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A cereja sobre o bolo
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Por razões essencialmente académicas, viajei durante alguns anos dentro de manuscritos medievais. Eram escritos com grafemas árabes embora a língua neles transcrita fosse qualquer coisa entre o antigo Aragonês e o actual Castelhano. Quem os escrevia – autores anónimos que iam reactualizando quase sempre os mesmos textos – tinha perdido a língua mãe e grande parte da sua cultura original. O carácter híbrido destes autores (que sobrepunham à perda de memória uma grande criatividade expressiva) manter-se-ia até à expulsão definitiva da Península Ibéria, já no início de seiscentos.
Refiro-me às vastíssimas comunidades de raiz islâmica – os chamados “mouriscos” – que sobreviveram no Levante ibérico (sobretudo em Aragão) às conversões obrigatórias e às expulsões do início do século XVI (e do final do século anterior). A literatura aljamiada destes derradeiros autóctones islâmicos da Ibéria tinha uma característica singular: a miscelânea temática. Nos manuscritos que circulavam de mão em mão lia-se de tudo: descrição de viagens (na tradição árabe da Rihla), profecias (Aljofores), tratados de superstições, livros de sortilégios, crenças populares, receitas mágicas, fórmulas cabalísticas, temas épicos, ditados, lendas, “Rogarias y Alabanzas de Mahoma”, disputas com judeus e cristãos, instruções para a leitura do Alcorão, excertos tradicionais (Hadith), temas gramaticais (sobretudo fonéticos), preceitos relativos a heranças, medicina popular, fórmulas mágicas, sequências didácticas e morais, etc, etc.
Este modo desfragmentado de abarcar um mundo inevitavelmente perdido (hoje dir-se-ia “este discurso pós-cultura”) está a reaparecer na actualidade com outras vestes. Veja-se: perda de memória colectiva e de referências fixas; o emergir de uma nova hibridez (as fronteiras das culturas hoje atravessam-se no globo), de novos modos expressivos e de mediação (chatsfera, mediasfera, blogosfera, etc.). E ainda, para terminar, alguma miscelânea temática como método. Esta última característica tornou-se óbvia no universo dos blogues que está a ser, por sua vez, nos últimos – poucos – anos, transposto para livro. O Meu Pipi (Oficina do Livro, 2003), Pedro Mexia (Fora do Mundo, Cotovia, 2004), Barnabé (Oficina do Livro, 2005), O Gato Fedorento (Cotovia, 2005), Jaquinzinhos (O Espírito das Leis, 2006) e alguns outros iniciaram a saga.
Como cereja sobre este bolo de ressonâncias já antigas, surge agora Intriga em Família de Eduardo Pitta (Quasi, 2007) que reúne perto de trezentos posts desassombrados e heterodoxos do blogue Da Literatura. Se ainda fosse preciso provar que na blogosfera se escreve particularmente bem, esta obra de Pitta reluziria. Além disso, neste guia “sage” e de bom manuseio, o recorte temático é, por natureza, abundante e variado. É a nouvelle cuisine servida a todos. Sem qualquer excepção. E graciosamente. Ponto.com.
Por razões essencialmente académicas, viajei durante alguns anos dentro de manuscritos medievais. Eram escritos com grafemas árabes embora a língua neles transcrita fosse qualquer coisa entre o antigo Aragonês e o actual Castelhano. Quem os escrevia – autores anónimos que iam reactualizando quase sempre os mesmos textos – tinha perdido a língua mãe e grande parte da sua cultura original. O carácter híbrido destes autores (que sobrepunham à perda de memória uma grande criatividade expressiva) manter-se-ia até à expulsão definitiva da Península Ibéria, já no início de seiscentos.
Refiro-me às vastíssimas comunidades de raiz islâmica – os chamados “mouriscos” – que sobreviveram no Levante ibérico (sobretudo em Aragão) às conversões obrigatórias e às expulsões do início do século XVI (e do final do século anterior). A literatura aljamiada destes derradeiros autóctones islâmicos da Ibéria tinha uma característica singular: a miscelânea temática. Nos manuscritos que circulavam de mão em mão lia-se de tudo: descrição de viagens (na tradição árabe da Rihla), profecias (Aljofores), tratados de superstições, livros de sortilégios, crenças populares, receitas mágicas, fórmulas cabalísticas, temas épicos, ditados, lendas, “Rogarias y Alabanzas de Mahoma”, disputas com judeus e cristãos, instruções para a leitura do Alcorão, excertos tradicionais (Hadith), temas gramaticais (sobretudo fonéticos), preceitos relativos a heranças, medicina popular, fórmulas mágicas, sequências didácticas e morais, etc, etc.
Este modo desfragmentado de abarcar um mundo inevitavelmente perdido (hoje dir-se-ia “este discurso pós-cultura”) está a reaparecer na actualidade com outras vestes. Veja-se: perda de memória colectiva e de referências fixas; o emergir de uma nova hibridez (as fronteiras das culturas hoje atravessam-se no globo), de novos modos expressivos e de mediação (chatsfera, mediasfera, blogosfera, etc.). E ainda, para terminar, alguma miscelânea temática como método. Esta última característica tornou-se óbvia no universo dos blogues que está a ser, por sua vez, nos últimos – poucos – anos, transposto para livro. O Meu Pipi (Oficina do Livro, 2003), Pedro Mexia (Fora do Mundo, Cotovia, 2004), Barnabé (Oficina do Livro, 2005), O Gato Fedorento (Cotovia, 2005), Jaquinzinhos (O Espírito das Leis, 2006) e alguns outros iniciaram a saga.
Como cereja sobre este bolo de ressonâncias já antigas, surge agora Intriga em Família de Eduardo Pitta (Quasi, 2007) que reúne perto de trezentos posts desassombrados e heterodoxos do blogue Da Literatura. Se ainda fosse preciso provar que na blogosfera se escreve particularmente bem, esta obra de Pitta reluziria. Além disso, neste guia “sage” e de bom manuseio, o recorte temático é, por natureza, abundante e variado. É a nouvelle cuisine servida a todos. Sem qualquer excepção. E graciosamente. Ponto.com.