relógio funciona. E quando houver atrasos de um minuto, ou dois, ou três, o conservador não vai buscar um martelo. Prefere mãos cuidadas e prudentes, que acertam o parafuso em falta. Ou nem isso: um conservador tenderá a aceitar a imperfeição das coisas e a adaptar-se pacificamente a elas. Um minuto a menos significa um minuto a mais: de tolerância e concessão. Às onze e cinquenta e nove da noite, saberemos, enfim, que um novo dia começou. Se o relógio diz o contrário, nós sabemos que ele diz o tempo certo. E está certo.
Talvez seja pessimismo a mais. Para um conservador, será sempre pessimismo a menos. Porque qualquer conservador viverá a vida com a certeza da sua própria morte. Não que essa promessa final se converta em desistência final. Pelo contrário: é a promessa final que valoriza os entretantos. Mas nunca demasiado. A vaidade humana será motivo de riso porque em cada gesto haverá sempre uma caveira. A arrogância humana será motivo de temor porque em cada gesto haverá também outra caveira. Neste caso, a nossa. A vossa. A dos que ficaram para trás.
Mas nós continuamos. Não que exista um mapa, uma rota, um porto determinado que orienta a nossa navegação. Existe apenas a certeza do barco e a necessidade de o manter a flutuar. É pouco? É o suficiente. Para que um dia as águas que hoje cruzamos possam ser experimentadas pelos viajantes que acabarão por chegar.
*Speakeasy
e
Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Quintas - Bragança de Miranda
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Quintas - Bragança de Miranda
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)