quinta-feira, 21 de dezembro de 2006

Dantes dizia-se Salazar

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Dei-me ao trabalho de ler toda a “Deliberação 1-I/2006” do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social sobre um conhecido texto de Eduardo Cintra Torres. Uma seca e um desgaste terrível. É um tratado imenso que está na linha de fronteira entre algumas teses académicas inúteis e a ostensão do peso almofadado como forma de zelo administrativo. Para além da óbvia vontade incriminatória e ficcional que respira (acentuada num comunicado público da própria ERC), é sobretudo esse posicionamento gongórico e árido que me intriga e que melhor reflecte uma certa intemporalidade portuguesa.
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É verdade que, em De Profundis, Oscar Wilde confessava abertamente que o principal valor da paixão de Cristo era estético e que o próprio triunfo do Cristianismo no Ocidente se ficava a dever mais a esse factor estético do que a qualquer outro paradigma moral. O espírito desta resolução da ERC (muito semelhante à tentação da panóplia “pedagógica” que dá pelo nome de TLEBS, sobretudo pela sua extensão e desfasamento) parece também basear-se na grandiloquência e no fardo estético e inflamado do altar barroco, como se bastasse a largura da cauda do pavão para impressionar, converter e convencer o indígena. Por mim, não existia qualquer entidade reguladora para o que se costuma traduzir como sendo a “comunicação social”.
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Na blogosfera existe uma auto-regulação que nem sempre tem a espessura que se desejaria. O cenário das escritas em rede vai de facto muitas vezes reinventando o próprio sentido da liberdade, na medida em que os limites que se lhe colocam são voláteis e indetermináveis (não deixa de ser interessante consultar as mini-entrevistas que tenho levado a cabo no meu blogue sobre este tema). Seja como for, um dos milagres que a rede está a criar, não apenas em Portugal, é a lenta condenação à morte deste tipo de persuasão estilo ERC que funciona pela quantidade, pela magnitude do verbo e, enfim, pela veia bíblico-danielítica.
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Para que este tipo de controlo estilo ERC se pudesse, um dia, estender do campo dos media clássicos aos múltiplos interfaces da rede, incluindo os blogues, era preciso que cada um de nós tivesse acoplado a si um regulador. E era depois preciso que o ouvíssemos a serrazinar os nossos ouvidos, tal como os profetas antigamente ouviam os seus deuses. Esse tempo está a passar, felizmente. À parte certas excepções, como a China e outras trovoadas negras do planeta, as vozes e os alardes que se ouvem, hoje em dia, têm cada vez mais origem num único bardo que é, ao mesmo tempo, autor, editor, regulador e leitor. Dantes, estas tentações resumiam-se a uma só palavra: “Salazar”. Até na cozinha.
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