quinta-feira, 22 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 40 (ver p.s.)

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Talvez a estratégia dos conteúdos que se agenciam nos blogues seja idêntica à que Gide atribuiu um dia ao diabo: a de fazer crer a sua própria inexistência. É verdade que a invisibilidade do que ‘se diz’ nos blogues é directamente proporcional à sua transitoriedade, ou seja: o que é retido do que se lê na blogosfera, passado um ou dois dias, é já tão pouco ao pé do que é removido que o ‘quase nada’ que sobra acaba por ter um poder demiúrgico sobre a própria obsessão do interactor (como se fosse o vestígio de um meio ‘iluminado’). Esta assimetria terá a crueldade de um exorcismo incompleto, mas é ela que cultiva o novo tipo de narrativa diária que, de modo síncrono e plural, a blogosfera passou a impor ao quotidiano nos últimos anos. Ela surge com novos ângulos e pontos de vista e cruza-se, de um modo provocador e externalista, com as narrativas mais ou menos estáveis que já lhe pré-existiam.
Em De Profundis, Óscar Wilde disse (“dizer” é próprio do género epistolográfico, como é o caso) que o principal valor da paixão de Cristo era estético e que o próprio triunfo do Cristianismo no Ocidente se ficava a dever mais a esse factor estético do que a qualquer outro paradigma moral. Segundo este ponto de visita, a paixão de Cristo teria superado a dimensão das tragédias gregas e inscrevia todas as possibilidades do mundo numa dramaturgia simples, superior e exemplar.
Se se fizer corresponder este visionarismo estético de Wilde (assente ainda na ideia de ‘beleza’) ao visionarismo local que o blogger tem hoje da rede em geral (o ‘todo’ dos blogues, ou, noutra escala, o ‘todo’ em expansão do universo da rede), pode dizer-se que a nova narrativa blogosférica se está, a pouco a pouco, a impor às narrativas previamente existentes, não por dar a ver todas as possibilidades do mundo através de uma dramaturgia superior e exemplar, mas por reflectir a redescoberta da subjectividade a contracenar com o novo acting-out mediático da rede. Daí o carácter provocador e activo da nova narrativa (de narrativas) que, dia a dia, o hibridismo expressivo da blogosfera passou a catapultar, apesar da aparente invisibilidade dos seus conteúdos e (par cause) do poder desmesurado da arena telemática onde circula.
Em 1766, no capítulo IX de Laocoonte, Lessing escrevia: “Apenas quis nomear como obras de arte aquelas em que o artista se podia manifestar enquanto tal”. Este eco que revelava a súbita descoberta da subjectividade num campo que subitamente se autonomizava – o estético (o que aconteceu a meados do Século XVIII, através de autores como Baumgarten, Diderot ou Winckelmann) – parece ter algo a ver com a hipnose encantada do blogger contemporâneo face à deslumbrada propagação da sua voz no novo éter da rede. Como se o fervor de todas as novas e súbitas revelações, fosse qual fosse a sua natureza – a de Wilde, a de Lessing ou a dos actuais “early adopters” (D. Watts) - se fizesse acompanhar por uma dimensão estética capaz de converter num segundo os mais incautos.
Eis, pois, mais uma explicação tão clara quanto óbvia para a euforia que acompanha, nos tempos que correm, todos os agentes da santíssima trindade da blogosfera: simultaneamente autores, editores e leitores compulsivos. Sem esquecer que a visibilidade dessa euforia tem ainda hoje em Gide um dos seus profetas.
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p.s. - Hoje, às 18 h. 30, Alexandre Soares Silva, vindo directamente do Brasil em figuração carne-e-osso, ostentará a sua erudição e outros devaneios espirituais em plena Casa Fernando Pessoa, aqui no bairro de Campo de Ourique. Estarei lá, como conspirador vestido de linho claro, mas não só.
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