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Patrícia Melo, Mundo Perdido, Campo das Letras – Editores, S.A., Porto, 2007 (lançamento a 21 de Março)
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Pré-publicação:
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Patrícia Melo, Mundo Perdido, Campo das Letras – Editores, S.A., Porto, 2007 (lançamento a 21 de Março)
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Pré-publicação:
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Sou foragido. E havia muita gente no cemitério. De onde vinham os crioulos? Fiquei aflito, nem me aproximei. Um monte de crioulos, duas mocinhas de shorts, não estou nem aí, estava escrito na camiseta de uma delas. Não gosto de tumulto. Evito ao máximo. É o meu truque. Sou foragido.
O segredo, dizia um rapaz que me escondeu quando fugi de São Paulo, o segredo, se você não quer ser preso, é não andar com mais de três. Nem sozinho. E, se estiver sozinho, enfia um jornal debaixo do braço, vão pensar que você é honesto. Para ele, não havia problema se você se metesse em trens lotados, andasse em avenidas apinhadas, se todos te vissem por aí, todo mundo é ninguém, ele falava. Multidão não tem problema, contanto que você evite estádio de futebol e baile funk, que é confusão na certa. No Brasil, ele dizia, não é nenhuma vergonha ter uma ordem de prisão contra você. Tanto faz, pobre, rico, branco, os caras lá em cima, digo, ministro, vereador, bambambã, todo mundo tem. Brasileiro é assim, escroto mesmo. Faz parte da nossa cultura roubar, sacanear. É como ser vítima de assalto, todo mundo é. E são tantos os ladrões, os corruptos, os filhos da puta, os assassinos, escroques, falsários, eles não dão conta de meter todo mundo na cadeia. Não tem espaço. Então a gente fica solto. É só não dar bandeira, ser invisível, andar numa boa, sabe como é? Não bata o carro e não fique à noite zanzando por aí com preto. Porque primeiro eles vêm atrás dos pretos. É uma tradição. E tenha sempre uma mulher com você. Ajuda muito. E, agora, o mais importante: toda manhã, ao acordar, repita em voz alta: eu sou foragido.
Sei lá se o fulano seguia as próprias regras, mas ele foi preso, me contaram. Continuei ali, de longe, debaixo do sol, vendo o coveiro enterrar a minha tia. Louco para me mandar. Não sabia que ela tinha tantos amigos. Depois, notei aliviado que os crioulos estavam lá para o enterro na cova ao lado. As mocinhas de shorts também. Apareceu ainda mais gente quando chegou o defunto, empurrado pelos familiares. Não vou aguentar, dizia uma loira, na hora que baixaram o caixão. As loiras são muito dramáticas.
O enterro da tia Rosa, de repente, ficou vazio, só cinco pessoas. Eu não conto, fico de longe, por precaução. Sou foragido. Reconheci logo a vizinha, Divani. Você deve ser o Máiquel, ela falou, no dia anterior. Eu estava na sala, mexendo na bolsa de plástico que a enfermeira tinha me dado no hospital, com as coisas da tia Rosa, Bíblia, batom novinho, carteira, documentos, porta-moedas, celular, foto três por quarto do meu primo Robinson, grampos enferrujados, agenda de endereços, cartão de encanador, uma cartela de aspirina toda fodida, porra, me deu um aperto no coração ver aquelas coisas, tudo socado dentro da bolsa. Foi nesse momento que a Divani invadiu a casa. Satisfação, ela falou, esticando a mão. Odeio isso. Gente que vai entrando. Explicou que a porta estava aberta. Por isso tinha entrado. Porra. Pelo jeito, a maluca devia entrar em tudo quanto é buraco.
Contei que minha tia morreu. Que eu estava chegando do hospital. E que o enterro seria no dia seguinte. Cuidei da sua tia antes dela ser internada, disse Divani. Dei banho nela. Limpei a casa. Rosa já não conseguia fazer nada.
Depois, ficamos ali, em silêncio, olhando para aqueles cacarecos em cima do sofá. Enfiei uma aspirina na boca e senti o gosto amargo.
Sou foragido. E havia muita gente no cemitério. De onde vinham os crioulos? Fiquei aflito, nem me aproximei. Um monte de crioulos, duas mocinhas de shorts, não estou nem aí, estava escrito na camiseta de uma delas. Não gosto de tumulto. Evito ao máximo. É o meu truque. Sou foragido.
O segredo, dizia um rapaz que me escondeu quando fugi de São Paulo, o segredo, se você não quer ser preso, é não andar com mais de três. Nem sozinho. E, se estiver sozinho, enfia um jornal debaixo do braço, vão pensar que você é honesto. Para ele, não havia problema se você se metesse em trens lotados, andasse em avenidas apinhadas, se todos te vissem por aí, todo mundo é ninguém, ele falava. Multidão não tem problema, contanto que você evite estádio de futebol e baile funk, que é confusão na certa. No Brasil, ele dizia, não é nenhuma vergonha ter uma ordem de prisão contra você. Tanto faz, pobre, rico, branco, os caras lá em cima, digo, ministro, vereador, bambambã, todo mundo tem. Brasileiro é assim, escroto mesmo. Faz parte da nossa cultura roubar, sacanear. É como ser vítima de assalto, todo mundo é. E são tantos os ladrões, os corruptos, os filhos da puta, os assassinos, escroques, falsários, eles não dão conta de meter todo mundo na cadeia. Não tem espaço. Então a gente fica solto. É só não dar bandeira, ser invisível, andar numa boa, sabe como é? Não bata o carro e não fique à noite zanzando por aí com preto. Porque primeiro eles vêm atrás dos pretos. É uma tradição. E tenha sempre uma mulher com você. Ajuda muito. E, agora, o mais importante: toda manhã, ao acordar, repita em voz alta: eu sou foragido.
Sei lá se o fulano seguia as próprias regras, mas ele foi preso, me contaram. Continuei ali, de longe, debaixo do sol, vendo o coveiro enterrar a minha tia. Louco para me mandar. Não sabia que ela tinha tantos amigos. Depois, notei aliviado que os crioulos estavam lá para o enterro na cova ao lado. As mocinhas de shorts também. Apareceu ainda mais gente quando chegou o defunto, empurrado pelos familiares. Não vou aguentar, dizia uma loira, na hora que baixaram o caixão. As loiras são muito dramáticas.
O enterro da tia Rosa, de repente, ficou vazio, só cinco pessoas. Eu não conto, fico de longe, por precaução. Sou foragido. Reconheci logo a vizinha, Divani. Você deve ser o Máiquel, ela falou, no dia anterior. Eu estava na sala, mexendo na bolsa de plástico que a enfermeira tinha me dado no hospital, com as coisas da tia Rosa, Bíblia, batom novinho, carteira, documentos, porta-moedas, celular, foto três por quarto do meu primo Robinson, grampos enferrujados, agenda de endereços, cartão de encanador, uma cartela de aspirina toda fodida, porra, me deu um aperto no coração ver aquelas coisas, tudo socado dentro da bolsa. Foi nesse momento que a Divani invadiu a casa. Satisfação, ela falou, esticando a mão. Odeio isso. Gente que vai entrando. Explicou que a porta estava aberta. Por isso tinha entrado. Porra. Pelo jeito, a maluca devia entrar em tudo quanto é buraco.
Contei que minha tia morreu. Que eu estava chegando do hospital. E que o enterro seria no dia seguinte. Cuidei da sua tia antes dela ser internada, disse Divani. Dei banho nela. Limpei a casa. Rosa já não conseguia fazer nada.
Depois, ficamos ali, em silêncio, olhando para aqueles cacarecos em cima do sofá. Enfiei uma aspirina na boca e senti o gosto amargo.
A Rosa adorava o Corinthians, disse Divani. Posso ficar com esse chaveiro?
Antes da Divani ir embora, pensei em pedir para ela não sair cacarejando para as amigas que eu estava no bairro. Mas não gosto de pedir favor. De ficar devendo. As pessoas cobram. Mesmo as boas, as que dizem que cuidaram da sua tia. Devia ser nova no bairro, a Divani. Eu não lembrava dela, não era dos meus tempos. Aliás, do meu tempo não tinha ninguém entre aqueles cinco que assistiam ao enterro da tia Rosa. Sei lá quem era o casal de velhos. Também nunca vi os outros. Não reconheci ninguém.
Se eu não tivesse perdido tanto tempo com a Eunice, em Nova Iguaçu, talvez tia Rosa ainda estivesse viva na hora que cheguei em São Paulo. Você não vai pegar estrada à noite, falou Eunice, quando liguei para saber notícias da minha tia. Vai amanhã, bem cedo. Esse era o problema da Eunice, muito mandona. No início, duvidava de tudo o que eu dizia. Uma vez, chegou a arrancar o telefone da minha mão, para checar com a enfermeira a idade da tia Rosa. Expliquei milhões de vezes que eu era o único sobrevivente da família, que, depois que meu primo Robinson morreu, a tia Rosa ficou muito triste. Quer que eu comece a chorar agora ou daqui a pouco?, ela perguntava. Eunice não tinha coração.
Ali, no cemitério, me arrependi de não ter vindo antes. No fundo, a culpa era minha. Preguiça de viajar. Vou na semana que vem, eu pensava, vou na Páscoa, vou no aniversário dela. Morreu faz uma hora, disseram, quando cheguei no hospital. O que você é dela?, perguntou a enfermeira. Sobrinho. Esperei um bom tempo até que me levassem a uma sala, onde tinham posto o corpo. Tivemos que desocupar o quarto, alguém explicou. Para outro doente. Ela falava muito no senhor, disse a mulher, enquanto caminhávamos pelos corredores. Branca como cera, careca, um punhado de pele e osso. Era só o que tinha sobrado da minha família.
Ali, no cemitério, me arrependi de não ter vindo antes. No fundo, a culpa era minha. Preguiça de viajar. Vou na semana que vem, eu pensava, vou na Páscoa, vou no aniversário dela. Morreu faz uma hora, disseram, quando cheguei no hospital. O que você é dela?, perguntou a enfermeira. Sobrinho. Esperei um bom tempo até que me levassem a uma sala, onde tinham posto o corpo. Tivemos que desocupar o quarto, alguém explicou. Para outro doente. Ela falava muito no senhor, disse a mulher, enquanto caminhávamos pelos corredores. Branca como cera, careca, um punhado de pele e osso. Era só o que tinha sobrado da minha família.
Depois do enterro, andei debaixo do sol pela avenida Rio Bonito até o ponto de ónibus.
Fazia quase dez anos que eu não vinha para São Paulo. Todo mundo construindo seu próprio barraco, eu vi pela janela do ónibus. Lajota, pau, lata, valia qualquer coisa. Menos tinta. Tudo cinza. O trânsito amarrado. A mesma bosta de sempre. Vê se não arranja mulher, disse Eunice, quando me levou até a porta. Você volta, não volta? Prometi que sim. Gostava dela. Na primeira vez que fodemos, ela começou a dizer que eu era educado, achei você legal porque você é muito educado. Mais tarde, quando eu já estava morando na casa dela, contou que falou isso por causa do tamanho do meu pau. Pau grande, na minha opinião, é cavalheirismo. É elegância. Vou te arrumar um emprego com meu irmão, ela tinha dito. Mas agora eu não sabia mais se ia voltar. Aquilo nem era Rio de Janeiro, era Nova Iguaçu. É tudo a mesma coisa, dizia Eunice. Mas, para mim, não era. Rio era Rio. Arromba a retina, como diz uma música que ouvi no rádio uma vez. E Nova Iguaçu não arrombava nada. Era uma cilada, isso sim. Máiquel, disse um amigo, precisamos de um homem de confiança para fazer um trabalho legal, com gente da pesada. Gente da pesada, no caso, eram policiais. O esquema é simples, explicaram. A polícia pára os caminhoneiros e leva os que estão meio fodidos para uma conversa com a gente. Negócio limpo. Os babacas só têm que pagar um pedágio, ficam de molho, num muquifo, enquanto pegamos o cartão electrónico deles, fazemos saques nas agências que tem por perto, e pronto. Você vai funcionar como zelador do muquifo. Minha função era ficar parado. Olhando. De longe. Não deixar os caras fugirem antes da hora. Logo no início, vi que não tinha profissional na jogada. Dar porrada e quebrar ossos, era disso que eles gostavam. No dia que mataram um, me mandei.
Foi aí que conheci Eunice. Fui comprar Sonho de Valsa, e ela trabalhava de caixa no supermercado, oi, ela disse. Nem achei a Eunice muito bonita. Mas eu não tinha nada para fazer, esperei ela sair do serviço. Foi assim que começou. Depois, ela me contou que o irmão levava carga para o Brasil inteiro. Que ele tinha uma carreta Scania 112 hw e vivia no Mato Grosso, Goiás, Vitória, São Paulo, na maior vida boa. Era isso mesmo que eu queria fazer. Só que eu tenho um problema. Sou foragido. Isso eu não contei para a Eunice, porque eu podia me enfiar nas estradas de terra na fronteira do Brasil com a Bolívia, quem ia me achar? O meu irmão vai te apresentar para um bom agenciador. Ele vai arranjar os documentos todos para você. Falsos, pensei. Se arruma quente, arruma frio. O irmão da Eunice estava sempre viajando. Rondônia. Rio Grande do Sul. Enquanto isso, minha tia piorava. E o tempo passava. Deu no que deu. Agora eu estava ali, tarde demais.
Saltei do ónibus. Não havia pressa, nada para fazer. O dia estava bonito, céu azul, qualidade do ar, imprópria, dizia o painel da avenida. Menos árvores, notei. Mais cachorro. Mais barulho. Mais sujeira também. A praça. O bar do Gonzaga. Será que ainda era do Gonzaga? Passei anos pensando naquele lugar. Querendo voltar. Achando que seria bom voltar. Agora, enquanto caminhava, eu pensava que essa história de lugar, na verdade, não fazia a menor diferença. Tudo era igual, ruas, casas, a cidade, quer dizer, tanto faz. Não mudava nada, estar ali. O lugar, não interessa qual, não traz nenhum tipo de paz. Cansei.
Voltei para casa, deitei no sofá, liguei a TV. Estranho ficar naquela sala, sozinho. Tudo vazio. Quer dizer, cheio. Com coisas, mas sem nada. Liquidificador, vassoura, o sofá era novinho. Mandei dinheiro para a senhora, compre um sofá novo. Ela tinha mesmo comprado, a tia Rosa.
No móvel perto da televisão, uma foto minha e da Cledir, na festa do nosso casamento. Cortando o bolo. O noivo e a noiva. E uma do Robinson, num churrasco, de sandália de dedo. O Marcão. Todos mortos. E outra da Érica, com minha filha, Samanta, no colo. Levantei, peguei o porta-retratos e voltei para o sofá. E aí, Érica, onde você se meteu, sua sequestradora de crianças? Dez anos. Dez anos sem ver minha filha. Sem saber da Érica.
De repente, senti uma coisa ruim, um gosto ruim na boca. Ódio daquela cidade, que só me fez mal. Trabalhei para eles. Cuidei daquelas pessoas. Fiz coisas muito importantes. Ganhei até troféu. E meus amigos estavam mortos. A casa vazia. Eu ali, um foragido. Gente escrota. Ódio da Érica principalmente. A Érica não podia ter feito aquilo comigo. Fugir com um pastor. Roubar minha filha. Eu andava pensando muito nisso ultimamente, ir atrás, resolver tudo de vez. E pensava sempre com mais raiva. Porque não era certo, o que ela tinha feito. Sequestrar a filha dos outros. Como seria Samanta? Onze anos e dez meses, pensei. Uma garota. De que cor seriam seus cabelos? Agora, eu estava sozinho. Por causa da Érica. Mas eu tinha uma filha. Que era minha. Estava na hora de procurar a Érica e a minha filha. Era isso que eu ia fazer. Estava decidido.
Fazia quase dez anos que eu não vinha para São Paulo. Todo mundo construindo seu próprio barraco, eu vi pela janela do ónibus. Lajota, pau, lata, valia qualquer coisa. Menos tinta. Tudo cinza. O trânsito amarrado. A mesma bosta de sempre. Vê se não arranja mulher, disse Eunice, quando me levou até a porta. Você volta, não volta? Prometi que sim. Gostava dela. Na primeira vez que fodemos, ela começou a dizer que eu era educado, achei você legal porque você é muito educado. Mais tarde, quando eu já estava morando na casa dela, contou que falou isso por causa do tamanho do meu pau. Pau grande, na minha opinião, é cavalheirismo. É elegância. Vou te arrumar um emprego com meu irmão, ela tinha dito. Mas agora eu não sabia mais se ia voltar. Aquilo nem era Rio de Janeiro, era Nova Iguaçu. É tudo a mesma coisa, dizia Eunice. Mas, para mim, não era. Rio era Rio. Arromba a retina, como diz uma música que ouvi no rádio uma vez. E Nova Iguaçu não arrombava nada. Era uma cilada, isso sim. Máiquel, disse um amigo, precisamos de um homem de confiança para fazer um trabalho legal, com gente da pesada. Gente da pesada, no caso, eram policiais. O esquema é simples, explicaram. A polícia pára os caminhoneiros e leva os que estão meio fodidos para uma conversa com a gente. Negócio limpo. Os babacas só têm que pagar um pedágio, ficam de molho, num muquifo, enquanto pegamos o cartão electrónico deles, fazemos saques nas agências que tem por perto, e pronto. Você vai funcionar como zelador do muquifo. Minha função era ficar parado. Olhando. De longe. Não deixar os caras fugirem antes da hora. Logo no início, vi que não tinha profissional na jogada. Dar porrada e quebrar ossos, era disso que eles gostavam. No dia que mataram um, me mandei.
Foi aí que conheci Eunice. Fui comprar Sonho de Valsa, e ela trabalhava de caixa no supermercado, oi, ela disse. Nem achei a Eunice muito bonita. Mas eu não tinha nada para fazer, esperei ela sair do serviço. Foi assim que começou. Depois, ela me contou que o irmão levava carga para o Brasil inteiro. Que ele tinha uma carreta Scania 112 hw e vivia no Mato Grosso, Goiás, Vitória, São Paulo, na maior vida boa. Era isso mesmo que eu queria fazer. Só que eu tenho um problema. Sou foragido. Isso eu não contei para a Eunice, porque eu podia me enfiar nas estradas de terra na fronteira do Brasil com a Bolívia, quem ia me achar? O meu irmão vai te apresentar para um bom agenciador. Ele vai arranjar os documentos todos para você. Falsos, pensei. Se arruma quente, arruma frio. O irmão da Eunice estava sempre viajando. Rondônia. Rio Grande do Sul. Enquanto isso, minha tia piorava. E o tempo passava. Deu no que deu. Agora eu estava ali, tarde demais.
Saltei do ónibus. Não havia pressa, nada para fazer. O dia estava bonito, céu azul, qualidade do ar, imprópria, dizia o painel da avenida. Menos árvores, notei. Mais cachorro. Mais barulho. Mais sujeira também. A praça. O bar do Gonzaga. Será que ainda era do Gonzaga? Passei anos pensando naquele lugar. Querendo voltar. Achando que seria bom voltar. Agora, enquanto caminhava, eu pensava que essa história de lugar, na verdade, não fazia a menor diferença. Tudo era igual, ruas, casas, a cidade, quer dizer, tanto faz. Não mudava nada, estar ali. O lugar, não interessa qual, não traz nenhum tipo de paz. Cansei.
Voltei para casa, deitei no sofá, liguei a TV. Estranho ficar naquela sala, sozinho. Tudo vazio. Quer dizer, cheio. Com coisas, mas sem nada. Liquidificador, vassoura, o sofá era novinho. Mandei dinheiro para a senhora, compre um sofá novo. Ela tinha mesmo comprado, a tia Rosa.
No móvel perto da televisão, uma foto minha e da Cledir, na festa do nosso casamento. Cortando o bolo. O noivo e a noiva. E uma do Robinson, num churrasco, de sandália de dedo. O Marcão. Todos mortos. E outra da Érica, com minha filha, Samanta, no colo. Levantei, peguei o porta-retratos e voltei para o sofá. E aí, Érica, onde você se meteu, sua sequestradora de crianças? Dez anos. Dez anos sem ver minha filha. Sem saber da Érica.
De repente, senti uma coisa ruim, um gosto ruim na boca. Ódio daquela cidade, que só me fez mal. Trabalhei para eles. Cuidei daquelas pessoas. Fiz coisas muito importantes. Ganhei até troféu. E meus amigos estavam mortos. A casa vazia. Eu ali, um foragido. Gente escrota. Ódio da Érica principalmente. A Érica não podia ter feito aquilo comigo. Fugir com um pastor. Roubar minha filha. Eu andava pensando muito nisso ultimamente, ir atrás, resolver tudo de vez. E pensava sempre com mais raiva. Porque não era certo, o que ela tinha feito. Sequestrar a filha dos outros. Como seria Samanta? Onze anos e dez meses, pensei. Uma garota. De que cor seriam seus cabelos? Agora, eu estava sozinho. Por causa da Érica. Mas eu tinha uma filha. Que era minha. Estava na hora de procurar a Érica e a minha filha. Era isso que eu ia fazer. Estava decidido.
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Guerra e Paz, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença e Vercial.