terça-feira, 16 de maio de 2006

O "tom" dos blogues - 9

e
Escreveu Eduardo Pitta num post onde analisou a série que tenho dedicado à expressão na blogosfera (e que tenho traduzido pela palavra “tom”): “São coisas diferentes, escrever para um público virtual, não identificado, só remotamente pressentido — amigos próximos, oficiais do mesmo ofício, um que outro inimigo —, e escrever para uma audiência quantificada, que pode ir de Chicago à Palestina, do Campo Grande à Marechal Gomes da Costa e de São Petersburgo a Maputo (…)”
A questão pode também ser analisada do ponto de vista do leitor: são coisas diferentes ler um blogue com pouca difusão, embora minimamente referenciado (i.e., conhece-se o terreno, “pressentem-se” as clivagens, entende-se a natureza do círculo de leitura criado e domina-se até a possível natureza dos topics), ou ler um blogue de grande difusão sabendo que se partilha uma imensa e variada rede de leitores (é quase certo que as rubricas acabem por ser algo fixas, que os links constituam a remissão de uma main stream, que o impacto exceda o meio – a blogosfera - , que a previsibilidade e a expectativa não conduzam a sobressaltos desmedidos e que o próprio anonimato se torne mais consistente e menos familiar).
Ou seja, de um caso para o outro, o leitor deixa de entender a latitude de um simples claustro expressivo (é esse o esforço de um leitor do Miniscente, julgo eu) para se intrometer numa teia mais ampla onde acaba por rever-se num outro tipo de mobilidade e de compreensão (é esse o esforço do leitor de um Eschaton, ou, a nível mais local, por exemplo, do Abrupto).
As coisas andam associadas e têm, naturalmente, a sua tradição.
De facto, a hermenêutica romântica reduzia a interpretação ao reconhecimento das intenções de um dado autor (considerado do ponto de vista dos seus destinatários na situação original e histórica do discurso). Esta espécie de quase biografismo passou depois a ser entendida como uma variante da compreensão (Schleiermacher, Dilthey, etc.), acabando por centrar-se na expressão e na experiência vividas, sem qualquer necessidade de referência a um autor físico (noções do final do século XX, tais como a “fusão de horizonte” – Jauss - ou de “apropriação” – Ricoeur -, derivam deste turn e deixaram de visar fosse o fosse acerca da intencionalidade de outrem, já que o texto passava a bastar-se a si mesmo). Nesta linha de ideias, o convívio entre relato e leitor adquiriria o sentido de um real sobressalto, através dos qual este último se apropriaria de algo novo, por via de um conjunto de referências não ostensivas, entreabertas, ou desveladas no fruir do próprio relato. Este tipo de sobressaltos (com origem no apelo do texto) alimentariam a súbita compreensão do leitor ao mesmo tempo que lhe concederia uma nova capacidade de se rever a si próprio.
É este o coração do debate hermenêutico.
No caso dos blogues – raramente tenho visto este debate situado ao nível do leitor -, a diferença entre apreender o claustro expressivo de um blogue como o Miniscente e a rede criada pela mobilidade e intensa difusão de um Eschaton, ou de um Abrupto, é, contudo, de uma natureza distinta da que pode ser verificada entre textos clássicos (off-line). Há no mínimo quatro razões para tal.
A primeira situa-se na própria virtualidade do meio que já não pressupõe uma rígida separação de águas entre real e ficção. Mesmo nos blogues mais referenciais – os políticos, por exemplo –, a narrativa tende a criar a sua própria realidade e agenda. É por isso que a paródia, que encena sempre várias realidades ao mesmo tempo, se sobrepõe muitas vezes ao verosímil (ao potencial) que deveria ser trazido à realidade (é também por via desse uso que o virtual se impõe ao potencial).
A segunda tem a ver com o tipo de escrutínio a que se submete a linguagem em tempo real. Eu sou um adepto de que é apenas no uso, no efémero, no ‘cria e esquece’ — da linguagem que se cria o sentido (tal como escrevi aqui noutro post). Sei que o Eduardonão teria tantas certezas”. Seja como for, na perspectiva do leitor, a actualidade da expressão faz a leitura. Ninguém na blogosfera vive da memória temático-simbólica, ou de referências pesadas que legitimassem o sentido do que se escreve. Na blogosfera e na rede em geral, o hoje é já o sentido. A emergência é a lógica. O actual e o actualizado não se contrapõem à potência: são, sim, modos próprios e autónomos de significar (no fundo, isto corresponde à consecução de uma herança pragmática que referenciei igualmente noutro post).
A terceira prende-se com as novas possibilidades da interacção. Num meio tradicional, as possibilidades de afirmar a expressão eram escassas. De um lado havia o auditório e do outro lado existia a (depuradíssima) hierarquia da enunciação. As coisas estavam separadas verticalmente. Na rede, e na blogosfera com alguma singularidade, esses antigos magmas contaminaram-se e geraram horizontalmente novas formas de desinibição e de afirmação (as primeiras aparecem sobretudo na expressão do ressentimento, da desestruturação, do anonimato e de outros signos do desconforto, da paródia, ou do medo; enquanto as segundas aparecem sobretudo como cooperação, partilha, argumentação, complemento ou contraditório).
A quarta, no fundo o sustento de todo este debate e reflexão, diz respeito à própria procura de uma expressão que se adeque ao novo meio (a blogosfera). Tenho traduzido essa procura pela palavra “tom” – não me canso de o repetir - e tenho tentado exemplificá-la através de casos interessantes em posts que a dei o título de “Tonalidades & casos”. Sei que, à partida, a blogosfera é incompatível com gramaticalidades estriadas, embora haja blogues que tenham caído na tentação de explicitar algumas regras (voltarei um dia, talvez muito em breve, a esse interessante tema).
Estas quatro razões desenham cenários completamente novos na relação que o leitor tem com blogues onde se escreve, ou “para um público virtual, não identificado, só remotamente pressentido — amigos próximos, oficiais do mesmo ofício, um que outro inimigo”, ou, em contraponto, “para uma audiência quantificada, que pode ir de Chicago à Palestina, do Campo Grande à Marechal Gomes da Costa e de São Petersburgo a Maputo”, para recorrer aos termos utilizados por Eduarto Pitta no seu estimulante post.
e
P.S. - Naturalmente, os meus cúmplices agradecimentos.