terça-feira, 27 de março de 2007

A estranha obsessão da Ota - 3 (act.)

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O "Prós e Contras" de ontem deu a ver ao país a nata da engenharia portuguesa. Para mim, ao contrário de muitos outros, este era – e é – um mundo razoavelmente desconhecido.
Há três aspectos que terão sobressaído nas duas horas televisivas do programa (muitas vezes uma ostensão bem mais cenográfica do que polémica):

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1 - A ausência de perspectivas. Ao contrário de outras actividades, os engenheiros referem relatórios, dados e inevitabilidades matemáticas e enunciam-no entre algumas aporias e a afirmação determinada e fáustica da sua capacidade transformadora. Mas, no fio do discurso, raramente cabe a figura do horizonte, enquanto metáfora que invariavelmente reencaminham para políticos, decisores e estrategas.
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2 - O sorriso seráfico do poder. Na ala direita do palco, em frente de dois engenheiros
já citados – e bem – aqui no Miniscente, Luís Pinto Leite e José Manuel Viegas, estava sentado o poder: de um lado, um sorriso redentor e iluminado que há muito parecia ter substituído o espírito rebelde do debate pelo determinismo consumado da decisão; do outro lado, um rosto retirado do Painel do Infante que espelhava, através de silêncio grave e austero, o altar não menos irrevogável do dogma.
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3 - A corporação. A auto-imagem da engenharia constituiu a abordagem mais unânime ao longo de toda a discussão. As palmas não se pouparam quando o bastonário acentuou o facto, embora a sua intervenção final radiografasse (como nenhuma outra) a paixão em afirmar um argumento e o seu contrário, num jogo mais poético do que centrado num ditirambo à física dos materiais.

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Conclusão final: um debate oco, de polifonia previsível e onde foi óbvia – é esse o facto político fundamental a reter – a escassíssima margem de manobra para pôr em causa um processo viciado, pesado e com décadas de história.
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Para um cidadão comum, bom pagador de impostos e interessado na coisa pública, continua a não se entender a oposição entre uma decisão política (aparentemente irreversível) e um amplo rol de factos de natureza técnica que, quer se queira quer não, a contrariam.
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Recebi da arquitecta MJR (MJR, arqª) a seguinte mensagem, hoje mesmo enviada à RTP. Pelo interesse que tem, passo a publicá-la:
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"À RTP1:
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Assisti ao “Prós e Contras” (P&C) de ontem onde o tema (OTA - Debate Técnico) foi anunciado pela RTP deste modo: “Depois do debate político, têm a palavra os engenheiros. (…) O “Prós e Contras” reúne os engenheiros portugueses para o maior debate técnico sobre a Ota.”
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Ignoro se este programa conduzido pela jornalista FCF é idealizado por uma equipa multidisciplinar. Todavia, no site da RTP verifico que ele é considerado “um fórum de debate alargado, com especialistas e decisores”, onde “A discussão parte de uma sondagem da UCP”, sendo o programa “ilustrado por reportagens” e contando “com a participação dos correspondentes da RTP no estrangeiro”.
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Apesar de ter em grande consideração o profissionalismo do actual Bastonário da Ordem dos Engºs (OE) que, nesta, como noutras intervenções na RTP, se esforçou por utilizar um discurso cordato, venho lamentar que a própria ‘ideia’ do tema deste P&C tenha sido atingida, desde logo, por uma falta de transdisciplinaridade que é imperdoável no actual panorama cultural global.
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Esta falta originou a interpelação exclusiva à classe do eng.ºs como detentora de uma (suposta) autoridade para responder a todas as questões (erradamente classificadas como técnicas) implicadas na decisão sobre a localização do Novo Aeroporto de Lisboa (NAL).
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Neste debate foram escandalosamente ignorados urbanistas de origem diferente da dos eng.ºs, como, entre outros, arquitectos e geógrafos. Foram também afastados do debate economistas e gestores, sociólogos e peritos em demografia, para apenas falar das áreas profissionais que o grande público conhece.
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Foram igualmente esquecidos responsáveis de organismos do Estado, fulcrais no debate e na decisão de todas as questões relacionadas com o NAL e inevitavelmente envolvidos nesta matéria, como, entre outros, os da DGOTDU, das autoridades militares e das relações internacionais e ibéricas.
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As questões do desenvolvimento geoestratégico de Portugal (que neste P&C pareciam resumir-se à rivalidade aeroportuária entre Lisboa e Madrid) não foram sequer mencionadas e, mesmo as referências à supremacia espanhola foram afectadas pelos habituais e vulgares sorrisos que ocultam problemas endémicos de falta de cooperação, que classificaria como monumentais erros de alcance europeu e global
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