quinta-feira, 4 de maio de 2006

O "tom" dos blogues - 3

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Em 1984, o saudoso Fernando Gil definia "conceito empírico" como algo que “significa uma tematização da percepção de feixes estáveis de aparências” (Mimesis e negação). Quer isto dizer que coisas aparentemente parecidas, vistas e revistas ao longo do tempo, acabam por arrumar-se na mente sob a forma de imagens fortes, ou de matrizes que explicam factos (Peirce chamou a isso “lesisignos”). O pastor dirá que a lua envolta por nuvens anuncia mau tempo, a dona da pastelaria dirá que as olheiras da porteira do nº 21 sugerem uma noite mal dormida e o blogueador X explicará ao professor de Latim precocemente reformado o que é um blogue, dizendo que se trata de uma espécie de jornal individualizado que se actualiza todos os dias.
Estas três coisas que o professor de latim precocemente reformado há muito conhece (a tradição da imprensa, a marca autorial e a necessidade quase permanente de preenchimento) acabarão por sugerir-lhe, de modo bastante vago, o que é um blogue. Mas um blogue, como qualquer outra coisa, ultrapassa sempre os esquemas que sumariamente o terão traduzido e caracterizado. E se o professor de Latim precocemente reformado decidir criar um blogue – tem aliás todo o tempo para isso –, chegará um ano depois a novas conclusões. Nomeadamente:
- que a imprensa e os média pretendem dar conta do mundo e que os blogues, ainda que o façam à sua maneira, são sobretudo máquinas de singularidade expressiva (à procura de um “tom”);
- que a questão da individualização que faz dos blogues edições personalizadas (é o blogue do Eduardo Pitta, do Pacheco Pereira, do Paulo Gorjão, etc.) é, ao fim e ao cabo, um retorno a uma longa tradição - do “tom” próprio - que se inicia em John Duns Scot (com a sua “haecceitas”) e na subjectividade do alvor da modernidade e que depois se diluirá, por via das teorias da linguagem que emergem sobretudo na segunda metade do século XX;
- que a necessidade de actualização diária dos blogues está muito para além da angústia da folha em branco de Mallarmé, ou do paradoxo de ter que reinventar todos os dias as mais de cem páginas de um diário, na medida em que reflecte um mundo que se confunde com a rede e com o vaivém instantanista dos pixels.
O "tom" dos blogues não se subsume, pois, a uma matriz pré-definida. No entanto, de algum modo, ele poderá constituir a consecução de uma profecia - permita-se-me o termo - que ficou conhecida por “pragmatic turn” e que resulta de alguns aspectos que surgiram na vasta obra de Wittgenstein, Investigações Filosóficas (congeminada, após o seu famoso Tratado, durante 16 anos, desde o início dos anos 30 até 1949, ano da edição). Há três aspectos que mo permitem afirmar, ou pelo menos sugerir:
- os blogues não perseguem a verdade (esse fantasma é, ainda hoje em dia, o centro da deontologia dos jornalistas e, naturalmente, o fulcro da escrita científica ainda que sempre mediado pelo inquérito e pela dúvida). Perseguirão, sim, o que temos traduzido, devido a mera economia expressiva, por “tom”.
- nos blogues, o uso da linguagem não se submete a qualquer escrutínio (o que não acontece na literatura, nos meios jurídicos, comerciais, económicos, etc.). Quer isto dizer que a blogosfera tipifica como nenhuma outra expressão a ideia de que é no contexto do uso – e apenas no uso, no efémero, no ‘cria e esquece’ - da linguagem que se cria o sentido. A escrita dos blogues brota do fragmento e da desintegração do corpo clássico e enuncia-se para além dos géneros, esboçando, nessa aventura diária, os seus escorços de “tom”.
- Também não me parece existir laboratório mais adequado para exemplificar a máxima dos “jogos de linguagem” do segundo Wittgenstein do que nos blogues: “chamarei ao todo formado pela linguagem com as actividades com as quais ela está entrelaçada o 'jogo da linguagem”. Esta ideia de ligação entre agir e dizer, fazer e enunciar, hábito e situação, por um lado, e o processo autónomo em que a linguagem se inscreve, por outro lado, aproxima-se da amplitude dos ‘links’, da inserção na rede, da auto-referencialidade contagiosa e da compulsão imediatista individidualizada e não presencial (tão própria da ‘quête’ laboratorial da blogosfera).
De facto, o “tom” mais não é do que um tipo de horizonte que vai fazendo a escrita dos blogues adequar-se ao seu jogo, às suas regras, à sua súbita – e algo paradoxal - recuperação da individuação. É por isso que o “tom” dos blogues é, nos tempos que correm, quase tudo (tal como antes Marshall MaChullan dizia que o meio era tudo, secundarizando o que hoje designamos por “conteúdo”).
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P.S.: Caro Paulo Querido: confesso-me ignorante em networking culture, mas não me considero com falta de humor (não me conhece)! A perspectiva que conduz o Paulo no seu texto é a de uma resposta (algo ressentida) a uma pretensa apologia minha. Não era esse o meu excurso. Tinha começado na véspera a escrever sobre o "tom" dos blogues (questão interessante antes aflorada no Bloguítica) e o diálogo a três sugeriu-me a continuação da reflexão (a qual entroncava, ainda por cima, com um recente artigo que tinha apresentado a uma conferência sobre design e as teorias de Hans Blumenberg). O seu texto apareceu, pois, com toda a naturalidade intertextual, no seio desta trama. Apenas isso. E tudo fiz para dissociar a sua opinião em concreto do modelo conceptual que a mesma pareceria indiciar. Quanto à educação, isso é ponto assente. Podia ser de outro modo?