quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Pré-publicações - 6

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Imperium, Robert Harris, Presença
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Chamo-me Tirão. Durante 36 anos fui secretário pessoal do estadista romano Cícero. Uma tarefa que começou por ser excitante, para depois se ir tornando espantosa, árdua e, por fim, extremamente perigosa. No decorrer desses anos, acredito que ele passou mais tempo comigo do que com qualquer outra pessoa, incluídos os próprios familiares. Assisti às suas reuniões privadas e fui correio das suas mensagens secretas. Registei por escrito os seus discursos, cartas e trabalhos literários, até a poesia; um tal dilúvio de palavras obrigou‑me a inventar uma escrita abreviada, a chamada estenografia, um sistema que continua a ser usado para registar as deliberações do Senado e pelo qual me foi atribuída, há pouco tempo, uma modesta pensão. Esta, juntamente com alguns legados e a generosidade dos amigos, é suficiente para me manter durante a reforma. Não sou muito exigente. Os velhos vivem do ar e eu sou muito velho: terei perto de uma centena de anos, segundo me dizem.
Nas décadas que se seguiram à morte de Cícero perguntaram-me muitas vezes, quase sempre em sussurros, como é que o senador era na realidade, mas guardei silêncio. Como poderia saber se estava a falar com algum espião enviado pelo Governo? Esperava ser saneado a qualquer momento. Porém, como a minha vida está a chegar ao fim, e como já não alimento quaisquer medos — nem sequer da tortura, pois não resistiria mais que um instante às mãos do torcionário ou dos seus auxiliares — resolvi que este livro será a minha resposta. Vou utilizar a memória e os documentos entregues à minha guarda. Como a vida que me resta será inevitavelmente breve, proponho-me escrevê‑lo depressa, recorrendo ao sistema de estenografia, numas dezenas de pequenos rolos do papiro mais fino — Hieratica, nem mais nem menos — que guardo desde há muito com este propósito. Desde já peço desculpa pelos meus erros e pelo estilo menos adequado. Também imploro aos deuses que me deixem terminar antes de a morte me vencer. As últimas palavras de Cícero foram um pedido para que eu contasse a verdade acerca dele, um pedido que estou disposto a satisfazer. Se ele nem sempre emergir como um paradigma de virtudes, paciência. O poder confere a um homem muitos luxos, mas um par de mãos limpas raramente se encontra entre eles.
O meu propósito é tratar do poder e do homem. Ao falar em poder, estou a referir-me ao poder oficial, ao poder político, a que em latim chamamos imperium, o poder de vida ou de morte, que o Estado concede a um determinado indivíduo. Um poder que foi pretendido por muitas centenas de homens, mas, em toda a história da República, Cícero foi o único que o procurou sem recursos que o pudessem ajudar, para além do seu próprio talento. Não provinha, como Metelo ou Hortênsio, de uma das grandes famílias aristocráticas, possuidoras de gerações de favores políticos que poderiam sacar em tempo de eleições. Não dispunha de um exército poderoso para lhe apoiar a candidatura, como acontecia com Pompeu ou com César. Não possuía, como Crasso, uma vasta fortuna que lhe aplanasse o caminho. Só dispunha da sua própria voz, que, graças a um extraordinário esforço de vontade, se tornara a mais famosa voz de todo o mundo.
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Tinha 24 anos quando entrei ao seu serviço. Ele tinha 27. Eu era um servo doméstico, nascido na propriedade da família, situada nos montes que rodeiam Arpino, e nunca tinha visto Roma. Ele era um jovem advogado, que sofria esgotamentos nervosos e lutava para vencer consideráveis deficiências naturais. Poucos apostariam nas hipóteses de qualquer de nós.
Na altura, a voz de Cícero ainda não era o temível instrumento que iria ser mais tarde; era rouca e ocasionalmente podia resvalar para a gaguez. Quero crer que o problema era ele ter a cabeça ocupada por demasiadas palavras, que em momentos de maior pressão se lhe apertavam na garganta, como acontece quando duas ovelhas, pressionadas pelo rebanho que as segue, tentam passar ao mesmo tempo por um espaço estreito. De qualquer maneira, era frequente que tais palavras fossem demasiado eruditas para poderem ser compreendidas pela assistência. O «Erudito», como lhe chamavam os ouvintes impacientes, ou o «Grego», sendo certo que nenhum dos termos poderia ser visto como um elogio. Conquanto ninguém pusesse em dúvida o talento de Cícero para a oratória, a sua constituição física era demasiado frágil para lhe suportar toda a ambição; por isso, o esforço suportado pelas suas cordas vocais durante várias horas de argumentação, muitas vezes ao ar livre e em qualquer estação do ano, podia deixá-lo rouco ou afónico durante dias. A estes desastres juntavam-se a insónia persistente e as digestões difíceis. Dito em palavras simples: se queria ascender na política, como desejava ardentemente, Cícero precisava de ajuda profissional. Portanto, decidiu ausentar-se de Roma por algum tempo, com o duplo objectivo de refrescar as ideias e de consultar os mais famosos professores de Retórica, que, na sua maioria, viviam na Grécia e na Ásia Menor.
Por eu ser responsável pela pequena biblioteca do pai dele, e por possuir conhecimentos razoáveis de grego, Cícero pediu-me emprestado, como quem leva para casa um livro da biblioteca, e levou-me com ele para o Oriente. A minha função era dirigir os preparativos, arranjar transportes, pagar aos professores e tudo o que fosse necessário; ao fim de um ano seria devolvido ao meu antigo senhor. No final, como acontece com tantos livros úteis, acabei por nunca ser devolvido.
Encontrámo-nos no porto de Brindisium no dia em que devíamos seguir viagem. Estávamos no Consulado de Servílio Vátia e Cláudio Pulcro, no 675.º ano da fundação de Roma. Cícero ainda não era a figura imponente que se viria a tornar, nem as suas feições eram de tal forma populares que não lhe permitissem percorrer a mais calma das ruas sem ser reconhecido. (Bem gostaria de saber o que terá acontecido a todos aqueles milhares de bustos e retratos que chegaram a adornar casas particulares e edifícios públicos. Teriam, na verdade, sido todos partidos e queimados?) Naquele dia de Primavera, o jovem que estava no cais era magro e tinha ombros arredondados, pescoço excessivamente alto em que uma volumosa maçã-de-adão, grande com um punho de bebé, subia e descia sempre que ele engolia. Os olhos eram protuberantes, a pele amarelenta, as faces encovadas; era, em resumo, a imagem da falta de saúde. «Pois bem, Tirão», recordo-me de ter pensado, «aproveita a viagem, que não durará muito.»
Começámos por ir a Atenas, onde Cícero se prometera o prazer de frequentar a Academia para estudar Filosofia. Levei-lhe o saco para o auditório e, quando estava para o deixar ali, quis saber para onde é que eu ia.
— Vou sentar-me à sombra, juntamente com os outros escravos — respondi —, a menos que tenhas qualquer outro serviço para mim."
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