quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Pré-publicações - 5

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A Obra Prima Desaparecida, Jonathan Harr, Presença.
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Num final de tarde de fevereiro, o Sol escondia-se por trás dos telhados de Roma. Corria o ano de 1989. Francesca Cappelletti saiu pela porta da Bibliotheca Hertziana, situada na Via Gregoriana, transportando numa mão um saco de lona repleto de livros, pastas de arquivo e blocos de notas e, na outra, uma enorme bolsa. Licenciara-se pela Universidade de Roma, tinha vinte e quatro anos de idade, um metro e sessenta e sete de altura, olhos castanho-escuros e as maçãs do rosto altas e proeminentes. O cabelo, espesso e negro, caía-lhe sobre os ombros e tinha uma tonalidade estranha, resultado de uma recente ida a um salão de beleza próximo da Piazza Navona, onde a cabeleireira a convencera de que nuances vermelhas lhe dariam um aspecto mais vivo. Na realidade, as nuances davam-lhe um aspecto metálico, a fazer lembrar o latão. Não usava maquilhagem, nem brincos, apenas um anel de pérola na mão esquerda. Fazia uma covinha no queixo, que sobressaía sobretudo em repouso, embora naquele momento não estivesse nada repousada.
Estava atrasada para um encontro. Tinha um longo e deplorável passado repleto de atrasos. Consequentemente, aperfeiçoara a arte da justificação teatral. O trânsito de Roma era a desculpa mais habitual, mas já inventara elevadores avariados, chaves desaparecidas, tacões dos sapatos partidos, crises emocionais e doenças de familiares. As desculpas que apresentava revestiam‑se de uma sinceridade ofegante e pesarosa, com os olhos muito abertos e ar implorante, pelo que haviam sido aceites vezes sem conta por amigos e namorados.
Desta vez, ia encontrar-se com um homem chamado Giampaolo Correale. Este contratara Francesca e vários outros alunos de História da Arte, amigos dela, para realizarem uma investigação sobre algumas pinturas da Galeria Capitolina. Regularmente, marcava uma reunião no seu apartamento para debaterem os progressos. Francesca nem sempre chegava atrasada a estas reuniões e, das vezes em que tal acontecera, Correale perdoara-lhe com um simples aceno de mão. Ela já provara ser um dos elementos mais produtivos da equipa. No entanto, ele tinha um temperamento que a perturbava, capaz de um bom humor expansivo em determinado momento, interrompido por repentinos ataques de cólera logo a seguir.
Deslocava-se numa scooter, uma Piaggio azul matizada de ferrugem, e passou diante da igreja Trinità dei Monte e da Villa Medici, descendo a serpenteante rua que levava à Piazza del Popolo. Era uma condutora cuidadosa, mas parca em perícia, apesar de oito anos de experiência. O seu destino, o apartamento de Correale, situava-se na Via Fracassini, uma zona residencial com edifícios do século XIX, pequenas lojas e restaurantes, a cerca de quilómetro e meio do centro da cidade. Achava que iria chegar cerca de quinze minutos atrasada e começou a congeminar possíveis desculpas. A verdade — que pura e simplesmente perdera a noção do tempo enquanto lia um ensaio sobre iconografia — parecia‑lhe de alguma forma insuficiente.
Quando chegou ao apartamento de Correale, situado no último piso, ofegante e com o cabelo em desalinho, parecia alguém adequadamente perturbado.
Correale abriu a porta. Tinha cerca de quarenta e cinco anos, embora parecesse mais velho, algum peso em excesso, praticamente calvo, com a barba bem aparada a fugir para o grisalho. Trazia a ponta de um charuto grosso e negro entre os dedos. Observou Francesca por cima dos óculos de leitura. Tinha os olhos algo salientes, como os dos peixes.
— Ah, afinal a Francesca decidiu juntar-se a nós! — exclamou, dirigindo-se aos outros presentes na sala. Assumira um tom irónico, mas mantinha um sorriso nos lábios.
Não era preciso inventar justificações. Francesca entrou, limitando-se a murmurar um pedido de desculpas."
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Mareantes, Presença e Vercial.