quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

Paisagens invisíveis: dados novos

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O Manuel Calado é meu amigo desde os dezasseis anos de idade e é, hoje em dia, professor da Faculdade de Letras de Lisboa. É um arqueólogo que se tem dedicado - inclusivamente no seu doutoramento - ao megalitismo da região de Évora na sua íntima relação com o megalitismo da Bretanha e da Grã-Bretanha. Para além de grande amigo, o Manuel Calado sempre fez do seu saber um instrumento de partilha com as comunidades onde trabalha. O Manuel é uma espécie de artista que olha para a paisagem como o fotógrafo olha para a luz. Faço hoje aqui publicar um texto seu que dá conta de recentíssimas investigações que fixam, com clareza e inovação, as grandes cidades da Idade do Ferro e do Bronze do actual Alentejo. A maior curiosidade do texto aponta para o facto de a actual Évora ter muito provavelmente surgido como uma repovoação com origem na já antiquíssima Evoramonte. A palavra a quem sabe (é um texto longo):
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"As paisagens invisíveis:
ou os 2700 anos do castelo de Évora Monte
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Manuel Calado
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Foram, recentemente, encerradas as comemorações dos 700 anos do Castelo de Evoramonte, iniciativa da C.M. de Estremoz que contou com a participação de diversas entidades, nomeadamente a Direcção Regional de Cultura e a Região de Turismo de Évora.
Tratou-se, sobretudo, de evocar a fundação do Castelo medieval, cujas muralhas envolvem, de uma forma muito visível, a vila antiga de Evoramonte apesar de a imagem mais marcante deste conjunto arquitectónico ser, naturalmente, a imponente torre quinhentista.
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Sabíamos, já há uns anos, que, antes da vila medieval tinha existido, no local, um castro proto-histórico de que dei notícia, com Leonor Rocha, num artigo publicado, em 1996, na “Cidade de Évora” sobre o “Bronze final no Alentejo Central”.
Neste artigo, fazia-se já referência à possibilidade de o castro ter ocupado uma área superior à da cerca medieval, com base na hipótese de os taludes que se observavam na encosta exterior à muralha poderem conter os restos das muralhas antigas. Na verdade, os materiais arqueológicos que permitiram tal conjectura resumiam-se a um fragmento de taça de fabrico manual, característica do final da Idade do Bronze ou inícios da Idade do Ferro, transição cuja cronologia, na região, pode chegar, em princípio, até aos finais do séc. VIII antes de Cristo. Os tais 2700 anos...
Entretanto, foram realizadas, em 2004, nas imediações da torre quinhentista, algumas sondagens arqueológicas de acompanhamento das intervenções arquitectónicas em curso nessa área.
Essas sondagens confirmaram, apesar da perturbação expectável das estratigrafias, a ocupação do Bronze final e identificaram materiais da Idade do Ferro, nomeadamente da fase de contacto com o mundo romano (cerâmicas campanienses). Atendendo à área onde foi efectuada, esta intervenção não adiantou (nem podia adiantar) qualquer dado sobre a extensão do povoado ou sobre o traçado e o estado de conservação da (ou das) muralha (s) proto-histórica (s).
Devo dizer que há anos eu próprio vinha adiando a operação que se impunha: uma observação atenta dos taludes que envolvem, em vários planos, o cabeço de Evoramonte e uma primeira caracterização cronológica, com base nos artefactos observados, à superfície.
As comemorações dos 700 anos do Castelo, deram-me o impulso e o motivo: escrevi um texto, na obra colectiva com o título “Um castelo de histórias”, em que, por sugestão do organizador, o meu amigo Dr. João Ruas, me vi obrigado a pensar de novo no Castelo de Evoramonte e nas questões que ele deveria levantar, em termos das paisagens invisíveis.
A oportunidade surgiu, curiosamente, na sessão de Encerramento das Comemorações: cheguei antes da hora, o dia estava convidativo e fui olhar para os taludes. A recolha de alguns materiais e o carácter dos taludes, obrigaram-me a regressar no dia seguinte e no outro. E o resultado não podia ser mais interessante, apesar de algumas imprecisões que só a escavação poderá certamente esclarecer.
Quanto à fundação, não podemos excluir um episódio calcolítico (III milénio a.C.), ou mesmo anterior. A presença esporádica de pedra polida, percutores de quartzo e seixos talhados de quartzito sugere que, num ou noutro grau, o local foi ocupado na pré-história recente. Note-se, aliás, que no alto de S.Gens, também na Serra d’Ossa, foram recentemente identificados, por Rui Mataloto, restos de uma muralha calcolítica, num sítio com posterior ocupação do Bronze final-1ª Idade do Ferro.
Por agora, em Evoramonte, fica apenas a hipótese.
Certo, porém, é que, no Bronze final, o recinto muralhado teria, pelo menos, cerca de 10 ha e que essa área foi ampliada, na 2ª Idade do Ferro, muito para além desse limite. A proposta que faço, mas que carece, em parte, de futura confirmação estratigráfica, implica, para o povoado pré-romano, na sua fase final, uma área que oscila entre os 15 e os 25 ha.
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É verdade que, do lado Leste (e, dentro deste, visivelmente, na parte Sul) a ocupação extra-muros da vila Medieval e Moderna perturbou profundamente eventuais depósitos arqueológicos anteriores. Esse fenómeno é particularmente observável na barreira que foi cortada pelo acesso moderno, onde a rocha de base foi regularizada em plataformas, sobre as quais foram erguidas construções cujas telhas assentam actualmente, na superfície da rocha.
No lado Oeste, porém, entra a capela de S. Sebastião e o Monte do Chafariz, onde quase não são visíveis os vestígios medievais/modernos, existem claras evidências de ocupação da 2ª Idade do Ferro relacionadas, aparentemente com dois dos taludes que acompanham as curvas de nível.
É notório que estes taludes foram aproveitados e “reconstruídos” com muros medievais ou modernos, ficando mesmo algumas dúvidas sobre se todos eles correspondem, ou não, a presumíveis muralhas proto-históricas; trata-se de questões que só a escavação pode vir a esclarecer.
A presença mais indiscutível de ocupação da Idade do Ferro, junto ao Monte do Chafariz, pode, de certo modo, ser relacionada com conhecida dificuldade de abastecimento de água na vila medieval intramuros e na integração, na Idade do Ferro, dessa reserva estratégica no interior do povoado.
Isto significa, antes de mais, que estamos perante um dos maiores centros urbanos da região, nos finais da Idade do Bronze (em parceria com o povoado fortificado do Castelo, no outro extremo da Serra d’Ossa), e, sobretudo, que, nos finais da Idade do Ferro, quando os romanos tomaram posse da região, Evoramonte era, de longe, o maior centro populacional.
Os outros povoados, actualmente conhecidos, da 2ª Idade do Ferro regional, têm, em geral, áreas que variam entre 0,5 ha e 5 ha (Castelo Velho das Hortinhas, Granja, Outeiro, Castelão de Rio de Moinhos, Castelo Velho de Veiros, Castelo Velho do Degebe) apresentando, aparentemente, o maior deles todos . o Castelo do Monte Novo, a Sul de Nossa Senhora de Machede - uma área próxima dos 8-10 ha.
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Um dos problemas historiográficos que a arqueologia urbana de Évora tem suscitado, nos últimos anos, é precisamente a questão da fundação da cidade e a relação desta com o topónimo. De facto, numa cidade romana com nome indígena, seria de esperar que as inúmeras escavações no centro histórico tivessem encontrado vestígios, mesmo que perturbados, da Ebora pré-romana, como se encontraram em Olisipo, em Scalabis, em Conimbriga, ou até, espantosamente, na romaníssima Pax Iulia. No entanto, esses vestígios primam, até agora, pela ausência: Évora parece, pois, ter sido fundada em época romana.
Num texto que publiquei, há uns anos, no volume, reunido pelo Luis Carmelo, sobre Évora, História e Imaginário (Ed. Ataegina), propus, com algumas reservas, que Evoramonte poderia, efectivamente, corresponder à Évora pré-romana, esvaziada e transposta para a localização actual, em época de Augusto, ou pouco antes.
As dimensões aparentes do povoado pré-romano, a presença de materiais romanos republicanos e a ausência de vestígios de época imperial parecem, agora, trazer um suporte factual, razoavelmente sólido, para a identificação de Evoramonte com a Ebora pré-romana.
Convém anotar que outra possibilidade, talvez menos plausível, seria a identificação de Evoramonte com a cidade de Dipo, um povoado indígena, atestada nas fontes clássicas, cuja localização se discute, mas que estaria algures entre Évora e Badajoz.
Em última análise, só a numismática ou, menos provavelmente, a epigrafia, poderão vir a lançar alguma certeza sobre a questão da identificação definitiva do topónimo pré-romano de Evoramonte.
Finalmente, para além de o significado regional de Evoramonte ter sido seguramente relevante, em época pré-romana – e, num certo sentido, podemos repetir uma observação que já fazíamos para o Bronze final - de que a serra d’Ossa funcionou, ao longo de toda a proto-história, como um centro de gravidade regional, recentrado em Évora, a partir da época romana.
É claro que não podemos excluir, já agora, a hipótese mais óbvia de que Evoramonte poderia ter recebido o nome, na Idade Média, por transferência a partir da Évora medieval.
Por enquanto, vamos manter em aberto as várias alternativas, sendo que Evoramonte, de uma forma ou de outra, foi, e conserva vestígios de ter sido, o maior povoado pré-romano no Alentejo central e que esse dado se relaciona, de algum modo, com a fundação de Ebora romana.
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Já agora, para além do Restaurante Convenção, onde me recompus das subidas e descidas à volta do cabeço, vale a pena subir a Evoramonte.
A torre, o Castelo, a vila medieval, a paisagem visível e, agora, as paisagens invisíveis (ou quase). Na verdade, em épocas não muito longínquas, alguns taludes foram transformados em azinhagas, meio abandonadas, por onde se pode circular com alguma facilidade, sugerindo trajectos à volta de Evoramonte antiga. É possível reconhecer, igualmente, ao longo dos interflúvios, os prováveis caminhos de acesso ao castro pré-romano. Com um olhar sobre a serra d’Ossa."