quinta-feira, 15 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 34

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A mente é uma mesa de montagem onde a ambiguidade e a resolução andam de mãos dadas. Aí se processam súbitas integrações que mobilizam todo o tipo de imagens actuais (fruto da scannerização ininterrupta que é ditada pela relação entre organismo e exterior), de dados memoriais, de figuras “somatossensoriais” (A. Damásio) e de dados antecipadores.
O instante da montagem, aquele vórtice que parece sempre anteceder a adequação ao deus nietzchiano (a gramática), é extremamente parecido com o ‘vir ao ser’ de todo e qualquer enunciado criado na rede. Quer no hipertexto, quer na ‘incisão’ criada pela individualização blogosférica, a linguagem como que gravita à procura de centros ou de referências. Nada a encaminha para a finalidade, ou para a determinação de um sentido explicativo. A prospecção e a multimodalidade são as suas funções primárias e é por isso que os blogues raramente mantêm, ao longo de vários dias, uma mesma sequência de posts.
O poder da miscelânea e o fogo cruzado de temas e tópicos está mais de acordo com a oscilação e com a deriva que faz da linguagem uma companheira nómada que procura sítios sempre passageiros (vértices, nós, paragens, remissões, locais indexicados, sinalizações de posts, excertos, intertextos diversos, etc.) para dizer de si o que muito bem lhe apetece.
A temporalidade definida como ‘tempo real’ faz da individuação blogosférica um eco que se multiplica nos ecos de uma comunidade, de um ‘being-in-common’ (Alec McHoul). O meio é labiríntico e tendencialmente gregário, parecido com o de uma alcateia virtual, embora sempre reduplicável.
Cada internauta - cada blogger - visita mais assiduamente um mesmo conjunto de blogues, mas pode instantaneamente ser vítima de uma interacção mais vasta. Na blogosfera, as alcateias alheias são sempre as alcateias próprias. O alheio e o próprio são como Janus e propagam-se sem que nada os controle. A palavra voa e faz da sua safra uma ventania em campo aberto.
Se há dispositivo de controlo, ele coincide com a expansão da rede que coabita, por sua vez, com a singularidade da palavra; do mesmo modo que a grande mesa de montagem – a mente – é homóloga ao modo como a linguagem ocupa as suas posições: o tom, ou a livre procura de expressão, que excede dia a dia o ‘invisible-dedans’ da velha tradição metafísica.
É por isso que as coisas aparecem - ou podem aparecer - ditas na blogosfera com aquele cristalino ar da mais pura coloquialidade e do acaso. O que é próprio excede o que é alheio (a regra, a contusão, ou o constrangimento expressivo) e o que é alheio penetra no que é próprio, sem que se saiba muito bem qual o lugar do quê.
As coisas versam sobre si próprias e dançam de olhos fechados num salão sem fim. Como se o lobo uivasse de olhos fechados, focinho prostrado no céu e à volta, no campo aberto pela imensidão cruzada de posts, as alcateias se dispusessem em ilimitada transumância. Melancolia, felicidade, temor, mas palavra: sim, a dávida da palavra que parece ter saído do monocarril onde o sintagma a apertara, em jeito de travelling, a long time ago.
Nada melhor do que um post do Pedro – um dos co-fundadores deste reino e insistente (da isotopia) do “contem a vida como ela também é” - para confirmar o diagnóstico:
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“Eis um dos muitos motivos pelos quais eu gosto tanto de blogues. Um tipo passa o ano a ouvir frases como "Mas custa. Não se fode". E nos jornais e nas revistas nada, nadinha, nem traço disso, nem vestígios dessa realidade, apenas revistas femininas, revistas masculinas, maminhas, modelos, namorados no metro, publicidade, a mui trombeteada revolução sexual, avanço nos costumes, desde 1974 que não sei quê, a Merche, os ginásios, os umbigos, as discotecas, gente disponível, sem preconceitos, sociedade desinibida, segundo um estudo do ICS, segundo um estudo da Católica, segundo o Miguel Vale de Almeida, segundo a conferência episcopal, o hedonismo isto a civilização do corpo aquilo o Giddens aqueloutro. Nos jornais e nas revistas apenas isso, o chinfrim do mundo aldrabado e sem vergonha da sua aldrabice. Haja blogues que contem a vida como ela também é porque a vivemos ou ouvimos contada: "Mas custa. Não se fode".
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P.S. - A crónica de hoje de José Pacheco Pereira (Público, sem links) desenvolve - como escreveu Genette há um quarto de século - ligações "arquitextuais" com bastantes aspectos que têm sido aqui aprofundados nesta já longa série acerca do "tom" dos blogues (onde a prática da citação é fruto do bom senso e não tanto de uma autocompulsão ética). Um bom sinal dos tempos, dir-se-á.