Por que razão se chama micro-causa a uma micro-causa? A que tipo de expressão corresponde aquilo que a blogosfera passou a designar por micro-causa? No fundo, escritas na sua maior parte em maiúsculas (há um efeito de diferença que elas pretendem sublinhar), as micro-causas correspondem a solicitações que sugerem uma possibilidade a instâncias directamente associadas a formas de poder (não é por acaso que se iniciam quase sempre com a fórmula: “Pode a instância X esclarecer ou disponibilizar…Y”). Entre o Verão e o Outono do ano passado, este tipo peculiar de cidadania em rede generalizou-se. Lembro-me de três micro-causas da altura com alvos completamente distintos. Em Agosto, o Abrupto lançava a micro-causa da OTA: “PODE O GOVERNO SFF COLOCAR EM LINHA OS ESTUDOS SOBRE O AEROPORTO DA OTA PARA QUE NA SOCIEDADE PORTUGUESA SE VALORIZE MAIS A “BUSCA DE SOLUÇÕES” EM DETRIMENTO DA “ESPECULAÇÃO”?”. Em Outubro, o Bloguítica avançava com uma outra micro-causa ligada ao caso Fátima Felgueiras: “PODE O JORNAL «PÚBLICO» SFF ESCLARECER COM QUEM É QUE FÁTIMA FELGUEIRAS MANTEVE CONTACTOS NO SECRETARIADO NACIONAL DO PS? QUANDO É QUE ESSES CONTACTOS TIVERAM LUGAR? QUEM É QUE INFORMOU JAIME GAMA PREVIAMENTE DA LIBERTAÇÃO DE FÁTIMA FELGUEIRAS?”. No mês seguinte, em Novembro, o Fumaças fazia eco de uma outra micro-causa acerca dos sistemas de informação da república: “PODE O PRESIDENTE DA REPÚBLICA SFF ESCLARECER O QUE PENSA SOBRE AS MUDANÇAS NO SISTEMA DE INFORMAÇÕES DA REPÚBLICA PORTUGUESA (SIRP), SERVIÇO DE INFORMAÇÕES ESTRATÉGICAS DE DEFESA (SIED), SERVIÇO DE INFORMAÇÕES DE SEGURANÇA (SIS) E DIVISÃO DE INFORMAÇÕES MILITAR (DIMIL), DESDE QUE DEU POSSE AO PRIMEIRO-MINISTRO, JOSÉ SÓCRATES?”. Os alvos considerados por estas três micro-causas eram, ou instituições do sistema político (governo e presidente da república), ou os média. Ou seja, a blogosfera, na sua larga maioria com apenas dois anos e meio de vida, passava, nos idos de 2005, a acenar e a requerer de forma concertada na direcção dos poderes e, quase sempre, directa ou indirectamente (lembro-me da resposta de José Manuel Fernandes no Clube de Jornalistas, na 2), com alguns resultados. Creio que o sentido das micro-causas é, do lado da blogosfera, o de uma tentativa que está para além do comentário dos média (quase sempre solitário, embora sujeito a isotopias conjunturais e a cruzamentos opinativos normais) e aquém do sentido manifestatário de grupo (não necessariamente corporativo, entenda-se). A micro-causa seria, portanto, o resultado de uma procura expressiva que não tende a influenciar de modo vertical e referencial (como acontece com os colunistas mais conhecidos que associam o seu próprio nome a um poder mais ou menos imediato), nem assume, por outro lado, a carga reivindicativa do abaixo-assinado que reflecte um espírito de corpo marcado por denominadores comuns consistentes e dados. As micro-causas da blogosfera atravessam uma e outra destas expressões, que há muito estão consolidadas na história do espaço público moderno, constituindo ambas formas claras, reconhecíveis e tradicionais de cidadania. O que torna diferentes e eficazes as micro-causas são essencialmente quatro ordens de razões, a saber:
1- O seu carácter despojado, na medida em que se enunciam depuradas de “considerandos” ou de contextualizações extemporâneas. A sua fórmula é sucinta e baseia-se numa pergunta ancorada na actualidade, ou seja, num breve segmento hermenêutico que tem a forma, ou de num jogo em que a pergunta-resposta visa revelar um segredo, ou de um enigma mais vasto em que a revelação de alguns dos seus dados clarificaria a própria natureza do jogo.
2- A sua livre apropriação, na medida em que a expansão do mote que faz as micro-causas tem algo de semelhante às mnemotécnicas da oralidade: avança com aparente fragilidade pela rede, mas vai assinalando nos interfaces mais inesperados (on e off-line) a sua real força. Isto acontece devido ao facto de os blogues não se moverem numa relação axial entre auditórios e emissores fixos, acabando antes - tal como uma trepadeira sem fim - por cruzar terrenos muito plurais e sensíveis (políticos, mediáticos, sociais, etc.).
3- A sua imprevisibilidade, na medida em que as micro-causas criam um tipo de agenda que escapa aos verosímeis que têm dominado, quer o espírito de corpo da reivindicação tradicional, quer a lupa dominantemente cirúrgica do colunismo jornalístico. O que as micro-causas da blogosfera têm em vista não é um corpo, nem um sistema e muito menos a exigência de uma mudança. O que as micro-causas visam é sobretudo uma inquirição aparentemente casuística, mas que, ao fim e ao cabo, acaba por criar uma desejada turbulência nas inércias de vários sistemas (por exemplo: inquirir uma situação abjecta, como é o caso do “envelope 9”, ou solicitar a disponibilização de fontes, como aconteceu nos casos OTA e Fátima Felgueiras).
4 – A sua contemporaneidade, na medida em que as micro-causas traduzem um tipo de eficiência que é própria de uma época em que as chamadas “grandes causas” deixaram de mobilizar a sociedade, a favor de outros factores (hiper-reais) que funcionam em fluxo massificado e em rede. As micro-causas integram-se, hoje em dia, num âmbito de causas mais vastas e fragmentárias que está percorrer a abertura dos novos ciberterritórios e das novas cidadanias emergentes no globário. Não deixa de ser curioso, a título de exemplo, que um partido político tradicional tenha usado o meio (os blogues) e esta expressão genuína da blogosfera (as micro-causas) para realizar uma petição (em Novembro de 2005) : “Micro Causa (CDS/PP Beato, Lisboa): Petição para tornar oficial o Idioma Português nas Nações Unidas”. Apesar de escrita em minúsculas, não sei qual terá sido o resultado prático desta petição, mas a verdade é que o uso da expressão da micro-causa – e do “tom” aproximado que se lhe associa – não deixa de ser cristalinamente sintomático.
1- O seu carácter despojado, na medida em que se enunciam depuradas de “considerandos” ou de contextualizações extemporâneas. A sua fórmula é sucinta e baseia-se numa pergunta ancorada na actualidade, ou seja, num breve segmento hermenêutico que tem a forma, ou de num jogo em que a pergunta-resposta visa revelar um segredo, ou de um enigma mais vasto em que a revelação de alguns dos seus dados clarificaria a própria natureza do jogo.
2- A sua livre apropriação, na medida em que a expansão do mote que faz as micro-causas tem algo de semelhante às mnemotécnicas da oralidade: avança com aparente fragilidade pela rede, mas vai assinalando nos interfaces mais inesperados (on e off-line) a sua real força. Isto acontece devido ao facto de os blogues não se moverem numa relação axial entre auditórios e emissores fixos, acabando antes - tal como uma trepadeira sem fim - por cruzar terrenos muito plurais e sensíveis (políticos, mediáticos, sociais, etc.).
3- A sua imprevisibilidade, na medida em que as micro-causas criam um tipo de agenda que escapa aos verosímeis que têm dominado, quer o espírito de corpo da reivindicação tradicional, quer a lupa dominantemente cirúrgica do colunismo jornalístico. O que as micro-causas da blogosfera têm em vista não é um corpo, nem um sistema e muito menos a exigência de uma mudança. O que as micro-causas visam é sobretudo uma inquirição aparentemente casuística, mas que, ao fim e ao cabo, acaba por criar uma desejada turbulência nas inércias de vários sistemas (por exemplo: inquirir uma situação abjecta, como é o caso do “envelope 9”, ou solicitar a disponibilização de fontes, como aconteceu nos casos OTA e Fátima Felgueiras).
4 – A sua contemporaneidade, na medida em que as micro-causas traduzem um tipo de eficiência que é própria de uma época em que as chamadas “grandes causas” deixaram de mobilizar a sociedade, a favor de outros factores (hiper-reais) que funcionam em fluxo massificado e em rede. As micro-causas integram-se, hoje em dia, num âmbito de causas mais vastas e fragmentárias que está percorrer a abertura dos novos ciberterritórios e das novas cidadanias emergentes no globário. Não deixa de ser curioso, a título de exemplo, que um partido político tradicional tenha usado o meio (os blogues) e esta expressão genuína da blogosfera (as micro-causas) para realizar uma petição (em Novembro de 2005) : “Micro Causa (CDS/PP Beato, Lisboa): Petição para tornar oficial o Idioma Português nas Nações Unidas”. Apesar de escrita em minúsculas, não sei qual terá sido o resultado prático desta petição, mas a verdade é que o uso da expressão da micro-causa – e do “tom” aproximado que se lhe associa – não deixa de ser cristalinamente sintomático.
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P.S. - Devido ao facto de Altino Torres Ferreira ter sentido, com alguma veemência, a ausência da sua micro-causa neste post, passo a transcrevê-la: "Considerando o facto de estarem apuradas para o fase final do Campeonato do Mundo de Futebol do próximo ano, na Alemanha, três selecções de futebol (Portugal, Brasil e Angola) de países cuja língua oficial é a língua Portuguesa, e, como tal, existir um universo de 200 milhões de pessoas que utilizam a dita língua como "língua materna", constituindo-se assim um vasto universo de pessoas interessadas em consultar a página oficial da FIFA, que presumo seja da vossa responsabilidade, solicito tomem as diligencias necessárias para que a referida página web seja também apresentada em Português." (o impacto desta micro-causa, já agora, foi bastante importante).